“Com desejo desejei comer esta Páscoa convosco antes de sofrer” (Lucas 22,15)

Pegando em pão e recitando a oração ritual de bênção, rasga-o acrescentando que “isto” é o que farão com ele; distribuindo o vinho, pronunciada a oração ritual, acrescenta que assim será derramado o seu sangue.

Pegando em pão e recitando a oração ritual de bênção, rasga-o acrescentando que “isto” é o que farão com ele; distribuindo o vinho, pronunciada a oração ritual, acrescenta que assim será derramado o seu sangue.

É com este pleonasmo que Lucas expressa o grande desejo de Jesus, nos últimos dias da sua vida. De tudo o que nos contaram sobre a derradeira “subida a Jerusalém” – naquele ano em que o dia de Páscoa, o 15 de Nisan, coincidiu com o Sábado –, um desejo maior e explícito emerge: reclinar-se à mesa com os seus companheiros e comer com eles o jantar de Páscoa. Todo o processo que se precipitou depois daquela ceia, não tendo bem sido desejado, foi aceite – como refere o texto da Paixão segundo S. João, de J. S. Bach – em «dolorosa alegria»: «Pai, se queres, afasta de mim este cálice, mas não se faça a minha vontade, e sim a tua».

Pela quantidade de impuros que Jesus tocou, ergueu e libertou, pela forma como relativizou os laços de sangue, pela violação recorrente do sábado, pela forma respeitosa com que lidava com o invasor romano – único poder capaz de autorizar a morte de alguém –, pelo desprezo que manifestou em relação ao templo, pela clareza com que afrontou os donos da religião, Jesus não disfarçou a sua heterodoxia – característica de toda a profecia – fazendo prever que haveria de partilhar o mesmo castigo de todos os profetas: uma vida abreviada com a imposição de uma morte violenta.

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Ilustração Vera Guedes

Sou particularmente sensível à leitura de vários autores, Enzo Bianchi, de entre eles, segundo a qual o calendário dos acontecimentos dos últimos dias de Jesus é uma espécie de “elefante na sala”. Como é possível ter “comido a Páscoa”, segundo os sinópticos, se morre no dia da preparação da Páscoa, segundo João? Na verdade, o grupo dos essénios – estranhamente ausente dos evangelhos – seguia um calendário diferente do oficial. E sim, enquanto hipótese, resolve bem o problema de interpretação: Jesus poderá ter celebrado a Páscoa segundo o calendário essénio, morrendo no dia anterior à Páscoa do calendário do templo. Em leituras mais literais ou mais metafóricas, os discípulos de Jesus hão-de ler nestes acontecimentos Jesus como vítima sacrificada pela religião da Lei, “das obras mortas”, Jesus como o cordeiro da Páscoa do templo, razão pela qual João quer que não se lhe quebre um só osso. Decisiva – creio – esta associação da vida a alimento. Jesus deseja intensamente jantar com os seus companheiros para, inusitadamente, recriar um gesto performativo: pegando em pão e recitando a oração ritual de bênção, rasga-o acrescentando que “isto” é o que farão com ele; distribuindo o vinho, pronunciada a oração ritual, acrescenta que assim será derramado o seu sangue, como um esbanjamento de misericórdia de Deus que recusa o cálculo, a força e a vingança, abrindo, na entrega até ao fim e no silêncio, a possibilidade de um caminho outro. Mais tarde, as discípulas e os discípulos de Jesus, hão-de captar a absoluta centralidade da associação da vida ao alimento como súmula sobre o sentido da vida. Jesus alimentou os que estavam afastados do alimento ritual, gastou-se e morreu por isso, tendo sido ele próprio alimento ritual, rasgado e vertido, para deixar em aberto a possibilidade de escolheres dar forma de alimento à tua vida, para que outros vivam, especialmente os que estão privados de alimento literal, e os que foram afastados do “alimento ritual”, dos hábitos e gestos comunitários que de verdade matam a fome de amar e de ser amado e nos resgatam da solidão imposta, verdadeira morte eterna.

Todo o tempo é sagrado, como nos sugere a genial intuição de Adília Lopes: «O tempo é templo».

Atravessa-nos a Semana Maior. Escolho não dizer Semana Santa, porque desde que admitimos que Deus veio habitar a nossa história, o nosso tempo, dissiparam-se as fronteiras entre o tempo sagrado e o tempo profano. Todo o tempo é sagrado, como nos sugere a genial intuição de Adília Lopes: «O tempo é templo».

Nesta semana particularmente importante para as discípulas e para os discípulos de Jesus, recordamos – fazemos “voltar ao coração” – os últimos dias da vida de Jesus, condensando em três dias o coração das narrativas evangélicas: a forma cruel como Jesus sofreu um processo injusto, a sua morte violenta e a leitura de um túmulo vazio que ilumina de sentido a vida daquele “erguedor” que «foi erguido» – tradução literal da conjugação verbal ἠγέρθη, habitualmente traduzida por «ressuscitou».

