Ser enviado pela Companhia de Jesus a Roma para estudar é um privilégio. Sê-lo em ano Jubilar, podendo acompanhar os últimos momentos do papado do Papa Francisco, foi dos momentos mais fortes da minha caminhada enquanto jesuíta, como pude testemunhar, juntamente com os companheiros portugueses aqui em Roma, para o In memoriam do Papa Francisco, preparado pelo Ponto SJ. Mas a experiência de presenciar, na praça de São Pedro, a eleição do Papa Leão XIV fez-me perceber em que medida estamos mesmo “nas mãos de Deus”, como afirmou ontem da varanda o recém-eleito Papa.
Durante esta semana, sobretudo a partir de quarta-feira, a cidade de Roma dotou-se de um dinamismo particular. Sem esquecer as missões de cada um, foi impressionante ver como os ecrãs e os corações dos fiéis estavam voltados para o Conclave, em expectativa e intercessão. Foram tempos de autêntica vertigem, com a sensação de que, com a morte de Francisco e a eleição de um novo Papa, uma era na Igreja e no mundo chegava ao seu fim e outra, imprevisível, estava para chegar. Se a curiosidade dos turistas se misturava com a devoção dos fiéis, foram também tantos os momentos em que aqueles que por acaso se encontravam em Roma nestes dias, quiseram entrar no processo espiritual da Igreja, aquele de esperar de modo orante um novo pastor.
Mais do que esperar, na primeira possibilidade, um resultado conclusivo, moveu-me a experiência de interceder pelo discernimento dos Cardeais, geograficamente próximo da Capela Sistina e eclesialmente acompanhado pelo povo santo e fiel de Deus. A oração nunca pode prescindir da sua dimensão comunitária, mesmo quando é feita pessoalmente.
Ainda na quarta-feira, a tempo da primeira votação, senti-me movido a juntar-me ao povo de Deus em oração na Praça de São Pedro. Mais do que esperar, na primeira possibilidade, um resultado conclusivo, moveu-me a experiência de interceder pelo discernimento dos cardeais, geograficamente próximo da Capela Sistina e eclesialmente acompanhado pelo povo santo e fiel de Deus. A oração nunca pode prescindir da sua dimensão comunitária, mesmo quando é feita pessoalmente. Como me disse uma irmã agostiniana de clausura há umas semanas, “para nós, os momentos explícitos de oração são sempre em comunidade”. Encontrei um amigo português: Francisco, padre alentejano a estudar em Roma, com quem rezei os mistérios gloriosos do terço, invocando o Espírito Santo sobre os cardeais, e conversei espiritualmente sobre o legado do Papa Francisco e a grandeza do que estávamos a viver. Aquilo que tinha planeado ser uma oração de uma hora, pelos atrasos do primeiro dia de Conclave, transformou-se numa espera de duas horas e meia e criou no povo – além do cansaço – a expectativa de, “à primeira tentativa”, presenciar o fumo branco.
Na verdade, como disse o celebrante na missa na Universidade Gregoriana dessa manhã, “não habemus papam ainda”. E, diante do meio daquele interregno tão esperançoso quanto desamparado, deixou-nos uma sábia reflexão: “Não obstante os tempos de incerteza que se alternam com os momentos de glória na vida da Igreja, não obstante as nossas ansiedades ou dúvidas, o anúncio da Ressurreição de Cristo permanece a nossa pedra angular. Se continuarmos a anunciá-lo, não saímos do caminho certo. Daqui a alguns dias, teremos um novo Papa, mas a nossa missão não mudará. Os tempos mudam. Os papas mudam. Jesus Cristo não muda”. Foi com este espírito que a multidão abandonou a praça, sabendo-se e sentindo-se nas mãos de Deus, o Senhor da História.
Daí a meramente um dia, a incerteza daria lugar ao júbilo. Depois de duas votações inconclusivas na manhã, saiu de novo fumo negro, sob o olhar atento das gaivotas – circunstancialmente protagonistas de uma espera global, num tempo em que nos custa tanto, mas que nos faz tão bem, não saber o que se passa “lá dentro”, não podermos acompanhar o porquê dos atrasos, não termos como satisfazer imediatamente o nosso apetite voraz de informação. Também nisto a Igreja e a sua tradição é mestra.
Foi o grito da multidão em delírio que acordou em mim aquela consciência ancestral mas sempre nova: temos papa, o fumo é branco. Mais do que presenciar o fenómeno visualmente como um indivíduo que capta momentos, foi o testemunho da alegria da multidão que, assim evangelicamente, me trouxe a boa notícia. A mesma praça, o mesmo calor, mas vistos e vividos com os olhos de um rebanho que voltou a ter Pastor. Uma onda de alegria que transfigurou as nossas existências instantaneamente.
Nessa mesma tarde, cheguei à praça de bicicleta, tendo percorrido as margens do Rio Tibre, com a convicção interior – ancorada também nas probabilidades jornalísticas – de que não teria de esperar muito mais para conhecer o novo Pastor. Nem todos os meus companheiros estavam tão ansiosos quanto eu, por isso cheguei primeiro e sozinho ao Vaticano. A Via della Conciliazione já estava habitada de um certo frenesim e a praça ia-se enchendo aos poucos. Aquela tarde, limpa e quente, levou muitos dos fiéis a refugiarem-se nas ainda escassas sombras que a Colunata de Bernini nos oferecia. Por estar sentado à sombra, combalido por aquele sol e preparando-me para mais uma longa espera, não estava a olhar para os ecrãs que transmitiam monotonamente a chaminé.

