“Espalha o teu pão sobre a superfície das águas;
Passado muito tempo achá-lo-ás de novo”
(Ecl. 11, 1)
Da mesa para o chão. Jesus levanta-se. Não dá espaço ao sedentarismo, ao “descansar a comida”, à digestão adormecida, ao deixar-se ficar mais um bocado. Sai da mesa. Empurra-se para fora. E rompe com a indisponibilidade do hóspede a quem, como convidado, não lhe compete servir; e com o cansaço de quem abre a sua porta e acredita que “já fez demais”. Tira o manto. Começa a lavar os pés. E sem limpar as mãos – a ação descrita por João é demasiado rápida para isso – são as migalhas do pão partido, o resto de vinho nos lábios, que tocam a pele dos discípulos. Na bacia, é o pó removido do corpo que se junta aos fragmentos de pão; é o vinho desidratado que dá cor de carne à acumulação dos detritos. E é nesse lapso que acontece o agradecimento – significado etimológico de Eucaristia. O pão estendido sobre as águas desfaz-se. O pão ainda entrelaçado, aos dedos do Senhor, é o laço da poeira feita corpo e carne. O-sempre-presente é o que torna cada elemento lugar de passagem.
O pão eucarístico não é estilizado. Está partido, molhado, desbotado. Não é uma enciclopédia, mas um livro onde faltam páginas, onde algo foi rasgado. Não é blindado. Antes boia numa tina de água como os restos de um barco quebrado. De quarta-feira de cinzas até hoje passamos da nossa própria testa aos pés dos outros. E, com isto, de um ambiente seco e carbonizado, para um ecossistema hidratado e encharcado, porque da mesma forma que não há amor nem paixão sem o risco da perda, não há vida, pão ou Eucaristia, sem o risco do desaparecimento e da dissolução. Por isso, o silêncio da cena recupera aquilo que mais tarde Nietzsche escreveria: “só encontramos palavras para aquilo que já está morto nos nossos corações”.
Um pão assim quebra a relação económica que o torna instinto de sobrevivência. Subverte a relação de dependência e submissão, a culpabilidade e a domesticação como modelos explicativos da história. Translada a humanidade dos sinais do poder, ao poder dos sinais.
Após isso, resta o atravessar a porta. Se no Egito a prescrição ordenava que na noite de Páscoa, ao mesmo tempo que a última praga tirava a vida aos primogénitos, “nenhum sairia da sua casa até de manhã”, Jesus é o primogénito arquétipo que atravessa a noite como “quem deixa à porta o saco para o pão”, que sabe que não voltará a receber. A verdade, é que O-sempre-presente é, também, essa bolsa e esse alforge, que possibilita a receção do dom, por nos sentirmos sempre “sem jeito”, ou talvez demasiado pequenos, perante o nosso corpo lavado na partilha.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.