O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.
Numa das primeiras aulas da licenciatura em História aprendi algo que tem sido fundamental na minha vida – a importância da crítica de fonte. Por isso mesmo, sempre que começo um ano letivo ou uma formação, apresento alguns dados sobre mim para que as pessoas possam fazer a sua crítica de fonte e perceber o meu lugar de fala, as bagagens que transporto e que moldam a minha visão sobre o mundo.
Trabalho em Educação desde que me lembro, embora em diferentes contextos, em diferentes áreas e com diferentes públicos – desde a educação não formal, em instituições para crianças carenciadas, centros de apoio à deficiência e centros de dia para pessoas idosas; à educação formal, na área da História, da Música, da Cultura e da Língua; em Portugal, Moçambique e na Guiné-Bissau. Desde 2011, colaboro com a Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo na área da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global, bem como com o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto no qual faço parte do grupo de investigação em Educação, Desenvolvimento e Cidadania Global.
Sou católica comprometida e inspirada pela figura de Jesus, a qual nunca deixa de me maravilhar, pelos seus ensinamentos, pelo seu testemunho, pelo seu convite desafiante e, claro, pelo seu lado mais pedagógico.
Religião e Educação são dois pilares centrais da minha identidade. Acreditando fortemente no valor de ambas, apesar de nem sempre concordar com tudo o que se passa nas suas instituições – a Igreja e a Escola –, continuo comprometida com a procura de caminhos de mudança, “por dentro”, mais fiéis e coerentes com o que creio serem os seus valores centrais.
Com estes pontos de partida é fácil perceber por que razão tenho acompanhado, com muito interesse, e às vezes com alguma surpresa, o debate instalado à volta da “disciplina” de Cidadania e Desenvolvimento, para o qual contribuo agora com algumas reflexões pessoais e coletivas, que tenho vindo a tecer com colegas e estudantes.
Num tempo em que os desafios que nos são colocados são cada vez mais complexos – a globalização, as crises económicas e financeiras, a crescente diversidade cultural, as discriminações de diversos tipos, a pandemia, a multiplicação de informação e de informação falsa, os problemas ambientais, etc. – necessitamos de cidadãos e cidadãs preparadas para ler criticamente o mundo, identificar os seus maiores problemas, sonhar alternativas e mobilizar competências para participar ativamente na construção das mesmas.
Num tempo em que os desafios que nos são colocados são cada vez mais complexos – a globalização, as crises económicas e financeiras, a crescente diversidade cultural, as discriminações de diversos tipos, a pandemia, a multiplicação de informação e de informação falsa, os problemas ambientais, etc. – necessitamos de cidadãos e cidadãs preparadas para ler criticamente o mundo, identificar os seus maiores problemas, sonhar alternativas e mobilizar competências para participar ativamente na construção das mesmas. Creio não haver dúvidas que a Educação tem um papel fundamental em todo este processo.
Em Portugal, a responsabilidade de responder a este mandato, na educação formal do Ensino Básico e Secundário, tem sido, tradicionalmente, entregue à área de Educação para a Cidadania. No entanto, esta não tem tido um percurso consistente, estando à mercê das opções sobre o seu modelo de implementação nas escolas, sofrendo constantes alterações estruturais e curriculares.
Se remontarmos a 2012, momento em que teve lugar um novo enquadramento da organização e da gestão dos currículos dos ensinos básico e secundário (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho), a Cidadania adquiriu um caráter transversal, tendo sido identificadas, pelo então Ministério da Educação e Ciência, quinze dimensões da Educação para a Cidadania no documento Educação para a Cidadania – linhas orientadoras. Em 2018, através do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, estabelecem-se as bases de uma nova proposta educativa, ancorada em documentos como o Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Estes documentos definem os princípios, a visão, os valores e as áreas de competência para o modelo de educação proposto. Neste contexto, e porque se pretende uma Escola viva de valores, surge uma nova visão da área da Cidadania, com uma abordagem que se apresenta “embutida na própria cultura da escola” (ENEC, p.6). Para além disso, é proposta uma abordagem curricular diferenciada – transversal (a ser trabalhada em todas as disciplinas) em alguns ciclos, disciplina autónoma noutros. Para esta nova componente curricular, e é esta a designação correta, são definidos dezassete domínios a serem abordados. Domínios aliás, não muito diferentes das dimensões apresentadas anteriormente no documento Educação para a Cidadania – linhas orientadoras, de 2012.
A discussão que agora se coloca não se restringe, portanto, apenas a uma disciplina, nem a uma componente curricular, mas entronca num debate mais profundo sobre que tipo de Educação se pretende e sobre o papel do ensino público na promoção deste desígnio.
A discussão que agora se coloca não se restringe, portanto, apenas a uma disciplina, nem a uma componente curricular, mas entronca num debate mais profundo sobre que tipo de Educação se pretende e sobre o papel do ensino público na promoção deste desígnio.
