Elogio da sede – pontos de oração
Para nós que estamos, hoje, aqui, o livro de José Tolentino de Mendonça, Elogio da sede, enquanto texto escrito e impresso, oferecido à nossa leitura – e que leitura saborosa e tocante e desafiadora – é outra coisa em relação ao elogio da sede, feito, há tempos, em voz alta, diante de pessoas que escutavam, reverentes e dóceis – assim o imaginamos –, com o desejo de recolhimento e de silêncio. Em Ariccia, para o Papa Francisco e para aqueles que com ele se separaram da vida ordinária da cúria romana para se exercitarem espiritualmente, os dez capítulos do livro que, agora, temos em mãos, foram apenas um dedo que, por dez vezes, foi apontando para a sede, desenhando um itinerário de busca; dez portas que foram dando para ela, a partir de lugares ligeiramente diferentes; dez etapas de um caminho que a fizeram atravessar, certamente por entre desejo e hesitação, clareza e obscuridade. Lá, o P. Tolentino – ele perdoar-me-á – não foi mais do que servo inútil, verdadeiramente um “quase anónimo operário da Vinha do Senhor”, como ele mesmo se apresentou ao Papa. De facto, para cumprir bem a sua missão, naquele lugar, não poderia ter sido de outro modo. A ele, coube apenas – apenas, é, obviamente, um modo de dizer – a tarefa de indicar a sede como lugar a entrever e a desejar, a atravessar e a habitar para o encontro de cada um com a sua própria realidade e com o Senhor. Mas, o que importou, de facto, não foi o belo elogio da sede feito por Tolentino, mas a forma e a força como cada um, a começar pelo Papa Francisco, foi capaz de entrever, de desejar, de atravessar e de habitar a sua própria sede e a sede da humanidade, a sede de Jesus e a do próprio Deus. E como cada um deles, na sua própria existência, se percebeu sedento e como pelas lágrimas que os seus próprios olhos derramaram, no caso da consolação se lhe ter manifestado assim, foi capaz de reconhecer como o seu desejo se desordenara, e como, tantas vezes, vivera seco, estéril, sem sede de nada. E como pelos olhos, os ouvidos e o toque da sua imaginação lhe foi dada a graça de contemplar a sede íntima de Jesus e de se sentir implicado pela sede física e espiritual dos últimos deste mundo. E como, em consolação, se reconheceu bem-aventurado na sua própria sede e bendisse o Senhor por ela. E assim, como a Samaritana, em redor deste poço, expondo a sua sede real à água viva, não menos real, que o Senhor dá e é, pôde sentir o seu corpo e a sua alma dessedentados. O elogio que Tolentino fez à sede não foi mais do que um sicómoro, um convite, um instrumento, uma passagem para o encontro. A sede elogiada que cada um experimentou, de facto, essa sim, foi a casa onde aconteceu a salvação.
É experiência arriscada que implica o corpo e a mente, o afecto e a vontade, a memória e a imaginação. Trata-se de exposição de vidas, por vezes, de um corpo a corpo, num itinerário lento, por vezes, dramático e, finalmente, feliz, de procura e de encontro da vontade de Deus, que não costuma ser imediata nem evidente.
Permitam-me um breve desvio pelos Exercícios de S. Inácio de Loiola, ainda antes de ir ao livro. Segundo a prática inaciana, os exercícios não são um tratado de espiritualidade, a exposição, amena ou inflamada, pouco importa, de uma doutrina a aprender, a exortação a uma moral a cumprir. Não são sequer a apresentação de uma sabedoria de vida, em vista da sua consideração espiritual, filosófica ou ética, por parte de quem a escuta e a recebe, mais ou menos, passivamente. Os exercícios espirituais são, antes, um método, um “conjunto de regras e de práticas relativas a experiências que não são nem descritas nem justificadas”, como frisa Michel de Certeau (Le parler angélique, 1984). Só podem ser feitas em primeira pessoa, no risco de fazer experiência-experimentando, como encontro vital entre dois grandes textos, o texto biográfico que cada exercitante é e o texto das Escrituras. É experiência arriscada que implica o corpo e a mente, o afecto e a vontade, a memória e a imaginação. Trata-se de exposição de vidas, por vezes, de um corpo a corpo, num itinerário lento, por vezes, dramático e, finalmente, feliz, de procura e de encontro da vontade de Deus, que não costuma ser imediata nem evidente. O desejo – sim, a sede – é o grande motor desta travessia, que radica todos os seus lugares num não-lugar, que é o seu “ponto de fuga”: Deus como fim para o qual sou criado, critério último para ordenar o meu afecto diante de todas as coisas criadas e mover a minha vontade pelo maior bem; Deus como origem e horizonte, princípio e fundamento, sede e água, cuja vontade irrompe na linguagem do afecto, como música, toque, sabor, atracção, permanecendo, porém, sempre Outro, não circunscrito, não amarrado, sempre maior do que os encontros com Ele. Por isso, este modo de proceder é, sobretudo, movimento do desejo que “dá lugar ao outro”. O convite do Papa para orientar os exercícios dá lugar ao director (pregador, na linguagem comum), o director ao exercitante, o exercitante ao desejo que lhe chega do Outro, o próprio Deus, que, no fundo, é quem traz o exercitante aos exercícios e que, por meio de moções espirituais de consolação e desolação, o conduz nesta exercitação. Pensando ir ao poço movido pela sua sede, o exercitante descobre que já era movido e esperado pela sede de um Outro e, assim, aprende que desejar já é encontrar, que ter sede já é beber, que desejar amar já é amar.
