Discernimento Moral Cristão: Inclusividade, Identidade e Unidade na Igreja (versão completa)

Este artigo visa recordar pontos que poderão ser importantes para um discernimento em Igreja de caminhos a explorar no futuro, realçando a tensão que terá de existir entre conceitos como inclusividade, identidade ou unidade na Igreja.

Este artigo visa recordar pontos que poderão ser importantes para um discernimento em Igreja de caminhos a explorar no futuro, realçando a tensão que terá de existir entre conceitos como inclusividade, identidade ou unidade na Igreja.

Introdução

Os tempos que estamos a viver são, como sabemos, tempos de profundas mudanças no nosso mundo. Sendo formada por homens e mulheres de cada tempo, é natural que também a Igreja possa ir sofrendo transformações no seu modo de viver. A mudança é, de resto, algo que não só encontramos sem dificuldade na longa história da Igreja, como parece até fazer parte da própria identidade da dinâmica cristã (que, além de nos desafiar a uma contínua conversão, convida-nos também a um constante aprofundamento da nossa vivência cristã, em todas as suas consequências).

Verdadeiros aprofundamentos, porém, apenas serão possíveis quando fiel e visivelmente fundados Naquele que nos propomos seguir: Jesus Cristo. É, de resto, apenas em torno Dele e da sua palavra que o grande número de pessoas que formam a Igreja (em tão grande diversidade de perspetivas e de contextos culturais) pode encontrar razões e sentido para se congregar.

Este artigo visa recordar alguns dos pontos que poderão ser importantes para um discernimento em Igreja de caminhos a explorar no futuro, realçando a tensão que terá de existir entre conceitos como inclusividade e identidade ou unidade na Igreja.

 

Parte 1
1. Jesus, Mestre de inclusividade
2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto
3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’
4. Como discernir? O valor da consciência humana individual
5. O risco dos discernimentos individualistas
6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo

Parte 2
7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?
8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta?
9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados
10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

Parte 3
11. Documentos oficiais da Igreja
12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja
13. Tensões e unidade dentro da Igreja
14. Discernindo o caminho em Igreja

 

1. Jesus, Mestre de inclusividade

Uma das questões a que na nossa cultura de hoje parece ser bastante mais sensível é o problema da discriminação. trata-se de um problema que está longe de ser novo: pelo contrário, parece ser quase tão antigo como a própria Humanidade. Felizmente, as nossas sociedades hoje parecem estar mais conscientes da questão das discriminações. E, pelo menos em alguns casos, a procurar ultrapassá-las.

Inegável parece ser, entretanto, a grande mudança que surge a partir de Jesus, graças ao seu modo de viver e de olhar as pessoas. Na verdade, a questão da dignidade de cada ser humano individual tinha sido levantada já no primeiro livro do Antigo Testamento: a pessoa humana era então referida como “imagem e semelhança de Deus” (Gen 1,26). A partir de Jesus, torna-se ainda mais claro que a “aceção de pessoas” não tem cabimento, já que Jesus nos faz filhos do mesmo Pai, irmãos uns dos outros (cfr. Lc 20,21, Mt 23,8-9).

As atitudes que vemos Jesus ter repetidamente para com os marginalizados do seu tempo confirmam isso mesmo: Jesus acolhe todos os que vêm ao seu encontro e que O queiram seguir. Mais do que isso, é Jesus que vai ao seu encontro. Não importa quem sejam, de onde venham, ou como tenham vivido antes: para Jesus todos são bem-vindos. Podemos então dizer que Jesus é Mestre também naquilo a que hoje apelidamos de ‘inclusividade’.

As atitudes que vemos Jesus ter repetidamente para com os marginalizados do seu tempo confirmam isso mesmo: Jesus acolhe todos os que vêm ao seu encontro e que O queiram seguir. Mais do que isso, é Jesus que vai ao seu encontro. Não importa quem sejam, de onde venham, ou como tenham vivido antes: para Jesus todos são bem-vindos. Podemos então dizer que Jesus é Mestre também naquilo a que hoje apelidamos de ‘inclusividade’.

2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto

Ao mesmo tempo, para Jesus não é certamente tudo igual. Jesus sonha e entrega-Se por um projeto concreto, a que Ele chama “a construção do Reino de Deus”, seu Pai. E sabe que, para que esse sonho se torne uma realidade, haverá coisas que ajudam… e coisas que não ajudam. Ou seja, para Jesus nem todos os caminhos são caminhos de construção de felicidade, ou realização humana: pelo contrário, há caminhos que são mesmo de destruição. Por isso mesmo, a quem vai encontrando no seu caminho, Jesus propõe um caminho bem concreto: “segue-Me”.

Para alguns (por exemplo pessoas que sigam por caminhos mais ecléticos, ou mais a um estilo new age) talvez o próprio Jesus e a sua proposta possam aparecer como algo ‘demasiado concreto’: talvez tais pessoas possam ter preferência por algo de mais indefinido, onde a própria imagem de Deus é mais deixada no vago, entendida de acordo com aquilo que cada um sente e experiencia em cada momento.

Se quero ser cristão, porém, se quero de facto seguir Jesus, não só não posso ficar simplesmente como estou (imóvel, parado), como também não serei propriamente eu a determinar o caminho a seguir. Porque, de facto, não é o discípulo que diz a Jesus para que Ele o siga, mas sim Jesus que convida e indica o caminho (caminho que, aliás, Ele Mesmo percorre primeiro).

3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’

Para Jesus, como sabemos, não é tudo igual: nem tudo tem o mesmo valor. Estaríamos, por isso, a entender certamente mal as coisas, se afirmássemos que ‘ser inclusivo’, ou ‘não discriminar’, implica aceitar como equivalentes todos os tipos de comportamentos ou todos os estilos de vida (o que, aliás, se revelaria contraditório: discriminar as pessoas, por exemplo, não pode ser um comportamento aceitável para quem rejeite a discriminação).

Na verdade, o problema da discriminação não terá tanto a ver com comportamentos, mas sobretudo com pessoas. Ou seja, de acordo com Jesus, somos chamados a não discriminar pessoas. Mas, no que diz respeito a comportamentos, não poderemos já dizer o mesmo.

Porque, de facto, uma questão é o ‘de onde vimos’. E outra questão, já bem diferente, é o ‘para onde queremos ir’. Jesus, na verdade, não parece ter muito interesse em aprofundar o percurso passado de uma pessoa, ou em saber de onde ela vem, que tipos de comportamento teve, que estilo de vida viveu. Mas já não podemos certamente dizer que não Lhe interesse o ‘para onde’ essa pessoa está a apontar para ir no futuro, que caminhos pretende percorrer. E isto, precisamente, porque há comportamentos ou estilos de vida que Ele valoriza (e outros que não tanto).

