Elogio da leitura

Atrevemo-nos mesmo a afirmar que a história da literatura em Portugal dos séculos XX e XXI não pode prescindir do contributo contínuo que os escritores da Brotéria com os seus saggios prestaram e prestam até hoje à vida literária portuguesa

Atrevemo-nos mesmo a afirmar que a história da literatura em Portugal dos séculos XX e XXI não pode prescindir do contributo contínuo que os escritores da Brotéria com os seus saggios prestaram e prestam até hoje à vida literária portuguesa

A revista Brotéria assinala no próximo ano o centenário de uma viragem fundamental no seu programa editorial. Fundada, em 1902, como revista de ciências naturais, dividiu-se, em 1907, em três séries: uma de Botânica, outra de Zoologia e uma terceira designada de Vulgarização Científica que, no dizer do seu fundador, Joaquim da Silva Tavares, SJ, se dirigia a um público ilustrado. Tendo os seus editores constatado que esta última série era a que recebia maior aceitação e procura, decidiram, em 1925, transformar este segmento de divulgação científica numa revista assumidamente cultural, mais abrangente, tocando temas literários, filosóficos, religiosos, políticos e sociais e não apenas científicos, como até então sucedia. Tomava por nome Brotéria Fé-Ciências-Letras. No editorial de janeiro de 1925, em que se assinala essa mutação na revista, afirmava-se que «os intelectuais são hoje uma legião que, mais do que nunca, investigam a verdade no campo religioso, procuram aumentar os cabedais dos seus conhecimentos científicos e literários e se dedicam apaixonadamente à leitura».

Passou, então, a fazer parte das suas secções a crítica literária. Poderemos mesmo dizer que não houve publicação de relevo em Portugal, particularmente a partir da segunda metade do século passado, que não tivesse sido objeto do olhar acutilante dos recensores da Casa de Escritores da Brotéria. Muitas dessas notas críticas revelaram-se “proféticas” a respeito dos percursos literários de muitos dos escritores portugueses. Se nalguns casos não estiveram isentas de polémica, como foi o caso de Miguel Torga, noutros criaram laços indiscutíveis entre autores e recensores, bem patentes na vasta coleção de exemplares autografados, com dedicatórias pessoais àqueles que se ocupariam de fazer a crítica nas secções de vida literária da revista, pertencentes ao acervo da biblioteca da Brotéria, recentemente premiada com o prémio Gulbenkian Património Maria Teresa e Vasco Vilalva.

Os recensores, alvo de dedicatórias dos autores, são, invariavelmente, Manuel Antunes, Mário Martins, João Maia e Agostinho Veloso. Por outro lado, grandes nomes da literatura portuguesa estabeleceram estreitos laços com os recensores: Virgílio Ferreira, José Régio, Fernando Namora, Vitorino Nemésio, Alves Redol, Agustina Bessa Luís, Sophia, Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Salete Tavares, Irene Lisboa, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, João Miguel Fernandes Jorge, entre muitos outros. O tom oscila entre a dedicatória impessoal ao “crítico da Brotéria”, na esperança de que a oferta seja alvo de uma recensão na revista, e aquelas que espelham laços que se vão construindo com recensores específicos, onde, por vezes, a dedicatória assume um tom misterioso que revela conversas pessoais entre o autor e o recensor – é o caso de uma das dedicatórias de Sophia para Manuel Antunes ou de Agustina para Mário Martins. José Régio, por exemplo, na dedicatória manuscrita que faz de um seu romance – O Jogo da Cabra Cega –, subscreve-se como “um criticado agradecido”. Outros autores como Aquilino Ribeiro ou Fernando Namora imploram a benevolência e mesmo a absolvição dos críticos (já que de sacerdotes se tratavam), particularmente quando as temáticas abordadas nos romances fossem passíveis de ferir a sensibilidade religiosa dos recensores.

Mas as recensões desempenham na Brotéria um outro papel: o de aguçar o apetite pela leitura dos romances ou ensaios alvo de recensão. Quando lemos, por exemplo, a nota crítica de Manuel Antunes, publicada em 1954, ao romance A Sibila, de Agustina Bessa Luís, então ainda uma ilustre desconhecida, vem-nos imediatamente o desejo de ler esse romance e de conhecer a obra da escritora. Assim sucede com variadas recensões que, em muitos dos casos, são verdadeiras peças literárias de enorme complexidade e profundidade que apontam para a leitura das obras criticadas. A propósito, lembramos como o médico Daniel Serrão, que integrou muitos anos o conselho de redação da revista, referia que a primeira coisa que lia, sempre que recebia a revista, era a secção de recensões. Atrevemo-nos mesmo a afirmar que a história da literatura em Portugal dos séculos XX e XXI não pode prescindir do contributo contínuo que os escritores da Brotéria com os seus saggios prestaram e prestam até hoje à vida literária portuguesa.