Foi o grito da multidão em delírio que acordou em mim aquela consciência ancestral mas sempre nova: temos papa, o fumo é branco. Mais do que presenciar o fenómeno visualmente como um indivíduo que capta momentos, foi o testemunho da alegria da multidão que, assim evangelicamente, me trouxe a boa notícia. De um momento para o outro, o fumo branco jorrava sem cessar e parecia que passávamos a habitar um mundo transfigurado. A mesma praça, o mesmo calor, mas vistos e vividos com os olhos de um rebanho que voltou a ter Pastor. Uma onda de alegria que transfigurou as nossas existências instantaneamente.
Mas, o que fazer naquele momento? Correr para arranjar o melhor lugar na praça? Abraçar um desconhecido? Elevar o olhar ao Céu em gratidão? Curiosamente, como uma criança desamparada diante de uma novidade que a transcende, o meu instinto – quase de sobrevivência – foi procurar alguém que conhecesse. Não queria, não podia, viver aquele momento sozinho no meio da multidão. Precisava de alguém como o padre Francisco, com quem tinha estado na véspera. Encontrei o Don Francesco, siciliano, também ele um padre a estudar comigo na Gregoriana. Foi um consolo para ambos termos alguém amigo com quem viver aquelas horas inesquecíveis – “Vicente, este vai ser provavelmente o Papa da tua ordenação, e, se for jovem, o Papa do nosso ministério”. Depois de darmos uns minutos à euforia e de especulamos alguns nomes (falámos de João XXIV e de Paulo VII), resolvemos rezar um terço, dando graças a Deus pelo dom de um pastor e rezando pela sua missão.
Era quinta-feira, contemplámos os mistérios luminosos, naquela tarde repleta de uma luz espiritualmente única e irrepetível. Era quinta-feira da semana de oração pelas vocações, dia em que pedimos ao dono da messe trabalhadores generosos que cumpram o mandato de “Fazer isto em Sua memória”. Era quinta-feira, como no dia em que acolhi o chamamento do Bom Pastor a entregar a vida por Ele e o seu rebanho na Companhia de Jesus. Era quinta-feira e algum cardeal tinha já recebido a “última” vocação da sua vida, chamado pelo seu novo nome, a vocação que preside a todas as outras: suceder a Pedro, ser Vigário de Cristo na Terra. Rezámos.
Daí a poucos instantes, entre gritos de “Viva o Papa” e cânticos de júbilo que o interromperam, o cardeal diácono proferiu aquele inesquecível “annuntio vobis gaudium magnum…: Habemus papam”. Não posso deixar de recordar a surpresa da praça ao ouvir – sem reconhecer – o nome do cardeal Prevost e ao saber o seu novo nome, tão antigo e tão novo, de verdadeiramente inesperado: Leão XIV.
O “Papa da comoção” acolheu com lágrimas o banho de afeto daquela multidão, engoliu em seco a responsabilidade daquele “primeiro dia do resto da sua vida”, e, como me recordou muito sabiamente uma familiar, “vestido como Bento XVI e falando como Francisco”, como quem adota um estilo discreto de continuidade com Francisco e sem esquecer a história, veio para ser ele próprio.
O resto, todos vimos: os cardeais a sorrirem de alegria ou de alívio; as filarmónicas a tocarem hinos totalmente absorvidos pelo delírio do povo; a multidão transformada em claque religiosa; e, finalmente, o Pastor que sai à varanda para saudar e abençoar o povo.
O “Papa da comoção” acolheu com lágrimas o banho de afeto daquela multidão, engoliu em seco a responsabilidade daquele “primeiro dia do resto da sua vida”, e, como me recordou muito sabiamente uma familiar, “vestido como Bento XVI e falando como Francisco”, como quem adota um estilo discreto de continuidade com Francisco e sem esquecer a história, veio para ser ele próprio. Na verdade, foi isso que a mão de Deus, isto é, a criatividade do Espírito Santo, nos deu: muito além das previsões e dos cálculos mais políticos ou mundanos, a – literalmente – milhas de distância dos nomes falados nas casas de apostas, redes sociais e conspirações jornalísticas, Deus deu-nos um Pastor, tendo-o chamado pelo nome para guiar a Igreja.
Mais do que a linha pastoral e doutrinal a seguir no seu Pontificado, o que ficou a ressoar daquela tarde para a posteridade e importa aqui recordar foi:
– um sucessor de Pedro, que confirma o seu povo na Fé, trazendo a saudação sempre nova do Ressuscitado: “A Paz esteja convosco”;
– um filho de Agostinho, “cristão com o povo, e bispo para o povo”
– um homem humilde de voz corajosa para anunciar como “Deus ama a todos”;
– um cidadão do mundo, americano em várias aceções, que não esquece as suas raízes missionárias;
– um bispo de Roma que se confia à Mãe da Igreja, rezando aquela inédita Ave Maria em comunhão com os fiéis;
– um pastor que quer construir a paz e caminhar até à “pátria celeste” no meio do seu povo, sem esquecer – como evoca a escolha do nome de Leão, na sequência de Leão XIII, o Papa que fundou a Doutrina Social da Igreja – “aqueles que sofrem”.
O Papa Leão XIV pediu para todos os homens e para o mundo inteiro a paz “desarmada e desarmante” que o Ressuscitado traz. E eu, fiel perdido no meio da multidão, entusiasta de cânticos em seu nome, desgastado fisicamente depois de tanto bem, mas pacificado interiormente por tão grande dom, agradeço a Deus a vocação deste Papa comovido e comovente.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.