4. Como discernir? O valor da consciência humana individual

Pelo menos em parte, talvez como reação aos acontecimentos trágicos do século XX, parece ser hoje grande o valor atribuído ao indivíduo, a cada ser humano individual. Talvez por ter bem consciência dos desastres a que os totalitarismos sociais (de direita e de esquerda) nos conduziram no século passado, o respeito por cada indivíduo humano parece ser hoje, felizmente, um do traço essencial da nossa cultura atual (pelo menos a nível de princípios).

O reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana está, como vimos, em sintonia com os valores de uma cultura judaico-cristã. Como atrás referido, esta vê em cada ser humano uma imagem e semelhança do divino. Por isso o Concílio Vaticano II defende que a “dignidade da consciência moral” de cada um deve ser por todos reconhecida, o que exige que cada pessoa possa proceder livremente, e “segundo a própria consciência” (cfr. Gaudium et Spes 16-17).

O reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana está, como vimos, em sintonia com os valores de uma cultura judaico-cristã. Como atrás referido, esta vê em cada ser humano uma imagem e semelhança do divino. Por isso o Concílio Vaticano II defende que a “dignidade da consciência moral” de cada um deve ser por todos reconhecida, o que exige que cada pessoa possa proceder livremente, e “segundo a própria consciência” (cfr. Gaudium et Spes 16-17).

5. O risco dos discernimentos individualistas 

Ao mesmo tempo, o mesmo texto do Concílio reconhece também que a consciência pessoal de cada um pode também errar. Uma das principais preocupações de uma consciência que queira acertar será, pois, a de procurar a sua própria formação: de reconhecer que, para distinguir o bem do mal, precisará de aprender – e, desde logo, de aprender com outros: com outras consciências humanas (não apenas com a sua).

Um paradigma meramente individual acabará, portanto, por reduzir significativamente as possibilidades de um autêntico discernimento ético. De facto, uma pessoa só, fechada em si mesma, dificilmente conseguirá ultrapassar os limites da sua própria subjetividade (aliás, por alguma razão diz o povo que “ninguém é bom juiz em causa própria”).

Um paradigma meramente individual acabará, portanto, por reduzir significativamente as possibilidades de um autêntico discernimento ético. De facto, uma pessoa só, fechada em si mesma, dificilmente conseguirá ultrapassar os limites da sua própria subjetividade (aliás, por alguma razão diz o povo que “ninguém é bom juiz em causa própria”).

De facto, a simples valorização do indivíduo apenas (entendendo-o como que separado de outros) parece claramente insuficiente para uma visão cristã da pessoa humana, já que a dimensão de relação com outros é entendida como intrínseco ao próprio ser humano (criado à imagem de um Deus-Trindade). Aliás, o próprio sentido da vida de cada ser humano não se entenderá, sem essa dimensão social: os seus horizontes de vida não podem restringir-se à mera auto-referencialidade, nem os seus objetivos restringirem-se à simples auto-expressão e auto-realização (ou aos próprios anseios e desejos). Caso contrário, como Jesus nos alerta, em vez de nos conduzirem à vida, tais caminhos acabarão por conduzir-nos inevitavelmente ao sem-sentido e à frustração (Mc 8,35).

Por outro lado, um paradigma de tipo individualista dificilmente poderá conduzir à relação com o Deus “vivo e verdadeiro”: pelo contrário, mais facilmente poderá levar à criação de um ídolo, de um ‘deus’ feito afinal à medida do próprio eu (e até ao encerramento numa espiritualidade solipsista). Não pode Deus ser encontrado dentro de nós mesmos, no nosso coração? Certamente que sim. Porém, para os cristãos, Deus pode ser encontrado também, e de igual modo, no coração dos outros.

Por outro lado, um paradigma de tipo individualista dificilmente poderá conduzir à relação com o Deus “vivo e verdadeiro”: pelo contrário, mais facilmente poderá levar à criação de um ídolo, de um ‘deus’ feito afinal à medida do próprio eu (e até ao encerramento numa espiritualidade solipsista).

A este respeito, talvez possa ser revelador um comentário que, a propósito do sacramento da reconciliação (confissão), se ouve por vezes dizer: “Eu confesso-me ‘diretamente’ a Deus”. De um ponto de vista cristão, afirmações deste tipo poderão ser bastante questionáveis – sobretudo se baseadas no pressuposto que Deus pode ser encontrado apenas no próprio coração, na própria subjetividade… e portanto não tanto na subjetividade de outros – nem sequer dos que foram escolhidos para representar a comunidade cristã (cfr. Lc 6,13: de entre os muitos discípulos que O seguiam, Jesus quis intencionalmente destacar doze).

6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo 

Na linha da valorização de cada indivíduo humano, são também hoje frequentes os convites a que cada um possa ser ‘autêntico’, ou até ‘espontâneo’, de acordo com aquilo que cada qual alegadamente ‘é’. “Segue o que sentes” parece ser um dos slogans dos nossos dias. Mas que posso dizer eu daquilo que ‘sou’ verdadeiramente, se dentro de mim testemunho haver mais do que uma coisa só (e mais ainda em momentos diferentes)? Que poderei revelar como o meu ‘eu autêntico’, se dentro de mim se encontrar não uma só, mas várias tendências e dinâmicas (algumas até contraditórias entre si)?

Na verdade, do ponto de vista cristão, uma simples ‘espontaneidade’ (de acordo com o que, em cada momento, se sente) dificilmente pode ser considerada como suficiente. Ou poderei dizer que são sempre puros e bons todos os apelos ou impulsos que brotam dentro de mim? Ou poderei dizer que, a tudo o que surge na minha mente ou no meu coração, eu quero dar seguimento e concretizar, sem mais? Talvez fosse esse o caso, se o nosso mundo não tivesse sido marcado também pela realidade do pecado. Mas sabemos bem que a realidade não é essa. E sabemos também que o pecado pode limitar o nosso próprio modo de ler e de entender a realidade. De facto, o atrás citado documento do Vaticano II reconhece não apenas que a consciência pessoal pode errar, mas também que o hábito do pecado pode ir progressivamente “cegando” essa mesma consciência (GS 16). Daí a necessidade de transformação (ou ‘conversão’), proclamada por tantos profetas até João Batista. E, finalmente, também pelo próprio Jesus.

A nível da espiritualidade inaciana, logo ao definir o que entende por “Exercícios Espirituais”, Inácio de Loiola refere a necessidade de “ordenar os afetos” (EE[1],[21]). A própria estrutura dos Exercícios reflete essa necessidade, ao incluir logo nos seus inícios (na ‘primeira semana’) aquilo que, na tradição clássica, se chamava a ‘via purgativa’. Só depois de se ter percorrido esta primeira ‘semana’, propõe Inácio que se avance para as ‘semanas’ seguintes (correspondentes à ‘via iluminativa’ e à ‘via unitiva’).

