Com a publicação da terceira exortação apostólica, Alegrai-vos e Exultai (GE), o Papa Francisco confirma a sua fixação pela alegria. Considerando acertado o cliché segundo o qual existe uma necessidade pessoal de afirmarmos aquilo que nos falta – e todos sabemos bem o que é ter um chefe, ou director, ou superior cuja arrogância da sua autoridade é proporcional à sua profunda insegurança –, poderíamos interpretar a fixação de Francisco como: “digam comigo: falta-nos alegria”.
O termo latino alacrem – que significa, simplesmente, sem lágrimas – deixa-nos em aberto, sugerindo a necessidade de muitos ingredientes para experimentarmos todo o sabor que a alegria contém. Por um lado, “sem lágrimas” diz pouco da alegria, por outro, sabemos a que sabem as lágrimas em tantos momentos de verdadeira alegria. Desse modo, alegria confunde-se com plenitude, com vida em cheio, com entusiasmo, com a sabedoria que permite harmonizar tudo isso com a nossa fragilidade, com as nossas feridas e dores, perdas e desencontros, erros e tristezas.
Da mesma forma que Maria Madalena – “de quem tinham saído sete demónios” (Lucas 8,2) – é a personagem mais capacitada para receber em primeira mão a notícia da ressurreição de Jesus, porque só quem esteve morto sabe o que é voltar à vida, de modo semelhante admitimos que experimenta a alegria quem aprecia a riqueza e a intensidade dos sabores da condição humana, sendo que a riqueza maior da humanidade é a fragilidade: só a experiência de nos sabermos fragmentados alimenta a nossa fome de reunião do que, sem querermos, vai ficando para trás, de conciliação do que vamos sentindo perdido ou separado, de “re-lação” dos laços que se vão desfazendo. Se arriscarmos definir cuidar como inteirar – definição que me é muito cara –, podemos já afirmar que a alegria se experimenta no cuidado, quem cuida conhece o sabor da alegria. Só a experiência da incompletude revela a nossa profunda dependência do Deus de Jesus, ele que se define como “outros”: de cada vez que fizestes a outros foi a mim que o fizestes (cf. Mateus 25). Só carentes admitem que “não é bom que o homem esteja só” (Génesis 2,18). Só um Deus carente inventa uma maneira de se fazer carne, monta a sua tenda no meio de nós (cf. João 1,14), pergunta-nos “o que diz a escritura? como lês tu?” (Lucas 10,26), pede-nos comida (cf. Lucas 42,41), pede que o recordemos ao dividirmos o mesmo pão (cf. Lucas 22,19).
Jesus, que curou tantos, e que até nos deixa meio desconfortáveis de tão curandeiro que parece em grande parte do texto evangélico, não foi capaz de fechar as suas próprias feridas; ostenta feridas para que seja reconhecida a sua identidade (cf. João 20,27), para que fique claro que quer ficar para sempre igual a nós. O Deus apaixonado de Jesus mendiga-me a mim e a ti tal e qual somos, tal e qual estamos, na fragmentação que experimentamos e na inteireza da verdade que somos e queremos ser e de tudo o que nos define. Que certeiro o n.º 11 da GE: “Importante é que cada crente discirna o seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si próprio, quanto Deus colocou nele de muito pessoal (cf. 1Cor 12,7), e não se esgote procurando imitar algo que não foi pensado para ele”. Santidade parece significar ser-se quem se é. São esses impreparados e em discernimento constante, que nem de longe se sentem heróis, são esses os eleitos de Jesus. Sabemos isso por oposição: os fariseus, por exemplo, colaboravam com outros grupos, dentro do judaísmo, numa tarefa de lapidação de um “corpo religioso” a fim de o aperfeiçoarem e ofereceram a Deus uma religião pura, um povo santo.
Talvez o Papa se incomode com o facto de que, volvidos dois milénios, é evidente que empenhámos muitas energias a lapidar o sonho de Jesus, porque é sempre tentador montar um grupo monocromático de puros que não admitem freaks, e por isso é saudável irmos lembrando e repetindo uns aos outros que ao fazermos isso estamos a gritar aos quatro ventos que a vida e a morte de Jesus foram inúteis e em vão.
Durante a sua “vida pública”, Jesus recolheu todas as lascas dessa lapidação, juntou um bando de impuros, incapacitados, diminuídos, pecadores bem conhecidos, de freaks, e segredou ao seu Papá: “não se perdeu nem um” (João 18,9). Deste modo, Jesus é o nosso modelo de cuidador e o nosso caminho de alegria, de vida que o cuidado torna abundante. Em certa medida, os “fariseus” de todos os tempos replicam outros caminhos de santidade: julgam que a santidade é um conhecimento oculto que abre as portas à perfeição, conhecimento esse que está ao alcance de apenas alguns mais elevados – gnosticismo –, ou acreditam que o santo e o perfeito se faz com o seu próprio esforço, distinguindo-se dos pecadores e elevando-se acima destes por acumulação de um crédito de merecimentos – pelagianismo. Talvez o Papa se incomode com o facto de que, volvidos dois milénios, é evidente que empenhámos muitas energias a lapidar o sonho de Jesus, porque é sempre tentador montar um grupo monocromático de puros que não admitem freaks, e por isso é saudável irmos lembrando e repetindo uns aos outros que ao fazermos isso estamos a gritar aos quatro ventos que a vida e a morte de Jesus foram inúteis e em vão. Que outra razão levaria Jorge Mario Bergoglio a insistir à saciedade que somos pecadores? Não, não é uma metáfora. A tendência gnóstica e pelagiana – evidente em vários movimentos do catolicismo contemporâneo, florescente entre muitos jovens – é que reduz a nossa condição de pecadores a uma “força de expressão”, algo que só afecta os que convencionamos que devem carregar para sempre o fardo da impureza, os que dão escândalo por serem descobertos ou linchados nos media ou noutros tribunais populares.
