A persuasão de que Daniel Faria era um Poeta extraordinário resultou da altíssima qualidade dos livros que publicou em 1998, Explicação das árvores e de outros animais e Homens que são como lugares mal situados. A sua morte inesperada e a edição póstuma do volume Dos líquidos em 2000, mais não foi do que a culminância de uma espécie de milagre. A ninguém que o tenha conhecido escapou a singularidade de um destino mais-que-humano, não à maneira de uma extravagância, mas ao modo da limpidez que deixa ver, em si mesma, o Fim absoluto. A trilogia derradeira constitui a apoteose de um processo desenrolado a partir de outros três livros: Uma cidade com muralha (1991), Oxálida (1992) e A casa dos ceifeiros (1993).
O salto entre estes dois “momentos” é de tal magnitude, que nada faria supor o aparecimento de uma Obra completa, no sentido da perfeição relativamente alcançada. Ao evidenciar estes conjuntos não se pretende separar, mas distinguir para unir. Em Uma cidade com muralha, a significação cósmica da pedra, a casa, o rio, as barcas, transfiguram a cidade do Porto num espaço defendido e, ao mesmo tempo, aberto, onde a “muralha” oculta e desoculta uma presença sagrada: “Pois assim claramente nós veremos / que a nossa muralha é o nosso Deus”. Mas é preciso fazer crescer o poema na terra, como um trevo azedo, oxálida, “o colo ou o chão” de um corpo cultivado. A originária ruralidade desenvolvendo-se, rebento recolhido, a casa dos ceifeiros, “a sede / desse fogo aceso que não arde”. O percurso de decantação destes marcos de 1991-1993 assenta em sínteses substantivas de um imaginário que Gaston Bachelard definiria “material”, isto é, constituído pela pureza primordial, em contraposição a “formal”, já caracterizado pela racionalidade adjectiva. O teor da escrita de Daniel Faria está esboçado, “pedra / somente pedra // para as manhãs”.
A “Suma” formada pela trilogia dos seus últimos livros é perpassada por aquele conhecimento interior que nos leva a um “coração nuclear”, a uma “casa mártir”, a uma “árvore povoada”.
Sabemos que um dos títulos que ele pensou para Dos líquidos era: “Das coisas que eu sei do céu”. Entre 1993 e 1998 amadureceu a sua vocação monástica. Tendo deixado o Seminário, no final do ano lectivo de 1994, depois de concluído o curso de Teologia com uma tese brilhante publicada em Novembro de 1999, A vida e conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o ensino da Cruz, matricula-se em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Quando entrou no Mosteiro beneditino de Singeverga em Outubro de 1998, concluíra o Curso e fizera o Postulantado em S. Bento da Vitória. Não tinha ainda finalizado o Noviciado quando faleceu, vítima de uma queda que o fez entrar em coma, do qual não saiu. “À encruzilhada contrapõe a Cruz”, diz Daniel Faria a propósito do “seu” Poeta, Frei Agostinho da Cruz. E também em si próprio poderia gravar estas palavras, escritas na introdução da sua Tese: “Cristo é o remédio eficaz, porque abre o céu, apura a terra, reforma a vida, vence a morte, apaga a culpa. Uma vez encontrado o fio que o conduzirá para fora do labirinto, Frei Agostinho, consciente de que é um peregrino sobre a terra, põe-se a caminho”.
A “Suma” formada pela trilogia dos seus últimos livros é perpassada por aquele conhecimento interior que nos leva a um “coração nuclear”, a uma “casa mártir”, a uma “árvore povoada”. A “explicação”, no seu sentido etimológico, revela, distendendo, ampliando, a visão cósmica do universo criado, “familiar dos anjos que pousam sobre a vida”. A grande paisagem, horizonte hermenêutico da compreensão de tudo quanto existe, nasce, porém, de uma subida arriscada: “E a canção é mão que se afadiga / a sarar do degrau e do perigo”, como se lê no poema “A explicação da cura”. Também a descida sublima a sede, “nos arredores do verbo / passageiro num degrau invisível sobre a terra”. Desta ferida essencial germina a “Rosa / de orvalho e sangue para o corpo trespassado de sede. Árvore / que bebe do homem. Árvore / em silêncio onde escutamos a palavra / em carne viva. Verbo / tão inteiro que se fez espelho”. São os últimos versos de Homens que são como lugares mal situados! Este livro centra-se num interlocutor, um tu, um ele, um nome, “uma palavra pessoa”. Deste entranhado diálogo de esperas e silêncio, desponta um poema contínuo de amizade: “E se não escrever o teu nome / como direi a alegria ao mundo?” A humanidade de Deus tocada pela fibra de um Poeta! Mas não acaba aqui o centro irradiante do Mistério. Dos líquidos que o Poeta deixou praticamente pronto derrama-se uma “terceira margem” (diria João Guimarães Rosa), a do Espírito tocado nos sinais sensíveis das águas e do sangue, mas também da saliva, do sabor agridoce do pão. Dividido em sete capítulos, a totalidade da presença dinamizadora do Amor (“O sétimo líquido: / o sangue do cordeiro”), progride desde a nascente até ao toque do Inesgotável. Como Cristo, no chão, escreve a Nova Lei; o Poeta, no coração do leitor, transmite uma promessa perene de fraternidade: “Sim. Agora posso explicar-te o mistério das águas. Debruça-te como ele quando escreveu no chão / irás entender – elas jorram das palavras”. A Trilogia é a Trindade, o Amor, a Casa só habitada pelo lado de dentro, aonde a Fonte nos fala e convida sempre a entrar cada vez mais.
“Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e as suas limitações.”
Em 2007, foi publicado, numa edição muito cuidada, O livro do Joaquim, oferecido por Daniel Faria a um seu amigo. Neste caderno, quase a modo de diário, encontramos formulações sapienciais, entre outros modelos de expressão literária, de inesperada riqueza. Quem diria que um rapaz de 22 anos, em 1993, tocasse assim esta profundíssima verdade: “Creio que o mais egoísta dos homens é aquele que recusa dar aos outros a sua fragilidade e as suas limitações. Quem recusa aos outros a sua pequenez, comete um dos mais infelizes gestos de prepotência. E porque aí se rejeita, aos outros não poderá dar senão o sofrimento da perda. Querendo-se sem falha, será o mais incompleto dos seres”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.