A nível da espiritualidade inaciana, logo ao definir o que entende por “Exercícios Espirituais”, Inácio de Loiola refere a necessidade de “ordenar os afetos” (EE[1],[21]). A própria estrutura dos Exercícios reflete essa necessidade, ao incluir logo nos seus inícios (na ‘primeira semana’) aquilo que, na tradição clássica, se chamava a ‘via purgativa’. Só depois de se ter percorrido esta primeira ‘semana’, propõe Inácio que se avance para as ‘semanas’ seguintes (correspondentes à ‘via iluminativa’ e à ‘via unitiva’).

E no entanto, talvez por, no passado, se ter insistido demais (ou até de um modo moralista, e não-cristão) na realidade do pecado, nos dias de hoje, este tema dos “afetos desordenados” parece ser um pouco mais difícil de se levantar, e de ser tratado de uma maneira construtiva e saudável. De facto, como vimos, de acordo com a cultura atual, mais facilmente é estimulado simplesmente um (mal entendido) desejo de ‘autenticidade’, convidando a que cada pessoa seja simplesmente ‘aquilo que é’ (em cada momento), sem mais.

Inácio prevê que a primeira semana dos Exercícios Espirituais possa ser dada sem as seguintes; mas a inversa já não é verdadeira (cfr. EE[18]). De facto, uma vez que os Exercícios estão essencialmente estruturados para que o participante possa tomar decisões, fazer escolhas em liberdade, propor as semanas seguintes, sem que o participante tenha verdadeiramente passado pela primeira semana (sem procurar antes “ordenar os afetos”), acarretará então, naturalmente, o (clássico) risco de querer “que Deus venha direito às suas afeições desordenadas” (cfr. EE[169]). Talvez por isso, já séculos antes Paulo chamava a atenção para o perigo de usar a liberdade como meio para satisfazer os próprios apetites (Gal 5,13). E Pedro advertia para o risco de a liberdade ser utilizada como pretexto para se fazer o mal (1ª Ped 2,16).

Se queremos verdadeiramente discernir o que fazer, ou deixar de fazer, dificilmente poderemos, pois, ficar entregues apenas a nós próprios: para que possamos optar por caminhos que conduzam a mais vida, precisamos que as nossas escolhas tentem estar fundadas também em referências que transcendam o limitado espaço da nossa subjetividade. Para os cristãos, como sabemos, a vida e as palavras de Jesus são a grande referência que nos aponta para “caminhos de vida” e “de eternidade” (Sl 16 e Sl 139).

7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?

Que nos diz, então, Jesus sobre caminhos a seguir? Sabemos que Ele resume tudo no amor: no amor a Deus “com todo o coração” e ao próximo “como a si mesmo” (cfr. Mt 22,37-40). Mas, para além disso desta indicação resumida ou geral, Jesus também indica comportamentos ou práticas de vida mais concretas (a adotar ou a evitar), de forma a que esse amor possa ser posto em prática?

A este propósito, podemos desde logo recordar a ocasião em que um jovem se aproxima de Jesus para Lhe perguntar o que deveria fazer “para alcançar a vida eterna”. Como resposta, antes de lhe propor que O siga, Jesus aponta em primeiro lugar para o ‘decálogo’, referindo-lhe alguns dos mandamentos (cfr. Mc 10,19). Os mandamentos (que vinham a acompanhar o povo judeu desde há séculos) não parecem, pois, ser irrelevantes ou ultrapassados para Jesus.

De facto, algo da pregação de Jesus pode ter levado alguns a pensar que, com a sua vinda, tudo aquilo que estava para trás não teria mais sentido. Talvez por se aperceber disso, imediatamente a seguir a proclamar as suas Bem-Aventuranças, Jesus diz explicitamente: “Não penseis que eu vim revogar a Lei”, acrescentando depois “não passará um só jota, ou um só ápice da Lei” (cfr. Mt 5,17-48).

Portanto, explicitamente, Jesus não desvaloriza nem exclui os valores ou as indicações éticas anteriores. Pelo contrário, Ele afirma claramente ter vindo para as aprofundar, indo mais além do prescrito até então: na mesma passagem, Jesus diz que a sua proposta não só não nega, mas vai ainda mais além daquilo “que foi dito aos antigos”.

Mais do que isso, dirigindo-se depois àqueles que têm responsabilidades de ensinar, Jesus acrescenta ainda que “se alguém transgredir um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu”. Estranho seria, portanto, que alguém dentro da Igreja se sentisse com autoridade para propor precisamente o contrário do indicado por Jesus, reduzindo o alcance dos ideais que Ele propõe.

Na verdade, todos os ensinamentos e sabedoria acumulada ao longo de séculos antes de Jesus (incluindo o decálogo) parecem ter-se revelado como plataformas propedêuticas e estruturantes eficazes, que tornaram possível que Jesus pudesse ter vindo: que a sua proposta – que vai muito mais além! – pudesse ter-nos finalmente chegado (a este propósito, a figura de João Batista, o ‘precursor’, poderia também ser aqui recordada).

Como uma das indicações do decálogo, talvez possamos mencionar em particular aqui o que diz respeito ao quinto mandamento: o respeito pela vida humana. Na verdade, mais do que simplesmente “não matar”, Jesus convida-nos a que cuidemos ativamente da vida humana, em todas as suas dimensões, sobretudo a dos mais frágeis e dos mais necessitados. Para além de questões como o aborto ou a eutanásia, o ensinamentos de Jesus podem, por exemplo, ser vistos como estendendo-se também à necessidade de apoio a todos aqueles que não dispõem de um mínimo para viver. E também à necessidade de transformação das estruturas das nossas sociedades, quando estas são geradoras de sofrimento e de injustiça (tal como o Papa Francisco tem chamado a atenção, “esta economia mata” – Evangelii Gaudium, 53).

Como uma das indicações do decálogo, talvez possamos mencionar em particular aqui o que diz respeito ao quinto mandamento: o respeito pela vida humana. Na verdade, mais do que simplesmente “não matar”, Jesus convida-nos a que cuidemos ativamente da vida humana, em todas as suas dimensões, sobretudo a dos mais frágeis e dos mais necessitados. Para além de questões como o aborto ou a eutanásia, o ensinamentos de Jesus podem, por exemplo, ser vistos como estendendo-se também à necessidade de apoio a todos aqueles que não dispõem de um mínimo para viver. E também à necessidade de transformação das estruturas das nossas sociedades, quando estas são geradoras de sofrimento e de injustiça (tal como o Papa Francisco tem chamado a atenção, “esta economia mata” – Evangelii Gaudium, 53).

