Coisas Escondidas

O filme opta pela simplicidade do argumento racional, apesar de os escritos de Franz mostrarem um nível de reflexão sobre a fé que está ausente do filme. Mas, talvez, bem.

O filme opta pela simplicidade do argumento racional, apesar de os escritos de Franz mostrarem um nível de reflexão sobre a fé que está ausente do filme. Mas, talvez, bem.

Conheci Franz Jägerstätter através de Gordon Zahn, sociólogo americano, católico, pacifista, que o descobriu quando preparava o seu livro “German Catholics and Hitler’s Wars”.

Dois anos mais tarde, em 1964, publicava “In Solitary Witness”, contando a sua história.

Quando Thomas Roberts, S.J., antigo Arcebispo de Bombaim, que tinha conhecido Zahn, não conseguiu ler no Concílio Vaticano II a intervenção que tinha preparado e que era em grande parte a história de Franz, corajosamente leu-a numa conferência de imprensa e isso foi fundamental para a inclusão da famosa passagem sobre objeção de consciência na constituição Gaudium et Spes.

Mais de duas décadas antes, Franz, um camponês austríaco, sem grande instrução, sacristão na igreja de Sankt Radegund, uma pequena aldeia a 30 km de Braunau am Inn, onde nasceu Adolf Hitler, tinha recusado prestar juramento de lealdade a Adolf Hitler e mais tarde servir no exército nazi. Tinha mulher, três filhas pequenas e uma outra filha mais velha nascida de uma relação anterior. Por se ter recusado a combater e sequer a prestar o dito juramento, foi decapitado em 1943. Antes disso, esteve preso, e as cartas trocadas entre ele e a mulher Franziska, publicadas pela primeira vez em 2007, são agora o pano de fundo do filme “Uma Vida Escondida” de Terrence Malick.

Havia muitas formas de contar esta história. O filme é, antes de tudo o resto, o amor de Franz e Franziska, a beleza das montanhas, a alegria das crianças, a beleza de uma vida simples.

Mais tarde, a delicadeza de um Franz algemado a apanhar um qualquer chapéu de chuva e a encostá-lo de volta à parede, e a fortaleza de Franziska sozinha em Sankt Radegund a sorrir e a brincar com as filhas, com o coração frágil sob o peso da tragédia que se avizinha.

A grandeza de uma pessoa vê-se primeiro nas pequenas coisas, nas coisas escondidas. Dez anos depois de pela primeira vez ter lido as cartas trocadas entre Franz e Franziska, o que me toca é também a delicadeza de alguém que sabe o que é essencial: lembrar o sogro que seja paciente com as crianças e também com as vacas, ou dizer a Franziska para não trabalhar mais do que o razoável, lembrando que as crianças têm de ser a sua prioridade, ou alegrar-se com um dia de sol ou com a lembrança da beleza da sua aldeia na Primavera. Há sofrimentos que não nos compete carregar, ou impor aos outros, e Franz percebe a diferença.

No caso de Franz, além das pequenas coisas, houve também um sacrifício último, aparentemente escondido e sem qualquer impacto na História, cuja irrelevância prática tantos tentaram argumentar. E também por isso o título do filme, retirado de uma passagem de Middlemarch, de George Eliot, que lembra que o mundo é melhor por causa de todos aqueles que viveram fielmente vidas escondidas e que jazem em túmulos que ninguém visita.

O filme opta pela simplicidade do argumento racional, apesar de os escritos de Franz mostrarem um nível de reflexão sobre a fé que está ausente do filme. Mas, talvez, bem.

A repressão, toda ela, depende sempre e só da cobardia daqueles, quase todos nós, que recusam a dimensão da vida eterna e o sofrimento inevitável da vida terrena.

A verdade é que, como a História teima em recordar-nos, inteligência, capacidade de reconhecer o mal e fortaleza para agir segundo os ditames da consciência nem sempre coincidem. O bem não exige só conhecimento. Exige fé. Exige sacrifício. Exige sobretudo, segundo Franz, a graça de Deus.

O filme é, assim, mais a força da beleza das montanhas, dos campos e do céu, e do amor entre Franz e Franziska, e que Malick claramente identifica com o bem. Franz ser infiel ao bem em que acredita seria uma negação da beleza que nos invade durante três horas. O sofrimento é compatível com o bem e com a beleza, a infidelidade não.

Há três anos atrás, a ver o Silêncio de Martin Scorsese, era em Franz que eu pensava. Não estavam à frente de Franz prestes a ser decapitado a mulher e as filhas pequenas, a visão de uma vida de crueza física, emocional e material para Franziska, e de uma infância sem pai para as crianças, mas não podiam deixar de estar no seu espírito. Franz permanece fiel. Sebastião Rodrigues, perante o sofrimento que a sua fidelidade vai inevitavelmente causar naqueles que estão à sua frente, não percebe que o transigir no que é essencial desumaniza e deixa sempre o mundo um bocadinho pior. Se todos fossem Franz, não teria havido guerra nem Holocausto. Sem Sebastiões Rodrigues, não haveria regimes totalitários.

A repressão, toda ela, depende sempre e só da cobardia daqueles, quase todos nós, que recusam a dimensão da vida eterna e o sofrimento inevitável da vida terrena. No filme, há um pintor que trabalha o interior da igreja com pinturas idealistas, destituídas de sofrimento. Diz ele que pinta um Cristo confortável, com um halo sobre a cabeça, mas que talvez um dia tenha coragem de pintar o verdadeiro Cristo. Diz ele que a vida cristã é uma exigência. É.

Era também nisto que eu pensava quando naquele Verão de 2009, com marido e três filhas, me sentei em frente da casa de Franz e Franziska e das suas três filhas.

Fotografia de destaque: Fox Searchlight Pictures. © 2019 Twentieth Century Fox Film Corporation

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.