Lançado no Festival de Toronto, Dois Papas eleva à sétima arte a obra de Anthony McCarten. Trata-se da peça de teatro homónima (2019) cujo enredo consiste num encontro entre Bento XVI e o então Cardeal Bergoglio, pouco tempo antes do conclave que veio a eleger o atual Sumo Pontífice.
Sem dúvida que estamos perante uma obra cinematográfica de valor, não só pelo elenco de atores excecionais, tais como Anthony Hopniks, Jonathan Pryce e Juan Minujin, mas também pela música diversificada e, sobretudo, pela maneira de narrar duas vidas através de diálogos. A trama narrativa, tecida no presente de uma conversa a dois, enriquece-se com três flashbacks que nos permitem compreender e aprofundar a história do atual Sumo Pontífice. Tudo se acompanha com belos cenários, sobretudo no Vaticano, com destaque para a admirável Capela Sistina que o filme nos faz visitar no silêncio da ausência de turistas.
A humanidade dos “dois Papas” transparece constantemente. E aí reside, talvez, a maior riqueza do filme. Os dois personagens tanto se inquietam com os problemas do mundo e da Igreja dos tempos que correm, como expressam as emoções mais festivas que a banalidade de um jogo de futebol pode suscitar entre nós. Cada um deles tem uma personalidade própria, uma relação particular com Deus, um caminho pessoal, uma vocação única.
Cada um deles tem uma personalidade própria, uma relação particular com Deus, um caminho pessoal, uma vocação única.
O problema do filme, a meu ver, é deixar transparecer um dualismo, um tanto ou quanto maniqueísta, entre os dois personagens e o que eles supostamente representam. Frequentemente, ficamos com a sensação de estar perante duas visões completamente antagónicas de Igreja. Quase parece que a ortodoxia cristã se opõe à reforma da Igreja, tal é o contraste entre o conservadorismo do imaginário Bento XVI e a Igreja que agora respira com o idealizado progressismo de Francisco. Ao longo do filme, de várias maneiras, mais ou menos explícitas, sugere-se esta dicotomia entre os dois papas. Bento XVI, por exemplo, parece não conhecer tão bem os ABBA ou o Yellow submarine dos Beatles quanto Bergoglio; e este, mais aberto ao mundo do que outro, aspira a uma reforma da Igreja, em vez de defender tradições do passado.
A explicitação destes clichés empobrece, por vezes, os diálogos entre os dois papas. E convém esclarecer que muito do que Francisco afirma em relação ao celibato dos padres, por exemplo, não difere substancialmente do magistério de Bento XVI. O mesmo se diga em relação à crise dos abusos que a Igreja hoje atravessa: Francisco herdou, de facto, do seu sucessor muitas das medidas que tem vindo a implementar a este propósito.
O enredo de Meirelles sugere também um ditado, supostamente célebre, pelo menos entre os homens de Igreja, ou talvez entre os alemães, segundo o qual “Deus corrige sempre um papa presenteando outro papa ao mundo.” Afirmações como estas não mostram apenas o lado ficcional do filme: tais declarações explicitam o seu caráter ideológico. A mensagem dualista evidencia-se quando, baseando-se em tal ditado, Ratzinger explica que renuncia ao cargo em vida para que possa ver a sua própria “correção”. Eis a porta aberta para a clara dicotomia entre a Igreja de Francisco e o passado da Tradição. E isto mesmo apesar da narrativa do filme mostrar a sucessão de Bergoglio como uma vontade expressa de Bento XVI.
A preferência que o filme atribui a Bergoglio é, portanto, notória, nem que mais não seja pelo tempo atribuído à biografia do atual Sumo Pontífice, em claro contraste com os escassos minutos dedicados à vida do seu predecessor.
E, para além do dualismo ideológico que os separa radicalmente, o caráter das duas personalidades também contrasta profundamente, como se Bergoglio, aquele que protagoniza uma autêntica mudança na Igreja, fosse o humilde, enquanto que os outros, os da Tradição, seriam sobretudo arrogantes, ambiciosos ou até rudes.
É belo ver Bento XVI ao piano, executando apaixonadamente uma peça musical, reconhecendo que, nesse âmbito, ele não é infalível.
Chegamos assim à grande contradição de uma visão maniqueísta que certos diálogos do filme poderiam deixar transparecer. Pois é graças a Bento XVI que hoje temos dois papas vivos entre nós. Se nos deparamos hoje com a coexistência de um Papa em exercício e outro emérito, é porque o segundo ousou realizar o gesto profético da renúncia no fatídico dia 28 de fevereiro de 2013. Além disso, quem privou com Ratzinger diretamente, conhece a sua humildade, a sua inteligência e a sua capacidade de dialogar com o mundo e a cultura dos tempos que correm.
Evidentemente que Francisco não repete Bento XVI; e o pontificado de Bergoglio não é isento de novidades. Não, “a tradição não é um museu de coisas velhas.” Mas trata-se sempre de uma novidade enraizada no Evangelho e na herança recebida. Mais do que uma ruptura em relação ao passado, trata-se de continuar a fazer caminho. Bento XVI como Francisco, ou os outros papas, concebe a Tradição dessa maneira. Podemos “gostar do papa” Francisco, como Meirelles afirma. Mas, para expressarmos o nosso apreço por ele, não precisamos denegrir a imagem do predecessor. A Igreja sempre confiou na sabedoria de aceitar o papa que o Espírito suscita para o nosso tempo de agora.
Para além da grande mise en scène, o que pode salvar o filme de Meirelles é o retrato dos dois papas na sua humanidade e na sua capacidade de reconciliação. E é a partir dessa humanidade que o enredo expõe a complexa realidade da vida de oração, da confissão sacramental, do discernimento vocacional. Por outras palavras, ao mostrar o peso da sua consciência, deparamo-nos com pessoas que se arrependeram dos erros que todos cometemos nesta vida. E, desta forma, em vez de nos apresentarem certos príncipes da Igreja, imaculados em suas vidas, o filme coloca-nos diante de homens de carne e osso. É belo ver Bento XVI ao piano, executando apaixonadamente uma peça musical, reconhecendo que, nesse âmbito, ele não é infalível. Estamos, portanto, diante de dois personagens que, apesar de tudo, se escutam mutuamente, e se abrem ao perdão. Creio que este caminho de diálogo e de reconciliação é cada vez mais urgente nas nossas sociedades atuais.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.