Por serem tão contra-culturais, outros temas talvez possam ser menos palatáveis ainda para os ouvidos de hoje: por exemplo, aqueles que se referem ao modo de viver a sexualidade. Para muitas pessoas hoje, de facto, as indicações do sexto e do nono mandamentos aparecerão provavelmente como algo de incompreensível, ou até mesmo de castrador (e, por isso, não é raro que sejam até ridicularizadas). Na verdade, numa cultura hiper-sexualizada, com estímulos diários vindos de múltiplas direções, uma relação de tipo romântico-sexual é muitas vezes apontada como verdadeiro centro da vida humana: dimensão sem a qual a felicidade não é concebível. Daí que a prática da sexualidade possa ser entendida hoje como um direito (direito de tal modo importante que chega a falar mais alto que o direito à vida).

É verdade que, até recentemente, o peso colocado na sexualidade poderá ter sido exagerado (e sobretudo a partir de uma perspetiva moralista e repressiva). Mas isso não implica que um equilíbrio saudável tenha agora de ser procurado através de uma canonização ingénua de todos os nossos impulsos e desejos. A proposta de Jesus vem, de resto, ajudar a relativizar (ou a des-absolutizar) o papel da sexualidade nas nossas vidas: algo que, para uns, pode aparecer não como caminho de felicidade, mas antes como uma via masoquista para a frustração.

Desde o início da sua pregação, porém, Jesus parece saber bem que nem todos irão aderir à sua proposta. Aliás, o exemplo atrás mencionado (Mc 10,17-22) é um dos casos explícitos em que o jovem que Jesus convida a segui-Lo acaba, no final, por Lhe voltar as coisas (provavelmente, por ter ficado dececionado com aquilo que ouviu). Talvez esse jovem estivesse à espera de ouvir algo de menos exigente; talvez estivesse à procura de algo mais na linha da ‘auto-afirmação’, ou da expressão de alguns dos seus anseios ou desejos pessoais.

Jesus não desconhece que a tendência de boa parte das pessoas pode ser a de se dirigir mais para aqueles que irão dizer aquilo que elas mesmas querem ouvir. Mas sabendo que o facilitismo é, afinal de contas, um falso amor, Jesus nunca parece muito preocupado em ser (ou deixar de ser) popular. Nem tem a tentação de oferecer ‘saldos’ na sua proposta para, com isso, atrair maior número de seguidores. Porque, na verdade, o seu objetivo é outro: o seu objetivo é o verdadeiro bem das pessoas, o verdadeiro bem da Humanidade.

Ao mesmo tempo, por outro lado, é também indiscutível que Jesus tem sempre em conta a situação concreta de cada pessoa: não pede o mesmo a todas as pessoas (nem o pede de igual forma). Antes tem em conta quem tem diante, aceitando o ritmo e os passos que, a cada momento, cada um consegue ir dando. Porque, de facto, não somos todos iguais: não temos todos iguais dons; e não partimos todos do mesmo lugar. Mais do que isso, mesmo quando falhamos e demoramos a acertar, Jesus não desiste de nós (recordemos o exemplo de Pedro). Jesus bem sabe da massa de que somos feitos e usa sempre de enorme paciência e pedagogia para conosco.

Ao mesmo tempo, por outro lado, é também indiscutível que Jesus tem sempre em conta a situação concreta de cada pessoa: não pede o mesmo a todas as pessoas (nem o pede de igual forma). Antes tem em conta quem tem diante, aceitando o ritmo e os passos que, a cada momento, cada um consegue ir dando. Porque, de facto, não somos todos iguais: não temos todos iguais dons; e não partimos todos do mesmo lugar. Mais do que isso, mesmo quando falhamos e demoramos a acertar, Jesus não desiste de nós (recordemos o exemplo de Pedro). Jesus bem sabe da massa de que somos feitos e usa sempre de enorme paciência e pedagogia para conosco.

8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta? 

Alguém poderia pensar que, para conhecer a proposta de Jesus para as nossas vidas hoje, bastaria ter então acesso ao texto dos Evangelhos. Na vida real, porém, as coisas serão, evidentemente, um pouco mais complexas. E isto devido, sobretudo, à sempre-presente questão da interpretação: “Como lês tu?” (cfr. Lc 10,26).

Como interpretamos nós as Escrituras? A pergunta não é, certamente, despropositada, uma vez que diferentes pessoas podem ter diferentes interpretações. Na verdade, se deixarmos as coisas apenas ao critério da interpretação de cada indivíduo (ou de cada comunidade cristã local), no limite, o texto das Escrituras talvez possa acabar por dar para tudo, e para o contrário de tudo. A este propósito, podemos até recordar as tentações do próprio Jesus. De facto, os evangelhos relatam que, numa delas, com o objetivo de desviar Jesus do seu caminho, a dada altura o tentador recorre precisamente a uma citação (autêntica) das Escrituras (cfr. Mt 4,6 / Lc 4,9-11).

Como interpretamos nós as Escrituras? A pergunta não é, certamente, despropositada, uma vez que diferentes pessoas podem ter diferentes interpretações. Na verdade, se deixarmos as coisas apenas ao critério da interpretação de cada indivíduo (ou de cada comunidade cristã local), no limite, o texto das Escrituras talvez possa acabar por dar para tudo, e para o contrário de tudo. A este propósito, podemos até recordar as tentações do próprio Jesus. De facto, os evangelhos relatam que, numa delas, com o objetivo de desviar Jesus do seu caminho, a dada altura o tentador recorre precisamente a uma citação (autêntica) das Escrituras (cfr. Mt 4,6 / Lc 4,9-11).

Assim sendo, se deixamos que a interpretação da Sagrada Escritura fique simplesmente “ao critério de cada um”, torna-se inevitável que a comunidade dos seguidores de Jesus se acabe por ir sucessivamente fragmentando: basta que surja uma divergência séria. Este é, de resto, um dos dramas do princípio “sola Scriptura” (somente as Escrituras).

Ao mesmo tempo, sabemos também que, com o avançar dos tempos, novas questões vão surgindo: questões que, no tempo de Jesus, não se colocavam e que hoje se apresentam bem diante de nós e não podemos evitar. E aliás, mesmo baseando-nos em tudo o que Jesus disse ou fez, sabemos que dificilmente seria possível encontrar resposta perfeita e acabada para todas as variantes de questões possíveis (de resto, dar resposta a questões morais não terá provavelmente sido, sequer, o objetivo principal da sua vida e da sua missão).

Como discernir então o que é justo para questões morais concretas da vida de hoje? Como poderá um cristão fazê-lo? Evidentemente, para algumas das questões, as respostas são claras e óbvias. Para outras, porém (incluindo talvez algumas das questões mais “fraturantes” dos nossos tempos), talvez já não seja tanto assim.

9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados

Tendo em conta as anteriormente referidas limitações que um discernimento meramente individualista pode ter, que outras possibilidades pode haver? Sem os outros, sem a perspetiva que outras pessoas nos podem trazer, talvez não haja muitas alternativas.

