Para uma criança nascida a 11 de março de 2020, dia em que a OMS declarou a Covid-19 uma pandemia, o mundo é um lugar de máscaras e ruas sem pessoas; de convívios reduzidos e digitais. É também, para algumas, um mundo de afetos e segurança, essenciais para crescer saudável. Para muitas, pelo contrário, a realidade é outra.
Estar mais tempo em casa agravou as desigualdades e tornou a criança mais invisível aos olhares atentos dos profissionais; na invisibilidade foi sendo vítima de abusos. Entregue a si, foi aumentando a sua angústia. A rua ou o recreio, que antes eram lugares seguros e de partilha, passaram a ser proibidos.
Em 2019, o mundo era um lugar melhor para as crianças. Hoje, já não temos esta certeza.
Nos últimos meses, pais, professores ou decisores políticos têm pedido muito às crianças: que fiquem em casa, que se adaptem ao estudo em casa, sejam pacientes e corajosas perante esta incerteza. E nenhuma destas restrições vem sem consequências – poderão ter impacto no desenvolvimento das crianças e de toda uma geração, se não forem tomadas medidas.
A pandemia mostrou-nos que temos as ferramentas de que precisamos para encontrar soluções – milhares de crianças podem continuar a estudar à distância. E embora este seja um cenário animador, muitas crianças estão a ficar de fora.
Com mais de 5.000 escolas fechadas em Portugal, não podemos esperar que as escolas reabram e a vida regresse ao normal. O “normal” já não era suficiente para muitas crianças. Que sociedade queremos?
Em primeiro lugar, comecemos pelas crianças e por reimaginar a educação
A pandemia veio reforçar o papel social das escolas. Importa agora revisitar os objetivos curriculares e promover o desenvolvimento de competências sociais e emocionais para as crianças saírem desta crise mais resilientes, responsáveis, capazes de questionar criticamente a realidade e lidar com a mudança. Podemos começar por trabalhar a importância de estabelecermos relações positivas ou de falarmos quando não estamos bem. A escola – e as nossas casas – devem ser espaços seguros para falarmos sobre os sentimentos, as emoções e como devemos estar atentos aos outros e ao mundo que nos rodeia.
Segundo, proteger as crianças contra a violência
Muitos pais ou cuidadores estão a fazer o melhor que sabem para cuidar das crianças. Mas, para muitas, não é suficiente e o isolamento tem aumentado o risco de violência.
A comunidade educativa, mas não apenas, deve estar atenta às atitudes e aos comportamentos dos alunos que podem indicar sinais de abuso: mudanças nos níveis de participação nas aulas (se agora a criança fala muito, perturba a aula ou está muito retraída; não aparece ou está sempre atrasada; sai mais cedo sem explicação ou não quer sair); exibe expressões emocionais muito marcadas; manifesta medo quando se aproxima um adulto em casa; ou apresenta sinais visíveis de negligência.
Estarmos atentos ao contexto pode também dar-nos sinais de alerta de abuso ou negligência que não devemos menosprezar: indicações de que uma criança pequena pode estar sozinha em casa; os pais dão explicações conflituantes ou não convincentes para ferimentos observáveis; ou é difícil entrar em contacto com a criança ou com os pais.
Terceiro, ser agente de bem-estar
O confinamento a que muitas crianças estão sujeitas está a ter efeitos adversos na sua saúde mental e no bem-estar. As crianças estão preocupadas com a situação dos seus pais e dos familiares mais velhos; podem sentir ansiedade de não saber quando é que esta situação irá mudar. O distanciamento está a limitar os contactos com os seus pares. Os pais estão também sob maiores níveis de stress.
As dificuldades em adormecer ou o sono agitado podem ser sinais de ansiedade, tal como alterações de apetite, problemas nas relações com os pares ou pais, dificuldades de concentração, irritabilidade ou agressividade. Importa, ao mesmo tempo, reconhecer que estas reações podem ser normais e não significam, necessariamente, desobediência ou um problema de saúde psicológica. Manter boas rotinas e horários regulares, incentivar a criança a falar com amigos ou outras pessoas de confiança, a fazer atividades físicas ou a distrair-se com atividades que gosta, são formas de promover o seu bem-estar.
Em quarto lugar, sejamos audazes e ambiciosos
A UNICEF foi criada há 75 anos, no fim da Segunda Guerra Mundial. A escala de destruição e os problemas que afetavam as crianças no pós-guerra podiam ter-nos paralisado. Pelo contrário, construímos novos sistemas sociais, de saúde e de educação. Criámos as Nações Unidas.
A história está a chamar-nos de novo.
Este é um apelo à ação para toda a sociedade – políticos, governantes, líderes religiosos, comunidade educativa, pais, todos e cada um de nós, para protegermos as crianças. O futuro que queremos é decidido no presente.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.