As celebrações comunitárias desta Quinta-feira da Semana Maior, as duas eucaristias previstas para este dia, relevam-nos dois símbolos que emergem exuberantes com detalhes exagerados: a preparação de óleo, a que se acrescenta perfume; e a refeição, a que se acrescenta um lava-pés.

O óleo no corpo dos atletas estava associado à agilidade e à força. Na cabeça de reis e profetas era sinal de eleição. Nas feridas mimo para abrandar o ardor. Na Missa Crismal, que habitualmente se celebra na manhã de Quinta-feira, na catedral de cada diocese, reúne-se uma assembleia particularmente numerosa e representativa. É nessa celebração que se preparam óleos que serão unção de conforto e de companhia para muitos irmãos e irmãs nossos ao longo de todo o ano. Unção que será gesto de acolhimento para quem se dispõe a seguir Jesus com generosidade de coração, integrando a comunidade incontável dos seus discípulos. Unção que será confirmação de eleição para o serviço para todos os baptizados e para os que são ordenados para servir a comunidade. O mesmo óleo que escorrerá nas pedras de novos templos, dedicando o espaço à congregação das “pedras vivas”, todos os irmãos e irmãs que perfumam a comunidade no serviço e no dom de si próprios. Unção que será aconchego e alívio para quem suporta o peso do sofrimento; unção que curará já não as feridas da pele, mas todas as outras feridas que saram com presença e ternura; será saúde que ergue ao recordar o teu valor de rei e de profeta, o mesmo é dizer, sem ti a Igreja não é a mesma coisa. O perfume que se acrescenta ao óleo do crisma, símbolo sugestivo de uma misteriosa “presença ausente” de Jesus, convoca o exagero de amor com que Maria, entre outras mulheres e homens, mimaram o corpo de Jesus na vida e na morte. A ser verdade que a Igreja é o corpo de Jesus, aceitando com bondade a distinção conceptual expressa no primeiro milénio do cristianismo na qual se afirmava a Igreja como “presença real” de Cristo, e o pão e o vinho oferecidos na eucaristia como “corpo místico”, cobrir de mimos o corpo de Jesus, cobrir de ternura o corpo do nosso amado consiste em cuidar exageradamente as pessoas, os próximos, os inimigos, os que não têm como retribuir-te, os diferentes de ti, os ignorados e invisíveis… nessa forma esquisita de amar, os cristãos perfumam o mundo.

Ao fim da tarde de hoje, na celebração da eucaristia, um gesto exagerado acontece: a pessoa que conduz a celebração, cujas vestes se inspiram nas dos altos funcionários do Império Romano, faz o serviço do escravo, lavando os pés dos presentes

Ao fim da tarde de hoje, na celebração da eucaristia, um gesto exagerado acontece: a pessoa que conduz a celebração, cujas vestes se inspiram nas dos altos funcionários do Império Romano, faz o serviço do escravo, lavando os pés dos presentes. Ao tempo de Jesus, era um gesto primeiro de hospitalidade particularmente generoso para quem usava calçado aberto em terras quentes e secas. Oferecido o escravo para limpar, refrescar, secar e hidratar os pés do convidado – podendo terminar com um beijo como prova de limpeza –, a conversa ia começando entre o recém-chegado e o anfitrião. O gesto de hospitalidade passava despercebido no entusiasmo primeiro do reencontro e das primeiras notícias. Jesus foi sensível a esse gesto tão magnânimo quanto ínfimo. Ele, Rabi, quis realizar a tarefa do servente, deixando mudos os presentes, quer pelo constrangimento, quer pela indisponibilidade de quem conduzia a refeição para conversar naquele momento. Esse constrangimento que a Igreja perpetua na eucaristia da tarde de hoje provoca uma revisão constante das prioridades e escolhas pessoais e comunitárias: queremos imitar um Rabi que era servente, não somos servos que queremos ser Rabis.

Acompanha-me neste dia, há vários anos, a “Missa sobre o Mundo” (1923), de Teilhard de Chardin, SJ (1881 – 1955) – esse desassossegado construtor de pontes, desprezado por quem tanto quis aproximar, pelas duas margens cegas de certezas: a ciência academizada e a Igreja magistral. Esse sábio que viveu como um escravo, ostracizado nas estepes da China, perfumou a teologia a partir de uma experiência de privação, quando, sem pão, nem vinho, nem companhia se elevou até «à pura majestade do real», oferecendo «no altar da Terra inteira, o trabalho e a dor do mundo».

Que a forma original como cada um de nós ama e como cada um se oferece no serviço discreto aos invisíveis seja o perfume que levamos agarrado ao corpo, terminadas as celebrações pascais deste dia.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.