Na verdade, mesmo reconhecendo a dignidade de cada ser humano individual, a visão cristã católica entende que o caminho de um verdadeiro discernimento ético não se pode restringir apenas à primeira pessoa do singular. De facto, mais do que valorizar indivíduos humanos, tidos como ‘avulsos’ ou separados uns dos outros, o cristianismo reconhece e valoriza também, e simultaneamente, as relações que os seres humanos estabelecem entre si. Ou seja, mais do que valorizar simplesmente o ‘Eu’ (ou um conjunto de ‘Eu’s), o cristianismo valoriza também a realidade do ‘Nós’. É daí, de resto, que surge o próprio conceito de ‘Igreja’, termo que deriva de uma palavra grega que pode ser traduzida como ‘Assembleia’.

Não será provavelmente por acaso que, ao indicar onde iria poder ser encontrado, Jesus não se refira a indivíduos isolados, mas fale antes de “dois ou três” que se reúnem em seu nome (cfr. Mt 18,20). Parece, pois, claro que o cristianismo não é compatível com espiritualidades de tipo individualista (e, menos ainda, de tipo solipsista). E, tal como acontece com qualquer grupo humano, também os cristãos terão então necessidade de algum tipo de autoridade que possa dirimir as diferenças que surgem (seja sobre a interpretação das Escrituras, sobre questões morais, ou outras quaisquer). Se assim não for, como vimos, não demorará muito tempo até que uma comunidade deixe de o ser, resvalando para um processo de fragmentação.

10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

Diferenças de entendimento entre cristãos é algo que sempre houve desde o início (e provavelmente terão até ter sido mais profundas nos primeiros séculos). Tendo presente que as diferenças entre comunidades era um dado real, o termo grego ‘católico’ surge então para indicar precisamente aquilo que era comum a todas as comunidades cristãs (e não característico apenas de uma ou outra comunidade local). Em português, o termo ‘católico’ pode ser traduzido por ‘de todos’, ou ‘comum a todos’, ou ainda ‘universal’.

A formação do Credo que recitamos hoje em todas as Igrejas pode ser aqui apontada como exemplo de um esforço bem sucedido para alcançar uma síntese unificadora (no meio de considerável diversidade). É de notar, de facto, que o texto do Credo é redigido num contexto histórico em que uma grande variedade de afirmações sobre a fé eram feitas: algumas delas pacíficas; outras já mais discutíveis; e outras ainda vistas como não aceitáveis para a quase totalidade dos representantes das diversas comunidades cristãs. O texto do Credo foi então redigido para definir aquilo que era comum a todos (ou, pelo menos, a quase todos): ou seja, aquilo que era ‘católico’. Uma vez que, por uma questão de coerência com aquilo que Jesus tinha revelado, nem todas as afirmações eram vistas como aceitáveis, o texto do Credo surge para definir limites: para definir os contornos dentro dos quais se reveem todos aqueles que querem fazer parte da comunidade cristã ‘católica’. Eventuais posições que se encontrassem fora dos limites definidos pelo Credo comum não eram reconhecidas como suas, pela comunidade cristã.

Uma vez que, por uma questão de coerência com aquilo que Jesus tinha revelado, nem todas as afirmações eram vistas como aceitáveis, o texto do Credo surge para definir limites: para definir os contornos dentro dos quais se revêem todos aqueles que querem fazer parte da comunidade cristã ‘católica’. Eventuais posições que se encontrassem fora dos limites definidos pelo Credo comum não eram reconhecidas como suas, pela comunidade cristã.

E a nível de moral e de costumes: deverá a Igreja definir limites, também nesses campos? Diante de uma pergunta como esta, é de notar, desde logo, que numa cultura como a nossa, na qual a liberdade individual é tão valorizada, não parece ser facilmente aceite (por vezes, até por parte de cristãos) que o discernimento moral pessoal possa estar acompanhado ou balizado por indicações que não provenham do próprio eu. Parece hoje haver, aliás, grande dificuldade em aceitar que o leque de possibilidades de escolha de cada um possa não ser ilimitado. Não poucas vezes, a única regra aceite parece até ser a de que “cada um sabe de si” (e os outros nada terão que ver com isso).

E a nível de moral e de costumes: deverá a Igreja definir limites, também nesses campos? Diante de uma pergunta como esta, é de notar, desde logo, que numa cultura como a nossa, na qual a liberdade individual é tão valorizada, não parece ser facilmente aceite (por vezes, até por parte de cristãos) que o discernimento moral pessoal possa estar acompanhado ou balizado por indicações que não provenham do próprio eu. Parece hoje haver, aliás, grande dificuldade em aceitar que o leque de possibilidades de escolha de cada um possa não ser ilimitado. Não poucas vezes, a única regra aceite parece até ser a de que “cada um sabe de si” (e os outros nada terão que ver com isso).

E no entanto, pelo menos para alguns exemplos mais extremos, poderia parecer bastante estranho se, a nível moral, tudo tivesse de ser aceite na Igreja, e nenhum tipo de comportamento ou prática pudesse ser questionado. Por exemplo, poderia ser tido como aceitável pela Igreja que alguém pudesse enriquecer à custa da exploração de trabalhadores, não lhes pagando salário (ou não lhes pagando um salário justo)? Ou poderia ser aceite que um cristão participasse no tráfico de droga (que acaba por destruir as vidas de tantas pessoas)? Ou ainda, que cristãos pudessem participar em grupos mafiosos ou racistas, recorrendo à violência para atingir os seus fins? E, no entanto, aconteceu já haver pessoas que, afirmando-se como cristãs, acabaram por adotar comportamentos deste tipo. Deverão tais comportamentos ser tolerados, sem mais, pelo resto da comunidade cristã? Deverá a comunidade cristã deixar que questões como essas fiquem simplesmente “ao critério de cada um”?

Na verdade, não pertencendo nós ao mundo dos ‘puros espíritos’, qualquer grupo tem necessidade de um mínimo de indicações de práticas (sejam estas mais estreitas ou mais amplas, mais específicas ou mais genéricas). De facto, quando um grupo humano não define com um mínimo de clareza as regras do contrato social que entende como fundamentais, tal indefinição acaba, a prazo, por revelar-se insustentável para essa comunidade. E isto porque, mesmo sendo o essencial, os princípios inspiradores podem por sua própria natureza prestar-se sempre a inúmeras ambiguidades de interpretação. Assim, se as dimensões práticas da vida forem todas deixadas simplesmente no vago, ao critério de cada um, não é difícil de prever o que poderá acontecer: cedo ou tarde, isso pode acabar por resultar em derivas que levem a que a comunidade comece a perder a sua identidade, o seu “sal” (cfr. Lc 14,34). E, ao perder a sua identidade, a unidade dificilmente pode manter-se por muito tempo.