Eis a grande questão – que sistema de ensino queremos? Um sistema de ensino ao serviço de modelos mais tecnocráticos e voltado para a resposta às necessidades do mercado de trabalho? Ou um sistema de base mais humanista, ao serviço da construção de um mundo mais justo, inclusivo e solidário? Um sistema que prepare excelentes profissionais, mas alheado das noções de empatia e de humanidade partilhada? Um sistema assente na valorização dos resultados de avaliações, muitas vezes não traduzíveis em aprendizagens reais, ou que valorize atitudes e valores de cidadania efetiva, de respeito e de não discriminação? Um sistema de verdades absolutas e julgamentos apressados ou um sistema que ensine que na vida real quase nada é apenas certo e errado e que existem muitos depende?
A nova abordagem à área da Educação para a Cidadania assume-se, e como a educação nunca é neutra é bom que se assuma, como a opção por um modelo de educação e de ensino que pretende formar crianças e jovens “para que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática” (ENEC, p.1).
É este um caminho fácil? É este um caminho isento de dilemas? É este um caminho único, de certezas absolutas? Claro que não! Daí a importância de educar para a resiliência, a pluralidade, o sentido crítico, a capacidade de questionar e argumentar.
Como mãe e como educadora de uma filha adolescente, nem sempre me identifico com todos os conteúdos que se estudam na escola (a visão muitas vezes etnocêntrica do programa de História, por exemplo, pode servir como ilustração), no entanto, acredito no papel da família, e de outros espaços educativos, como lugares de questionamento e de promoção de um pensamento próprio.
Como mãe e como educadora de uma filha adolescente, nem sempre me identifico com todos os conteúdos que se estudam na escola (a visão muitas vezes etnocêntrica do programa de História, por exemplo, pode servir como ilustração), no entanto, acredito no papel da família, e de outros espaços educativos, como lugares de questionamento e de promoção de um pensamento próprio.
Estamos preparados, enquanto agentes educativos, para o enfrentar? Temos docentes com ferramentas adequadas para o realizar? Talvez ainda estejamos (e sempre estaremos) em processo. No entanto, em vez de ter medo do desafio, de decidirmos escapar à realidade e de nos fecharmos em nós próprios, podemos optar por enfrentar estas perguntas e fazer caminho. Como dar um melhor corpo a estas áreas para que se visibilize a verdadeira diversidade do mundo e para que a dignidade de cada ser humano possa ser respeitada?
Profissionalmente, e porque acredito que a Educação é o grande motor de mudança, tenho estado envolvida em projetos promovidos pela Comissão Europeia que refletem sobre estes desafios e vão construindo caminhos com diferentes agentes da comunidade educativa, seja através da formação de docentes, seja através da elaboração de recursos que apoiem a sua implementação.
No projeto Global Schools: Aprender a (con)viver (2015-2018) uma equipa da ESE-IPVC, em colaboração com duas Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (a Fundação Gonçalo da Silveira e o Graal, ambas de matriz católica) e com docentes dos agrupamentos de Viana do Castelo, num contexto de abordagem transversal da Educação para a Cidadania, refletiu coletivamente sobre as possibilidades de integração curricular, nas disciplinas tradicionais, de temáticas ligadas à diversidade cultural, ao reconhecimento da crescente complexidade e interdependência da sociedade, às desigualdades (provocadas elas por que motivo forem), ao combate pela justiça social e às questões ambientais. Na atualidade, estamos envolvidas no projeto Get up and Goals! que nos tem permitido refletir, novamente através de um processo colaborativo com docentes do ensino básico e secundário, sobre como abordar, na componente curricular (não somente disciplina) de Cidadania e Desenvolvimento, questões como as Alterações Climáticas, as Desigualdades Mundiais, a Igualdade de Género e as Migrações. A resposta obtida nos encontros formativos realizados no âmbito da formação de docentes, nos quais têm participado professores e professoras de todas as áreas curriculares (nomeadamente de Educação Moral e Religiosa Católica) tem sido muito positiva. É salientada, muitas vezes, a importância de: i) introduzir nas escolas temas do “mundo atual e real”, geralmente deixados de fora do currículo escolar; ii) colmatar a eventual falta de apoio familiar sentida e expressa por diversos jovens (o que, na escola pública, é fundamental); iii) desenvolver nas crianças e jovens a “vontade de mudar o mundo”; iv) potenciar competências de participação ativa na sociedade.
Esta é uma oportunidade ímpar para que possamos fazer de toda esta discussão um momento de construção e não de polarização, radicalismo ou instrumentalização político-partidária. Que esta ocasião sirva para clarificar os desígnios desta componente curricular, para se apostar em mais e melhor formação de todo o corpo docente e para dar visibilidade ao que de bom se está a fazer, neste âmbito, nas nossas escolas.
A componente de Cidadania e Desenvolvimento pode, de facto, ser um espaço de reflexão sobre como fazer face às ameaças globais – crises económicas e ambientais, radicalismos, discriminações, exclusão social – promovendo processos educativos que conduzam a uma humanidade mais reflexiva, mais questionadora, mais coerente na sua relação com a liberdade individual e com a responsabilidade coletiva, com os outros e com o mundo que os rodeia. Um sentido de humanidade partilhada assente em princípios de acolhimento, inclusão, justiça social e solidariedade.
Não será este um dos desafios mais importantes deixados por Jesus Cristo?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.