Santo não é antónimo de pecador: santos são os pecadores que não desistem. Assumirmo-nos pecadores não é um exercício de nos diminuirmos ou de nos vitimizarmos: trata-se de aceitarmos a nossa condição de frágeis e carentes, de “amados sem porquê” e, por isso, capazes. Somos pecadores cheios de talentos e qualidades; somos frágeis cheios de possibilidades; na expressão de G. Agamben, somos “o aberto”. Que oportuno saborear na GE a humildade – termo que vem de húmus, o chão que pisamos e nos devolve a estatura de semelhantes, sem gente de primeira e gente de segunda, sem manias de grandezas devoradoras de tantos “outros”, sendo esse mesmo chão o lugar onde a semelhança é fecunda porque espaço de cuidado. Em todas as religiões, os conceitos de sacro e de santo – particípio passivo do verbo latino sancire – remetem para uma separação, para uma distinção de entre muitos outros. Bem sabemos que Jesus, nas várias descontinuidades de que é protagonista, propõe uma reapreciação do conceito de santidade: Jesus é Santo não por ser separado ou consagrado pelo povo, mas pela sua missão de “reunir um só rebanho e um só pastor” (João 10,16); repare-se que quem confessa “tu és o Santo de Deus” (Lucas 4,34) é um “homem tendo o espírito de um demónio imundo” a quem Jesus se aproxima, com quem fale, a quem cuida e liberta. A santidade de Jesus distingue-se bem da santidade da lei, que previa a impossibilidade de cuidar de alguém como aquele homem sem nome. E se “a Deus nunca ninguém o viu” (João 1,18), e a Filipe Jesus afirma que “quem me vê, vê o Pai” (João 14,9), a santidade de Deus (Levítico 19,2) e a perfeição que Jesus pede aos seus discípulos (Mateus 5,48), é a santidade e a perfeição ao seu estilo, ao estilo de Jesus. Note-se que no livro dos Actos dos Apóstolos, todos os personagens importantes têm uma relação com os dois personagens principais de todo o livro: espírito e palavra. Todos os que, cheios do espírito, dizem ou fazem algo, integram e cuidam. Aliás, os vários sumários do livro dão conta do trabalho principal: integrar – “havendo um acréscimo naquele de dia de quase três mil pessoas” (Actos 2,41).
Santo não é antónimo de pecador: santos são os pecadores que não desistem. Assumirmo-nos pecadores não é um exercício de nos diminuirmos ou de nos vitimizarmos: trata-se de aceitarmos a nossa condição de frágeis e carentes, de “amados sem porquê” e, por isso, capazes. Somos pecadores cheios de talentos e qualidades; somos frágeis cheios de possibilidades; na expressão de G. Agamben, somos “o aberto”
No livro dos Actos dos Apóstolos saboreamos o espírito como ruah, termo hebraico que, além do sentido de sopro e alento, se aproxima de beijo. Esse gesto inequívoco de se saber amado alimenta a certeza que envolve os primeiros cristãos, envolve e “faz respirar”, e impele todos os personagens a incluir e a cuidar, a fazer a outros o que Jesus fez com eles, a dar de graça o que de graça receberam (Mateus 10,8). Que saboroso lembrar que todos os caminhos são caminhos de santidade, porque são oportunidade de cuidar, de amar e de viver em dom de si, cada um na sua profunda originalidade. Um padre muito especial e inspirador da diocese de Lisboa dizia que “não faltam vocações na Igreja: falta é Igreja para tantas vocações”; falta instituição que chegue a tanto carisma derramado no coração de todos os homens e mulheres. Que saudades das saudações entre os cristãos nos primeiros tempos do cristianismo; uma espécie de “os santos da igreja de Lisboa saúdam os santos da igreja do Porto”. Já não falta tanto.
Que oportunos os conselhos práticos a que Francisco nos foi habituando: chega de mexericos, pára de julgar, deixa de ser maldoso, mesmo on-line, onde a difamação funciona como acto terrorista. A insistência de Francisco na bondade, na ternura, na proximidade de vizinhança, na atenção como antídoto da indiferença, devolvem-nos a sua “bem-aventurança” preferida: felizes os misericordiosos, os que perdoam e compreendem, os que se empenham diariamente em exercícios de compreensão, de tolerância e de perdão, os que todos os dias praticam o exigente exercício de colocar-se na pele do outro.
Se a fixação de Francisco na alegria é mesmo porque ele sente a falta dela entre os habitantes do Reino de Deus de tradição romana, talvez nos falte integrar mais, integrar melhor, cuidar mais, cuidar melhor. Esse é o caminho dos santos: encontrar a alegria na integração e no cuidado. De facto, alegria e santidade ao modo de Jesus, não se dissociam.
“Sois benditos quando vos insultarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós, por minha causa. Alegrai-vos e exultai porque a vossa recompensa é grande nos céus: assim perseguiram os profetas antes de vós” (Mateus 5,11-12). Parafraseando, sois benditos se fordes como Eu fui, e se vos tratarem como me trataram a mim. Alegrai-vos: sois santos e profetas comigo
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.