Na verdade, não pertencendo nós ao mundo dos ‘puros espíritos’, qualquer grupo tem necessidade de um mínimo de indicações de práticas (sejam estas mais estreitas ou mais amplas, mais específicas ou mais genéricas). De facto, quando um grupo humano não define com um mínimo de clareza as regras do contrato social que entende como fundamentais, tal indefinição acaba, a prazo, por revelar-se insustentável para essa comunidade.

Sobre este mesmo assunto, curiosamente, aquando da fundação da Companhia de Jesus, Sto.Inácio de Loiola levantou também a questão de saber se se justificaria haver algum tipo de normas mais concretas para os jesuítas. De facto, para Inácio era bem claro que, mais do que qualquer tipo de regras exteriores, deveria ser “a interior lei da caridade e amor” a guiá-los. E no entanto, mesmo tendo isso bem presente, Inácio enumera uma série de razões que o levam a concluir ser, ainda assim, necessário haver de facto um texto com indicações mais práticas, “que ajudem para melhor proceder”  (Const.[134]). E é deste modo que Inácio começa a redigir as Constituições da Companhia de Jesus.

11. Documentos oficiais da Igreja

Tal como o texto do Credo (embora não com a mesma autoridade), os documentos oficiais da Igreja hoje tentam então plasmar aquilo que a comunidade cristã, liderada pelos seus pastores, interpreta como proposta de Jesus para os nossos tempos.

Se, como atrás referido, é verdade haver hoje dificuldade em aceitar que o leque de possibilidades de escolhas pessoais possa não ser ilimitado, então não é difícil de entender porque é que a popularidade de documentos oficiais da Igreja possa não estar a experimentar os seus melhores dias. De facto, em alguns ambientes eclesiais, a mera referência ao indicado em documentos como o Código de Direito Canónico ou o Catecismo da Igreja Católica parece, por vezes, despertar sentimentos de indiferença, quando não mesmo de aversão. Isto como se não fizesse sentido algum que a Igreja redigisse documentos desta natureza (como se o ideal fosse que tais tipos de documentos simplesmente não existissem).

É verdade que, como não podia deixar de ser, documentos como estes tratam das questões em termos genéricos ou abstratos – enquanto a vida real é sempre concreta e situada (e sempre mais complexa, e com mais variáveis que qualquer conjunto de documentos possa prever).

E também é, sem dúvida, verdade que, para um cristão, documentos desta natureza (ou pelo menos um seu excessivo protagonismo) poderão despertar ou conduzir a tendências moralistas ou legalistas – precisamente aquelas que tanto resistiram e tantas dificuldades criaram a Jesus e à sua missão (acabando, no final, por contribuir até para a sua morte). Não é, certamente, nenhuma ‘Lei’ (por mais perfeita que, a nível teórico, possa parecer) que os cristãos adoram e procuram seguir: é, isso sim, a pessoa e a vida de Jesus.

E também é, sem dúvida, verdade que, para um cristão, documentos desta natureza (ou pelo menos um seu excessivo protagonismo) poderão despertar ou conduzir a tendências moralistas ou legalistas – precisamente aquelas que tanto resistiram e tantas dificuldades criaram a Jesus e à sua missão (acabando, no final, por contribuir até para a sua morte). Não é, certamente, nenhuma ‘Lei’ (por mais perfeita que, a nível teórico, possa parecer) que os cristãos adoram e procuram seguir: é, isso sim, a pessoa e a vida de Jesus.

Mas a questão que podemos aqui levantar é: será que, pelo receio de cair em legalismos ou moralismos, os cristãos devem desistir de elaborar documentos comuns, que procuram apontar para o estilo de vida ao qual são chamados por Jesus a viver (tal como a comunidade cristã de cada tempo o entende)? Ou, mais ainda do que isso, poderá uma qualquer comunidade humana subsistir, sem definir explicitamente os contornos mínimos da sua doutrina e dos estilos de vida que aponta como ideais (bem como dos que vê como não aceitáveis)?

Para Jesus, como vimos, é indiscutível que nem todos os comportamentos têm o mesmo valor: que nem todos os estilos de vida são igualmente construtores de paz, de justiça e de felicidade. E de facto, através de documentos, também a comunidade cristã tenta indicar aquilo que, para cada tempo, considera louvável e digno de ser cultivado, a par daquilo que não lhe parece aceitável (com formulações que terão certamente de ir sendo constantemente revistas e atualizadas). Qual a autoridade que esses documentos da Igreja terão hoje?

No caso específico da espiritualidade inaciana, o livro dos Exercícios Espirituais, logo no seu texto inicial do “Princípio e Fundamento”, ao referir-se a como devemos fazer nossas escolhas, Inácio especifica claramente: “em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre alvedrio, e não lhe está proibido”. E mais adiante, nos mesmos Exercícios, fala da existência de questões em que “não há mais que escolher” (cfr. EE[171][172]). Talvez estas possam não ser hoje as passagens mais realçadas dos Exercícios. E, no entanto, fazem, também elas, parte da herança espiritual inaciana.

12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja

As pessoas que procuram seguir Jesus ‘em comunhão’ com a Igreja Católica (ou seja, de acordo com o que a comunidade cristã interpreta como sendo seguimento de Jesus para os nossos tempos) celebram então juntas a Eucaristia. E recebem nessa ocasião, o sacramento a que chamam precisamente de sacramento da ‘comunhão’ (comunhão eucarística).

É claro que, pela sua maneira de pensar, uma pessoa poderá em consciência não se rever naquilo que a Igreja oficialmente ensina. E, mais do que isso, uma pessoa poderá decidir viver de um modo que contrasta diretamente com a proposta que a Igreja faz, como interpretação do seguimento de Jesus para hoje. Porém, se uma tal pessoa, em consciência, não se sente ‘em comunhão’ com aquilo que a Igreja propõe fará então algum sentido que, ainda assim, se apresente depois precisamente diante de um representante oficial dessa mesma Igreja para, das suas mãos, receber o sacramento da ‘comunhão’? Não representaria tal gesto uma forte incoerência? (e isto numa celebração tida como sagrada para os cristãos). De facto, em tal caso, aquilo que o sacramento eucarístico pretende representar (comunhão com Jesus e com a comunidade cristã) estará em desacordo com aquilo que essa pessoa interiormente sente e vive.

