Este será o meu segundo ano consecutivo sem férias. Terei alguns dias de transição entre um campo de férias e outro, e um dia para repor energias antes de dar exercícios. Mas em seguida terei de estar de volta aos escritórios da Rede Mundial de Oração do Papa, onde trabalho nos projetos digitais ‘Passo-a-Rezar’ e ‘Click to Pray’, e na editorial Apostolado da Oração.
Irão fazer-me falta aqueles dias de paragem, em que deixamos que a vida abrande e pouse em nós. E por isso tenho passado este último mês a reordenar-me, a preparar-me, para que a atividade seja lugar de graça e não de fadiga. Para que o peso dos dias seja levado com ligeireza. E é este exercício que quero partilhar convosco.
Des-cansar é despirmo-nos de canseiras
Descansar é muito mais do que parar. Descansar é uma arte. Descansar é confiar ao repouso, ao remanso, ao recolhimento, o nosso corpo e alma, para que aqueles nos renovem e moldem, devolvendo-nos a forma de filhos de Deus. Descansar implica mais do que tempo: implica libertar-nos do que nos cansa. Des-cansar é despirmo-nos de canseiras.
Nas nossa vidas de aceleração contínua, há canseiras que nos cobrem como fina película de plástico e nos impedem de respirar. Para romper esta película necessitamos de mestres, de horizonte, de histórias, e de rezar ao ritmo de Deus, como quem dança com Deus. Precisamos de tornar-nos aprendizes do respirar.
Encontrar Mestres do vagar
No Evangelho segundo São Marcos encontramos uma passagem à qual se poderia chamar «24 horas com Jesus» (Mc 1, 21-38). Vemos como ele começa o seu dia na sinagoga, como cura, como atravessa as ruas, como entra na casa de Pedro e cura a sogra deste, como acolhe a multidão e cura, e como sai, de madrugada, para rezar.
Todo este quadro é iluminado por Cristo. Como se pode ser luz no meio de tanta dispersão? Como se pode estar autêntica e genuinamente presente diante de tantos apelos e solicitações? Através da oração de recolhimento.
Como se pode ser luz no meio de tanta dispersão? Como se pode estar autêntica e genuinamente presente diante de tantos apelos e solicitações? Através da oração de recolhimento.
Mais do que atividade mental, a oração é disponibilidade para Deus. Oração é oblação. É colocar nas mãos de Deus a nossa vida inteira. Nos dias que passam sem pausa, é essencial encontrar tempos-almofada, em que levantamos o olhar para o alto e entregamos o coração ao amor de Deus, para que Ele conforte, repare e console o nosso coração.
Por isso escolhi esta passagem para me fazer companhia este verão. Por isso levo comigo este Jesus que se oferece continuamente ao Pai, confiando-Lhe as vidas das pessoas com quem se cruza.
Jesus, para além de nos enviar em missão, é também o nosso Mestre do vagar. Ele não é arrastado pela atividade. Ele escolhe flutuar na torrente do amor de Deus. «A alma que anda no amor não cansa nem se cansa», diz-nos São João da Cruz. Esta passividade nas correntes da compaixão é, também, descanso para nós.
É um caminhar com direção, um dos apelos do P. Vasco Pinto Magalhães SJ no seu livro «Só avança quem descansa». Nele, o P. Vasco avisa-nos que descansar é mais que parar, é mais que abrandar: é um exercício de liberdade e de sentido.
Onde descansam os meus olhos?
Quando foi meu superior em Braga, o P. José Frazão Correia SJ deu-me um conselho precioso: poisar o último olhar do dia na arte. Evitar entrar na cama com a cabeça cheia de ideias, de imagens de séries ou filmes, ou mesmo com o exame do dia. Optar por encontrar a paisagem que convida a um sereno caminhar, que permita a transição para o campo do sonho.
Demorei alguns anos a colocar este conselho em prática. Mas fi-lo. Em Madrid, durante os anos de teologia, tinha na minha cabeceira um livro com obras de arte cristã, uma compilação de dois mil anos da nossa história, que hoje lamento ter deixado para trás. E durante os dois anos de confinamentos pandémicos vividos em Paris, utilizei um recurso distinto: sons da natureza, que me inspiravam cenários onde o espírito podia deixar-se embalar entre serenas tempestades de verão e mares por navegar.
Mais recentemente, têm sido os olhares captados pelo P. Paulo Teia SJ, reunidos no seu «Ana Amasiye», que têm embalado as minhas noites. São olhares com histórias que não conheço, mas onde vou entrando. São olhares que me recordam, na aridez do trabalho de gabinete, do mundo habitado por pessoas e ao qual sou enviado, para colaborar com Cristo na sua missão de compaixão pelo mundo.
Evitar entrar na cama com a cabeça cheia de ideias, de imagens de séries ou filmes, ou mesmo com o exame do dia. Optar por encontrar a paisagem que convida a um sereno caminhar, que permita a transição para o campo do sonho.
Histórias que são como areia que se molda aos meus pés. A minha relação com a areia da praia mudou. Nos primeiros anos da minha vida, a relação com a areia era pouco amistosa: fazia-me impressão aquela matéria mole, como se o chão cedesse debaixo dos meus pés. Preferia percorrer o areal com as pequenas havaianas de criança e descalçá-las à beira-mar, deixando-as ordenadas como quem as espera encontrar no mesmo lugar ao sair. Como se o mar fosse a cama do meu quarto. Evidentemente, ou pai ou mãe tinham de impedir que a maré as levasse: eram autênticos guardiões de havaianas.
A certa altura, tudo mudou. E o toque da areia nos pés tornou-se um lugar de confiança, um lugar de vida, como se a Criação se adaptasse à minha forma, me acolhesse, e me mostrasse que há lugar para mim. A areia passou da aridez do estranho à fecundidade do útero, algo que me leva a uma das grandes paixões da minha vida e lugar de conforto: a leitura.
Há infinitas variantes na forma como podemos catalogar um bom livro: porque desafia, porque provoca, porque instrui, porque confirma, porque rasga horizontes… para este verão, escolhi uma história de um santo recontada de forma novel: «Francisco e o Pequenino», de Christian Bobin. E isto porque contém toda a familiaridade da vida de São Francisco de Assis enquanto me lança na poesia da santidade. Tem esta qualidade da areia que se molda ao passo, deixando rasto em mim e eu deixando impressão nela.
Entrar no ritmo da dança de Deus
Nietzsche afirmou que só poderia acreditar num Deus que sabe dançar. Hans Urs von Balthasar, umas décadas depois, proclamou: «O meu Deus é um Deus que dança, e que me convida a entrar na dança da Criação». Esta dança é um encontro entre duas liberdades, a humana e a divina, a dança que Cristo é, uma dança que se prolonga em nós através dos apelos do Espírito.
Nas «7 Pausas na Beleza» – retiro do Passo-a-Rezar publicado em livro sob o título «Um Deus que Dança», ilustrado pelo P. João Norton SJ – D. Tolentino de Mendonça recorda-nos que não somos nós quem rezamos: é Deus que reza em nós. E esta será a minha jaculatória este verão, a frase-bússola que me abre horizontes de descanso: é Deus quem reza em mim. O bem a que Deus me desafia não é imposição, mas convite a entrar na dança.
Romper a fina película da canseira
Há canseiras que se impõem. Para atravessar este verão, escolho levar comigo pessoas, livros e paisagens que me abrem à surpreendente novidade de Cristo e da sua graça. E assim, a fina película de cansaço que me tentará roubar o fôlego, irá romper-se. E assim, eu respirarei em Deus… viverei no respirar da sua graça, como aprendiz do respirar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.