Da Narração: uma reflexão

Não é incomum ouvirmos o desdém pelos que narram histórias. De que não são bens vitais à sociedade. O campo da Narração de que o Papa essencialmente nos fala é um campo imaterial, que requer resiliência e verdade para ser percorrido.

Não é incomum ouvirmos o desdém pelos que narram histórias. De que não são bens vitais à sociedade. O campo da Narração de que o Papa essencialmente nos fala é um campo imaterial, que requer resiliência e verdade para ser percorrido.

No contexto da Mensagem do Papa Francisco em celebração do Dia Mundial das Comunicações Sociais, desde logo enalteço o tema escolhido, a Narração, fazendo lembrar que a vida intelectual é composta por uma veia espiritual que necessita de nutrimento, de reconhecimento e de observação.

Nesta Mensagem, a metáfora para o «tecer» dos textos conduz-me à teia que «a constância de Penélope» tece e destece, e que é, em si, um efeito da própria condição da Narração ‒ laboriosa e contínua. Penélope mantinha esta ocupação distanciando-se dos seus pretendentes (enquanto aguardava a chegada do seu marido, Ulisses, da Guerra de Tróia); num gesto repetitivo e autónomo que perdura enquanto manifestação de amor e de esperança, dois dos alicerces da Odisseia de Homero.

Virginia Woolf, por sua vez, escreveu que a literatura é como um «andamento», uma «tendência circular», o que vai ao encontro desta ideia da teia que se tece e destece sem uma finitude à vista. A ideia da narração terá assim este pressuposto, um singular e complexo movimento circular e contínuo. E através dele podemos recortar momentos, associar paisagens, acrescentar lembranças e legar memórias.

Escreveu-nos o Padre António Vieira, numa visão simultaneamente poética e devota, que «a história mais antiga começa no princípio do Mundo». É certo que este processo de Narração, aquele que contribui «para guardar a própria vida» (Mensagem), pertence à construção de uma humanidade comum e persiste com uma energia conjunta. Esta mesma energia provém de extraordinários reflexos perante a realidade que se testemunha e se intui.

Vêmo-la manifesta, desde logo, na Caverna de Chauvet mas também na escrita dos séculos. Desde Homero, passando pela filosofia antiga, onde a observação da natureza e dos homens supõe um caminho alternativo para a compreensão do universo; às histórias da Bíblia em que «Toda a Escritura é inspirada por Deus» segundo Paulo de Tarso a Timóteo; ao detalhe e à erudição exercidos nos scriptoria; ao tempo de Giotto, às
memórias e às poesias de reis e rainhas; aos romances históricos ficcionados por Sir Walter Scott; aos cronistas; aos engagés… As contribuições destes e doutros narradores têm em si a beleza de uma entrega, e, por vezes, um sentido de missão. Revelam-nos as mais variadas contradições pelas quais a alma humana se define; seja da bondade à malícia, da salvação à crueldade, do cuidado ao desamor.

Na velocidade das horas é certo que também as comunicações ruidosas se instalam nas sociedades que narram e informam. Sabemos delas todos os dias, e quer queiramos ou não, e de uma forma ou de outra, vêm ao nosso encontro.

Por outro lado, na velocidade das horas é certo que também as comunicações ruidosas se instalam nas sociedades que narram e informam. Sabemos delas todos os dias, e quer queiramos ou não, e de uma forma ou de outra, vêm ao nosso encontro. Representam um conflito real e tantas vezes insalubre, trivializam o conhecimento. «Aprende a duvidar» era o que o meu avô Alberto Luís me dizia. E não será porventura no encontro entre o silêncio e o vazio onde primeiramente se ouve, se lê, se questiona? «É necessário criar
fora da existência visível, comum e geral a todos, outra existência interna». Estas palavras de Flaubert, escritas em correspondência ao seu amigo Emmanuel Vasse, sugerem o apelo ao lavrar de uma consciência individual. Precisamos de tão bons narradores quanto de leitores. Somos individual e colectivamente narradores e testemunhas do nosso tempo e da nossa existência.

Nesta sala onde me encontro cada um destes livros que me rodeia tem uma outra história, inseparável daquela que narra. Têm a história de quem os escreveu e têm a história de quem os leu. Não é incomum pegar num destes livros e ao folheá-los deparar-me com anotações manuscritas e sublinhados. De certa forma são marcas que ficam de uma outra leitura, de uma correspondência entre dois pensamentos, ou espelham a interpretação de uma circunstância da vida. E quando os releio, e me demoro neste extratexto, é a voz de outro que entra em diálogo. Outras ênfases se seguirão, cruzam-se narrativas, origina-se uma nova continuidade. Neste cenário, um sentido para a existência pode conhecer terra para florescer.

É certo que não é incomum ouvirmos o desdém pelos que narram histórias. De que não são bens vitais à sociedade. O campo da Narração de que o Papa Francisco essencialmente nos fala é um campo imaterial, que requer resiliência e verdade para ser percorrido. Esperemos assim que a sua Mensagem chegue aos mais cépticos, e revigore aqueles que já observam na contemplação uma espécie de salvação e fonte da vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.