Crítica de cinema: A Herdade

"A Herdade" de Tiago Guedes, retrata a saga de uma família latifundiária portuguesa entre 1950 e os anos 90. Uma sugestão da Brotéria e de Carlos Capucho que o considera um bom filme, sublinhando o desempenho do actor Albano Jerónimo.

"A Herdade" de Tiago Guedes, retrata a saga de uma família latifundiária portuguesa entre 1950 e os anos 90. Uma sugestão da Brotéria e de Carlos Capucho que o considera um bom filme, sublinhando o desempenho do actor Albano Jerónimo.

Breve Sinopse: A saga de uma família de grandes latifundiários portugueses entre a década de 1950 e os anos 90. O Estado Novo, a Revolução e os anos subsequentes ao 25 de Abril. No coração dos acontecimentos está a figura dura e politicamente complexa do proprietário, João Fernandes (Albano Jerónimo). O filme foi produzido por Paulo Branco, a partir de uma sua ideia de base, desenvolvida pelos argumentistas.

Nota Crítica: E chega a múltiplas salas de exibição, por todo o país, a anunciada e fortemente publicitada produção portuguesa presente no Festival de Veneza de 2019. Agora também candidata à selecção para o Óscar de melhor filme estrangeiro. O director do Festival de Veneza, Alberto Barbera, em entrevista ao jornal Público, aproxima o filme português a 1900, a premiada obra de Bertolucci, de 1976! O que aqui nos trás é saber se o filme de Tiago Guedes justifica estas credenciais e como, na realidade, se apresenta ao público.

Antes de mais é de saudar esta abordagem, em tom algo épico, de uma situação social e política no Portugal antes e depois da revolução de Abril de 1974. Não é, infelizmente, muito comum a cinematografia portuguesa debruçar-se sobre um tema tão crucial da nossa História recente, tal como são muito escassos os filmes que abordam a questão que tão fortemente envolveu e consumiu este país durante mais de uma década: a guerra colonial. Por outro lado a saga familiar, olhada ao longo dos anos, é um tema muito visitado pelo cinema, decorrente ou não da própria literatura. Durante a exibição de A Herdade assaltavam-me a memória O Gigante (3h,20’), de George Stevens, filme de 1956, a epopeia de Claude Berri, em dois filmes de 1986 – Manon das Nascentes e Jean De Florette, ou o supracitado 1900, embora me pareça manifestamente exagerado aproximar o filme português à obra do realizador italiano, com as suas cinco horas e quinze minutos de duração e superiores meios de produção.

Como referi o filme de Tiago Guedes encontra-se ancorado na figura central do latifundiário João Fernandes. Diga-se, desde já, suportado de forma superior pelo actor Albano Jerónimo. É à volta da personagem central que todos os episódios se desenrolam e, praticamente, não há cena onde a sua figura não esteja presente. Quando utilizo o vocábulo episódios essa palavra adequa-se, na minha perspectiva, à elaboração narrativa do filme. Na verdade, a extensão do arco de tempo coberto – além do preâmbulo, nos anos 50, de 1973 até à década de 90 – é manifestamente insuficiente para dar corpo e consistência ao desenvolvimento narrativo, malgrado as quase três horas de duração. Contudo talvez tivesse sido possível um ganho de tempo favorável a uma maior concatenação, se tivesse existido em certos momentos um grau mais desenvolto do ritmo fílmico. É que, determinadas cenas, nem por isso ganham espessura ao arrastar-se o tempo. E afirmo isto sem perder de perspectiva que muito, na narrativa, se desenvolve a partir do olhar e das expressões faciais (sem palavra) do excelente actor que é Albano Jerónimo. Refiro-me, isso sim, à forma ‘leve’ como momentos importantes são passados de raspão, sem a devida contextura, como acontece à eclosão e consequências do 25 de Abril no país e, consequentemente no empório de João Fernandes e na sua família próxima, de que é indício a figura um pouco patética do general, seu sogro e director da Pide (Dória), bem como as pinceladas toscas que envolvem a mulher deste (Bustorff). As relações laborais dos trabalhadores rurais de João Fernandes e a correlação do feitor (Miguel Borges) com a presença dos sindicalistas no latifúndio, na sequência da Revolução, também são apresentados de forma sumária e apressada e necessitariam de outra espessura para serem credíveis.

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Alberto Jerónimo tem um grande desempenho como protagonista do filme.