A sede foi, pois, o lugar proposto por Tolentino para o encontro com a vida e com o Senhor da vida. Sem dúvida, uma proposta feliz e fecunda. Mas, lá, em exercícios, o mais significativo foi o que aconteceu, de facto, em cada exercitante nesse lugar que é a sua própria sede. Mas dessa sede reconhecida e atravessada só cada um deles poderá fazer o elogio.
A sede foi, pois, o lugar proposto por Tolentino para o encontro com a vida e com o Senhor da vida. Sem dúvida, uma proposta feliz e fecunda. Mas, lá, em exercícios, o mais significativo foi o que aconteceu, de facto, em cada exercitante nesse lugar que é a sua própria sede. Mas dessa sede reconhecida e atravessada só cada um deles poderá fazer o elogio.
Elogio da sede – livro
Agora, para nosso bem, temos o livro Elogio da sede, que, além do grande prazer da leitura, nos dá muito que rezar e que pensar e, se o levarmos a sério, nos poderá dar muito que fazer.
Elogio da sede é um livro de sabedoria, um caderno com notas preciosas sobre a graça e o custo da aventura espiritual, a disciplina da escuta interior, a ciência da ressonância afectiva, a arte de viver bem como exercício paciente, humilde e corajoso de busca e de construção de sentido e de fecundidade. É uma pequena fenomenologia do desejo e uma breve história da alma humana, em tempos que tendem a negligenciá-la e mesmo a removê-la da cultura e dos saberes. Mas, ainda que indirectamente, é, também, um pequeno manifesto, ponto de interrogação sobre o modo como a Igreja se compreende e se quer edificar, neste tempo que é o seu, onde regressa a tentação do seguro, do garantido, do acabado. E é ponto de interrogação sobre o modo como a sociedade cuida ou não cuida espiritualmente dos seus e como a cultura de hoje está disposta, ou não, a reconhecer que os assuntos da alma – o desejo, a imaginação, a confiança e o medo, a solidão e a alegria, a origem e o destino, o corpo, os afectos, o alimento, o trabalho e o descanso – não são simplesmente assuntos físicos, biológicos, psicológicos, sociais, mas que são também assuntos profundamente espirituais, porque exprimem a sede bem real e incontornável que o ser humano tem de ser amado, a firme expectativa de que o seu desejo de vida seja correspondido. Não bastam, por isso, cientistas que expliquem como funciona. Não bastam psicólogos que façam superar o problema. Com os cientistas e os psicólogos e tantos outros, precisamos, também, de mestres espirituais que saibam da alma humana e da sua sede.
Verdadeiramente, só avança quem parte do lugar onde está e reconhece que cada chegada ainda não é a meta. Parte, não do lugar imaginado, não do lugar idealizado, não do lugar devido, mas do lugar em que se encontra realmente.
A sede é-nos dita por Tolentino como arte de buscar e de viver dentro da própria busca, como caminho que parte do lugar real onde cada um se encontra. Porque, verdadeiramente, só avança quem parte do lugar onde está e reconhece que cada chegada ainda não é a meta. Parte, não do lugar imaginado, não do lugar idealizado, não do lugar devido, mas do lugar em que se encontra realmente. Percebemos, por isso, a força originária e permanente da pergunta das origens e que, em filigrana, atravessa todo este Elogio da sede: “onde estás?”. É uma pergunta enxuta e incontornável, que só pode ser respondida em primeira pessoa e sem fingimento. Mesmo o não responder nada já seria resposta. Se estou nu, estou nu. Se estou ferido, estou ferido. Se estou vazio, estou vazio. Se estou perdido, estou perdido. Só reconhecendo esta sede íntima poderei querer da água que me restituirá a vida. Mas quererei e saberei partir daqui?
A sede diz a densidade da nossa existência corpórea-e-espiritual. Somos barro soprado, somos húmus e beijo de vida eterna. A nossa é uma existência finita, incompleta, mas aberta, em tensão, habitada pelo desejo de uma verdade que é promessa de bem, mas que continuamente fica exposta a inúmeras dúvidas e desmentidos, contradições e contrariedades, ambivalências e ambiguidades.