Mas as recensões desempenham na Brotéria um outro papel: o de aguçar o apetite pela leitura dos romances ou ensaios alvo de recensão. Quando lemos, por exemplo, a nota crítica de Manuel Antunes, publicada em 1954, ao romance A Sibila, de Agustina Bessa Luís, então ainda uma ilustre desconhecida, vem-nos imediatamente o desejo de ler esse romance e de conhecer a obra da escritora.

Não deixa de ser interessante que precisamente quando se assinalam cem anos dessa viragem decisiva e da atenção que os assuntos literários passaram a ocupar na revista, o Papa Francisco tenha publicado recentemente uma carta intitulada “Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na Educação”, com data de 17 de julho de 2024.

O desejo de Francisco parece bem claro numa primeira análise quando manifesta o propósito de «propor uma mudança radical de atitude em relação à grande atenção que deve ser dada à literatura no contexto da formação dos candidatos ao sacerdócio». Mas aquilo que poderia parecer um desejo salutar de contribuir para a cultura e a formação do clero alarga o seu campo de visão para se tornar num verdadeiro elogio da leitura e da literatura válido para todos. Numa linha contracorrente à tentação que assalta as novas gerações de não desviar o olhar dos écrans onde a rapidez e excesso de informação conduz a uma fragmentação do pensamento, Francisco faz o elogio da leitura lenta, meditada, mastigada, digerida.

A carta pontifícia, no estilo fluído, quase coloquial que caracteriza os documentos de Francisco, é uma verdadeira apologia do prazer de ler, onde se advoga que «a leitura abre novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente» e se acrescenta que o leitor, «quando lê um livro, de certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever».

A carta estende-se por quarenta e quatro parágrafos divididos em oito secções, precedidas por uma introdução onde o Papa manifesta o propósito da carta. As secções começam por abordar o binómio Fé e Cultura e, de seguida, desenrolam os benefícios do cultivo da leitura que vão do estímulo a uma pastoral incarnada, com o enriquecimento de vocabulário e da imaginação tão importantes na comunicação dos sacerdotes, à escuta da alteridade no «ouvir a voz de alguém» e no «ver através do olhar dos outros». Numa linha bem inaciana dos Exercícios Espirituais, coloca a leitura como um «ginásio de discernimento» e afirma que, «ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida» e talvez durante a leitura, «demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos».

Numa linha bem inaciana dos Exercícios Espirituais, coloca a leitura como um «ginásio de discernimento» e afirma que, «ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida» e talvez durante a leitura, «demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos».

É particularmente original a referência a uma leitura digerida, em que o modelo é a ruminatio  bovina, do monge Guillaume de Saint-Thierry, do século XI, do jesuíta Jean-Joseph Surin, do século XVII, que falava do «estômago da alma», e do jesuíta Michel De Certeau, do século XX, que apontava para uma verdadeira «fisiologia da leitura digestiva».  Assim, «a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais».
A carta de Francisco termina com a afirmação do poder espiritual da literatura. Sem perder de vista o desiderato inicial de ser um contributo para a formação dos pastores e fonte de inspiração para as homilias e outras formas de comunicação eclesial, sublinha que a literatura «ajuda a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais» dado que a palavra literária “é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias”. Socorrendo-se do exemplo sapiencial do livro do Genesis, sublinha que a força espiritual da literatura recorda a primeira tarefa confiada por Deus ao homem: «a tarefa de “dar nome” aos seres e às coisas» que passa pelo reconhecimento da sua própria realidade e do sentido da existência dos outros seres».

Se a função das recensões críticas da Broteria é cultivar nos leitores o desejo por ler as obras alvo da sua atenção, esperamos despertar nos nossos leitores o interesse pela leitura desta carta de Francisco a que podemos muito bem chamar “o elogio da leitura”.

in BROTÉRIA de outubro de 2024 (vol. 199-4)

 

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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