O filme desenvolve-se num preâmbulo e três períodos: nos derradeiros anos do Estado Novo, no 25 de Abril e tempos imediatos e, por fim, nas dificuldades de ordem vária (pessoais, familiares, financeiras…) que se instalam na década de 90. O preâmbulo (na década de 50) tem a função útil de nos dar alguns elementos para enquadrar a raiz dos traumas e a dureza complexa de sentimentos que moldam o adulto João Fernandes. Dentro das limitações de construção, que antes apontei, torna-se claro que a parte mais conseguida, do ponto de vista da consistência narrativa é, justamente, a que se situa na fase inicial, antes de Abril de 1974. Notável o fôlego delineado para os personagens, boa abordagem da proposta para o tempo fílmico. Contudo, mesmo aí, o filme não escapa a ceder ao estereótipo gasto do padre comilão e reacionário, bem instalado na casa dos ricos… Os cinéfilos com boa memória lembrarão, em contraste, a bem elaborada (se bem que crítica) figura do capelão do príncipe de Salina, em O Leopardo (1963), de Visconti. De sublinhar, como muito positiva, nesta primeira parte, a apresentação da actividade repressiva da PIDE, com realce para a tortura, no caso a que é infligida ao trabalhador rural de Fernandes, detido por actividade relacionada com o PCP. Fernandes tudo tenta para o libertar e consegue-o. Esse momento é também factor que ajuda a cimentar a complexidade da personalidade de João Fernandes. Embora recusando-se a apoiar o regime do Estado Novo, quando para isso é pressionado pelo poder constituído, o proprietário mostra ser sobretudo apoiante daquilo que lhe diz respeito. Nada mais.

No cômputo geral estamos perante um bom filme. Desde logo pela sólida feitura cinematográfica, nas suas várias componentes. As quase três horas de duração passam com agrado, mesmo para o espectador exigente.

O carácter romanesco que, ainda assim, envolve toda a história social e política, contada em A Herdade, atinge o seu grau mais alto no melodrama que se propõe na terceira e última parte, na década de 90. Há um ambiente fílmico bem construído pelo realizador, nas suas diversas expressões mas, ainda assim, do meu ponto de vista, os argumentistas não escaparam a uma exacerbação do clima melodramático tão ao gosto de plateias em grande medida marcadas pelo visionamento das telenovelas televisivas.

Quero terminar no entanto esta abordagem crítica salientando que, no cômputo geral estamos perante um bom filme. Desde logo pela sólida feitura cinematográfica, nas suas várias componentes. As quase três horas de duração passam com agrado, mesmo para o espectador exigente. Afirmar o contrário não será de justiça. A qualidade fílmica e a boa intervenção dos actores estão patentes ao longo de todo um filme que remete sempre, nos seus elementos constitutivos, para dois géneros maiores da história do cinema: a saga familiar e o western, este sobretudo no delineamento da figura do protagonista. Assinale-se ainda que o filme é absolutamente espartano na utilização de música, na banda sonora. Ela simplesmente não existe ao longo do desenvolvimento. E isso é interessante, não distraindo o espectador da narrativa. É uma opção tanto mais valiosa quanto produções nacionais de ficção (na TV e no cinema) frequentemente ‘encharcam’ a estória com música, constituída em ruído e distraindo do essencial. E, quantas vezes, dificultando a compreensão dos diálogos.

Na sua presença em Veneza o filme não podia competir, obviamente, com os pesos-pesados internacionais que se apresentaram. Mas o simples facto de ter estado na competição honrou a produção cinematográfica portuguesa e deu-lhe visibilidade para o abrir de portas no mercado internacional. Veremos o que consegue na sua candidatura para a pré-selecção para o Oscar de melhor filme estrangeiro, por parte de Portugal. A concorrência estrangeira e os lóbis, em tal desígnio, são aquilo que conhecemos…

 


 

Ficha técnica 

A Herdade, Portugal/França, 2019
Drama I 2H46 minutos I M/12 anos
Realização: Tiago Guedes
Argumento: Rui C. Martins e T. Guedes   
Fotografia a cores: João L. Morais
Montagem: Roberto Perpignani
Actores principais: Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, Ana Vilela da Costa, João Vicente, João Pedro Mamede, Beatriz Brás, Diogo Dória, Teresa Madruga, Ana Bustorff e Cândido Ferreira.
Em exibição em vários pontos do país – Saiba onde.
Site oficial.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.