Certamente que a comunhão eucarística não é, nem nunca foi, uma espécie de “prémio para os puros”. Se assim fosse, quem poderia então ousar recebê-la? Qual de nós poderia dizer não ter incoerências ou falhas em tudo o que Jesus nos propõe? No entanto, dizer isto não é equivalente a dizer que então tudo é igual. De facto, para recebermos a comunhão eucarística, não nos é requerido que sejamos perfeitos no seguimento de Jesus (quem pode dizer que o é?). Mas é requerido, isso sim, um verdadeiro desejo interior de querer seguir Jesus, de querer de facto pôr em prática os seus ensinamentos (tal como a Igreja o entende). Não são as nossas obras que nos salvam, mas sim a fé em Jesus: a fé de que é Nele que encontramos a salvação. Sem essa fé, e sem esse desejo interior autêntico de querer pôr em prática os ensinamentos de Jesus (na medida das nossas possibilidades, e da nossa vocação particular), receber a comunhão eucarística representaria então uma contradição entre sinal exterior e realidade interior.

Certamente que a comunhão eucarística não é, nem nunca foi, uma espécie de “prémio para os puros”. Se assim fosse, quem poderia então ousar recebê-la? Qual de nós poderia dizer não ter incoerências ou falhas em tudo o que Jesus nos propõe? No entanto, dizer isto não é equivalente a dizer que então tudo é igual. De facto, para recebermos a comunhão eucarística, não nos é requerido que sejamos perfeitos no seguimento de Jesus (quem pode dizer que o é?). Mas é requerido, isso sim, um verdadeiro desejo interior de querer seguir Jesus, de querer de facto pôr em prática os seus ensinamentos (tal como a Igreja o entende).

É também por isso que a Igreja diz que, pelo menos em caso de pecado grave, uma pessoa não deverá receber a comunhão, sem antes se ter confessado. E, de facto, já S.Paulo tinha escrito que um cristão não deveria aproximar-se da comunhão eucarística sem antes “examinar-se a si próprio”. Num contexto onde o acesso à eucaristia parecia ter-se tornado algo indiscriminado, S.Paulo não hesitou em afirmar que quem recebe a comunhão sem para tal estar devidamente preparado “come e bebe a sua própria condenação” (1ª Cor 11,27-32). Ou seja, em tais casos, em vez de fazer bem, a comunhão eucarística acaba afinal por fazer mal a quem a recebe. “A comunhão do vosso Corpo e Sangue, Senhor Jesus Cristo, não seja para meu julgamento e condenação, mas, pela vossa misericórdia, me sirva de proteção e remédio para a alma e para o corpo” reza também o sacerdote, em silêncio, pouco antes comungar (cfr. Missal Romano).

Sobre a complexa questão do acesso à comunhão eucarística, talvez não seja despropositado recordar aqui que, aquando da instituição da eucaristia, Jesus não quis que esta fosse celebrada para as “multidões” que O seguiam, tendo cada um diversos graus de preparação prévia (e atraídos, provavelmente, pelo mais variado tipo de motivações). Para esse momento, na verdade, Jesus quis explicitamente que estivessem presentes somente alguns daqueles a quem, ao longo de três anos, Ele foi cuidadosamente preparando. Não porque esses discípulos fossem de algum modo ‘superiores’ aos outros (a Boa Nova é de facto para todos!). Mas provavelmente porque apenas eles, pela preparação que puderam receber, estariam, naquele momento, minimamente em condições para entender o que tal sacramento representa, reconhecendo o seu real valor. E, na verdade, assim fazia também a Igreja dos primeiros tempos: durante os primeiros séculos, o acesso à liturgia eucarística não era indiscriminadamente aberto a todos.

13. Tensões e unidade dentro da Igreja
Nos tempos atuais, um crescente número de tensões parece estar a surgir dentro da Igreja. Na verdade, nada disto é substancialmente novo: as tensões fazem, assumidamente, parte da comunidade cristã, desde os seus inícios. E, pelo menos até certo ponto, é até saudável que as tensões existam. Em momentos mais críticos, porém, as polarizações podem crescer de tal modo, ao ponto de quase se converterem num confronto entre ‘grupos rivais’, em que cada um dos lados se sente absolutamente certo da sua posição (e convicto de estar a prestar um bom serviço a Deus – cfr. Jo 16,2), enquanto posições adversas são caricaturizadas e apresentadas como desprovidas de qualquer sentido. Também aqui não é garantido que um certo espírito de individualismo (ainda que grupal) não possa estar também presente.

E, no entanto, sabemos bem que nenhum de nós (nenhum dos ‘grupos’) é dono da Igreja. Se é verdade que “nós somos Igreja”, os “outros” provavelmente não o serão menos. E talvez também não sejam menos fiéis, ou teologicamente menos capazes.

Como atrás referido, somente se continuarmos a manter o foco sobre Jesus e sobre o seu projeto para nós é que a Igreja conseguirá manter a sua unidade. Nesse sentido, não parece possível que possamos verdadeiramente seguir Jesus, sem que, ao mesmo tempo, procuremos mantermo-nos também unidos em torno dos sucessores daqueles doze que, intencionalmente, Jesus quis escolher como líderes da sua comunidade. Assim sendo, uma questão importante será sempre a de ver até que ponto as posições que cada um de nós defende estarão ou não em sintonia com os bispos locais – e sobretudo com o bispo de Roma e com os documentos por ele publicados (ou por quem a sua autoridade foi delegada, para o ajudar).

Como atrás referido, somente se continuarmos a manter o foco sobre Jesus e sobre o seu projeto para nós é que a Igreja conseguirá manter a sua unidade. Nesse sentido, não parece possível que possamos verdadeiramente seguir Jesus, sem que, ao mesmo tempo, procuremos mantermo-nos também unidos em torno dos sucessores daqueles doze que, intencionalmente, Jesus quis escolher como líderes da sua comunidade. Assim sendo, uma questão importante será sempre a de ver até que ponto as posições que cada um de nós defende estarão ou não em sintonia com os bispos locais – e sobretudo com o bispo de Roma e com os documentos por ele publicados (ou por quem a sua autoridade foi delegada, para o ajudar).

A este respeito, talvez por ter consciência que uma espiritualidade centrada no indivíduo tem também os seus riscos, Sto. Inácio de Loiola deixou-nos afirmações muito fortes nas regras que ele apelidou de “de sentir com a Igreja” (uma parte dos Exercícios Espirituais talvez não tão citada hoje). Escreve então Inácio que “para em tudo acertar”, devemos procurar acreditar que aquilo que eu vejo ou entendo de uma maneira, deverá afinal ser provavelmente de outra, “se a Igreja hierárquica assim o determina” (cfr. EE[365]). A atitude proposta por Inácio estará, pois, em direto contraste com tomadas de posição que viessem a assumir formulações do tipo “O ensinamento oficial da Igreja diz que… Eu, porém, digo-vos…”.