A nossa é uma existência finita, incompleta, mas aberta, em tensão, habitada pelo desejo de uma verdade que é promessa de bem, mas que continuamente fica exposta a inúmeras dúvidas e desmentidos, contradições e contrariedades, ambivalências e ambiguidades.
Sem querer ser exaustivo, recolhi no livro inúmeras variações da sede. “Deserto”, “ferida”, “solidão”, “vazio”, “desejo”, “noite”, “caminho”, “abertura”, “incompletude”, “lacuna”, “falha”, “indigência”, “carência”, “dor”, “vulnerabilidade”, “grande insatisfação”, “prece ininterrupta”, “lágrimas”, “fragilidade”, “olhos abertos”, “grito profundo da alma”, “espada que nos trespassa a alma”. De facto, é muito e implica-nos muito. Gosto particularmente dos dois últimos sinónimos de sede que referi, espada que trespassa a alma e grito profundo da alma. Diante de Deus, teremos a coragem desta dor e deste grito? Seremos suficientemente humildes e fortes para Lhe expor a nossa nudez. Tolentino não esconde o custo desta sede. Toca a fragilidade que tendemos a evitar, a esconder, a negar. É mais fácil e mais bonito dizer-se saciado, mostrar-se sabedor, exibir êxitos. Mas para chegar à sede que é busca, é-nos dito que é preciso aprender a desaprender, a enfrentar a possível secura espiritual, a confessar a acédia que é sede de nada, o vazio que leva a fontes cujas águas não dessedentam. Para chegar à sede que é desejo de água viva é preciso reconhecer e ordenar as desordens afectivas e as derivas do desejo que se perde em águas inquinadas – “o arbítrio fácil, o capricho, o movimento errático e irresponsável, a pura volubilidade, o hedonismo”.
Como dizia há pouco, Elogio da sede diz também sobre a fé cristã e as práticas eclesiais. Indirectamente, Tolentino põe o dedo na ferida de uma fé e de uma igreja idealizada, intelectualizada e abstrata, funcional, parada, rotineira, autossuficiente e autorreferencial, que cultiva a mania das coisas perfeitas. No centro do cristianismo não estão ideias, mas vidas. Seria muito pouco e de, facto, não bastaria nem interessaria sequer que a fé se apresentasse como garante de tudo a custo de quase nada; que se oferecesse como água, mas sem atender às sedes; que apresentasse soluções, mas sem se interessar verdadeiramente pelas interrogações; que falasse tanto de vida, mas sem ser capaz de empatia e de proximidade com as vidas reais dos homens e mulheres de hoje. Para que a fé seja escola de desejo e a Igreja seja fonte de água, interessa fazer o elogio da misericórdia e dos excessos que lhe são próprios, como arte, como oficina, como forma de vida; fazer o elogio da periferia, onde vivem os últimos, sem água e sem poços, para o corpo e para o espírito, como lugar propício para a Igreja habitar e a partir da qual se compreender, à semelhança do próprio Jesus, identificado como “periférico”; fazer o elogio do olhar para si mesma, colhendo com generosidade os olhares de fora – o olhar da literatura, das artes e das ciências e de tantos outros – sem os quais ainda não compreenderá plenamente quem é, porque, em Cristo, não poderá ser plenamente sem eles.
Por fim, Elogio da sede é também contestação da cultura que prefere a satisfação à sede, a saciedade à procura, o supérfluo ao essencial. Tão cheios, tão satisfeitos, tão inchados, tão elegantes, escondemos um profundo vazio, uma enorme secura, uma indisfarçável insegurança, uma beleza postiça. O resultado são desejos mais curtos, laços mais fracos, paixões mais tristes, vidas mais cansadas; frustração, vazio, perda de vitalidade física e espiritual. Teremos coragem para olhar para estes traços sociais e culturais, também como assunto espiritual, com a consciência de que neles se joga a qualidade e fecundidade da humanidade que partilhamos?
Elogio da sede é também contestação da cultura que prefere a satisfação à sede, a saciedade à procura, o supérfluo ao essencial. Tão cheios, tão satisfeitos, tão inchados, tão elegantes, escondemos um profundo vazio, uma enorme secura, uma indisfarçável insegurança, uma beleza postiça. O resultado são desejos mais curtos, laços mais fracos, paixões mais tristes, vidas mais cansadas; frustração, vazio, perda de vitalidade física e espiritual.
A água que dessedenta a sede aqui elogiada é a Vida de Deus, o Espírito Santo. E é muito belo e consolador que esta água jorre de uma ferida, do lado aberto de Jesus. Nas feridas de Jesus que são as marcas no corpo da sua paixão por nós, onde têm um lugar próprio todas as nossas feridas e paixões, encontram-se duas sedes, a nossa sede de água viva e a sede de Jesus de nos dar a água viva.
Oferecendo-nos este tão belo Elogio da sede, Tolentino cumpre o ofício de aguadeiro. Bebamos, pois, este copo de água e descansemos por uns instantes.
Fotografia: Agência Ecclesia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.