14. Discernindo o caminho em Igreja

Como discernir então o nosso caminho como Igreja? Como perceber qual é ‘a vontade de Deus’ a nosso respeito, para o nosso tempo? Inquestionavelmente, um dos traços essenciais da vida de Jesus, revelação de Deus para nós, é o amor para com todos: um amor universal que se expressa desde logo na forma como Ele acolhe cada pessoa, seja ela quem seja. Como atrás referido, parece claro que, a Jesus, não Lhe interessa de onde cada um vem, o seu currículo, ou até o cadastro que possa ter: o seu acolhimento é, de facto, universal (algo que hoje talvez possa ser exprimido através do termo ‘inclusividade’). Este será por isso, sem dúvida alguma, um dos traços essenciais da identidade cristã.

Por outro lado, como vimos, se é verdade que Jesus não está muito interessado em aprofundar de onde uma pessoa vem, o mesmo não se poderá dizer sobre o para onde essa pessoa vai. De facto, para Jesus não é tudo igual, e nem todos os caminhos têm o mesmo valor (já que nem todos os caminhos levam à realização humana, ou à vida). E por isso a Jesus interessa-Lhe, isso sim, os caminhos que cada um de nós vier a trilhar agora e para o futuro. E é por isso que, a cada um, convida a um caminho concreto (caminho que Ele mesmo percorre primeiro): “segue-Me”.

Quer isto dizer que, para discernir o seu caminho, um cristão não terá mais do que repetir aquilo que no passado foi escrito (desde logo no texto do Evangelho)? Na verdade, repetir simplesmente, ipsis verbis, aquilo que foi escrito antes poderá não resultar automaticamente numa verdadeira fidelidade ao significado original pretendido. De facto, uma vez que, com o passar do tempo, os contextos culturais (e os próprio significados das palavras) vão sofrendo transformações, aquilo que foi escrito em tempos mais antigos, num contexto diferente do nosso, precisa de ir sendo constantemente traduzido para linguagens dos tempos atuais. E isso, precisamente, se queremos ser fiéis à intenção e ao significado originais.

Por outro lado, a reflexão sobre questões antigas não se faz de uma vez só: a compreensão de questões antigas pode ir sendo (cumulativamente) aprofundada. De facto, com o avançar do tempo e da História, a reflexão teológica cristã pode ir conseguindo aprofundar sempre mais o imenso significado da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, bem como as suas múltiplas implicações para nós.

Esta necessidade de aprofundamento torna-se ainda mais evidente, se tivermos em conta o desenvolvimento das ciências (naturais e humanas) dos últimos séculos. De facto, graças à sua constante evolução, novos dados vão sempre surgindo para o conhecimento humano. Podemos, por isso, ir sempre tomando conhecimento de aspetos da realidade que eram anteriormente desconhecidos (ou, pelo menos, que não eram tão bem conhecidas). E isso pode fazer surgir novas questões, que antes simplesmente não se levantavam. Ou pode também modificar significativamente o nosso anterior modo de entender questões mais antigas (a hoje possível celebração de funerais religiosos de pessoas que acabaram por pôr fim à própria vida parece ser um bom exemplo disto mesmo).

Portanto, ser fiel a Jesus e preservar a identidade da sua proposta não é o mesmo do que repetir simplesmente aquilo que já foi dito no passado (o que faria suspender o processo dinâmico da reflexão teológica). Pelo contrário, implica antes um constante aprofundamento, bem como uma contínua atualização (que tem também em conta os novos dados que entretanto vão surgindo). “Como faria Jesus, se vivesse no nosso tempo?” será certamente uma das questões-chave orientadoras deste processo.

A expressão “Ecclesia semper reformanda” pode, aliás, aplicar-se não apenas à necessidade de uma contínua conversão da Igreja, mas também ao constante aprofundamento do nosso entendimento sobre a fé. Isto não para negar a verdade daquilo que no passado foi dito (a nossa comunhão de fé estende-se também àqueles que nos antecederam – e graças aos quais pudemos, aliás, ter acesso ao evangelho), mas para tentar que o nosso entendimento possa ir mais ainda fundo e ser mais autêntico, tendo em conta os novos dados e as reflexões que, ao longo da história, vão sendo cumulativamente feitas.

A expressão “Ecclesia semper reformanda” pode, aliás, aplicar-se não apenas à necessidade de uma contínua conversão da Igreja, mas também ao constante aprofundamento do nosso entendimento sobre a fé.

Para alguns, este aprofundamento poderá, por vezes, estar talvez a ir depressa demais. Estes invocam a necessidade de se ser prudente e de se evitar passos em falso (e, menos ainda, de se cair na tentação de aderir a modas ou tendências passageiras). Para outros, pelo contrário, a adaptação aos tempos atuais aparece como demasiado lenta, ou desfasada até do contexto em que hoje vivemos. As insatisfações e as tensões geradas serão então um dos preços a pagar por (graças a Deus) os seguidores de Jesus constituírem hoje uma comunidade mundial ampla e bem diversa.

Através da aceitação e do reconhecimento mútuo, do diálogo e da paciência, acabará certamente por nos ir sendo dada a graça de encontrar sínteses novas, adaptadas a cada tempo, sem que, com isso, a unidade da comunidade cristã seja posta em causa. Esse parece, de resto, ser um dos objetivos do atual processo sinodal, no qual procuramos escutar aquilo que o Espírito inspira a todo o povo de Deus. Naturalmente, uma particular atenção tem de ser dada aos que estudam e refletem sistematicamente sobre estes assuntos. E, mais ainda, àqueles que têm uma visão de conjunto e que têm a  responsabilidade de preservar a união das comunidades cristãs: os seus pastores.

Através da aceitação e do reconhecimento mútuo, do diálogo e da paciência, acabará certamente por nos ir sendo dada a graça de encontrar sínteses novas, adaptadas a cada tempo, sem que, com isso, a unidade da comunidade cristã seja posta em causa. Esse parece, de resto, ser um dos objetivos do atual processo sinodal, no qual procuramos escutar aquilo que o Espírito inspira a todo o povo de Deus. Naturalmente, uma particular atenção tem de ser dada aos que estudam e refletem sistematicamente sobre estes assuntos. E, mais ainda, àqueles que têm uma visão de conjunto e que têm a  responsabilidade de preservar a união das comunidades cristãs: os seus pastores.

Porque, de facto, para Jesus, a unidade dos seus seguidores (a unidade da Igreja) parece ser algo bastante importante: “que todos sejam um” pediu Ele, instantemente, pouco antes da sua Páscoa (Jo 17,21). Por isso, ao mesmo tempo que procuramos que a nossa Igreja possa ser cada vez mais inclusiva (à imagem de Jesus), procuramos que ela possa preservar também todos os outros traços da sua identidade (que do mesmo Jesus recebeu). E também que, ao longo deste processo, não perca o dom da unidade. Já que, na verdade, sem identidade e sem unidade, não pode haver Igreja. E, sem Igreja, não pode haver verdadeiro seguimento de Jesus.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.