Cidadania democrática e liberdade de educação

O manifesto «Em defesa das liberdades de educação» pode ser reaccionário, cavernícola, ultramontano e o que lhe quiserem chamar, mas é o que melhor salvaguarda o interesse das duas crianças em prosseguirem um brilhante percurso académico.

O manifesto «Em defesa das liberdades de educação» pode ser reaccionário, cavernícola, ultramontano e o que lhe quiserem chamar, mas é o que melhor salvaguarda o interesse das duas crianças em prosseguirem um brilhante percurso académico.

O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.

1. Assinei o manifesto «Em defesa das liberdades de educação» e voltaria a fazê-lo, uma e cem vezes.

Não porque me identifique necessariamente com todas as suas premissas ou com todas as afirmações nele inscritas, nem porque entenda que a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento deva ser abolida ou sequer tornada facultativa (coisa sobre a qual, aliás, o manifesto não se pronuncia).

Assinei o manifesto por duas e fundamentais razões, ambas de carne e osso. Razões em forma de gente: os dois alunos que, no meio desta algazarra toda, têm sido esquecidos e obliterados, como se o confronto de «ideias» e a vitória no campo dos «princípios», todos abstractos e grafados com maiúscula, fossem mais importantes do que o destino de dois seres humanos individuais e concretos.

Dirão muitos que o destino daqueles miúdos foi colocado em crise, antes de mais, pelos próprios pais, ao invocarem a liberdade de consciência para recusar a frequência da disciplina obrigatória de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento. Talvez, admito. Mas punir dois alunos pela atitude obstinada dos seus pais – e logo estes alunos, com um percurso escolar brilhante, ambos no quadro de honra – é algo que não me parece sensato, nem justo.

 

Os dois alunos (da escola de Famalicão) que, no meio desta algazarra toda, têm sido esquecidos e obliterados, como se o confronto de «ideias» e a vitória no campo dos «princípios», todos abstractos e grafados com maiúscula, fossem mais importantes do que o destino de dois seres humanos individuais e concretos.

2. Afirmou o secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, que os pais de Vila Nova de Famalicão utilizaram os seus filhos numa «campanha ideológica» (declarações à TVI, de 2/9/2020). Manipularam-nos, portanto, instrumentalizaram-nos. É possível. Só que, se assim for, e se os pais de Famalicão, com a sua intransigência, puseram em perigo a educação e o futuro dos filhos, só resta às autoridades, para serem consequentes, puni-los de modo adequado, porventura drástico, na proporção do mal causado aos dois menores. Sabe-se que, nos termos legais, e o que é compreensível, a situação já foi referenciada à comissão de protecção de menores, mas que ninguém de bom senso tenha proposto, por ora, retirar o poder paternal aos pais de Famalicão é prova de que este caso talvez seja mais complexo do que à primeira vista parece.

3. Tudo sugere, desde logo, que, a haver culpas – ponto que me parece duvidoso, mas enfim… –, a haver culpas, dizia, elas serão partilhadas, e talvez mesmo por igual, entre os pais dos alunos e um «sistema» que permitiu que se chegasse até aqui.

Interpelado sobre este específico ponto, o ministro da Educação pura e simplesmente não respondeu à pergunta. Em entrevista ao Notícias/Magazine, de 23/9/2020, e confrontado com a questão «Por que razão o Ministério demorou dois anos a decidir?», afirmou o Ministro: «quero dizer algo de forma muito inequívoca: não há, nem nunca houve ou haverá qualquer intenção de penalizar estes alunos de forma concreta, assim como nunca houve, há ou haverá de menosprezar uma das nossas facetas curriculares. Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de corpo inteiro. O que o Ministério fez foi auxiliar as decisões da escola quando a escola assim o quis. O sucesso escolar e a equidade do nosso sistema educativo são absolutamente centrais para todas as crianças, incluindo estas.» Mas sobre a questão decisiva, para este e para outros casos, até para aferirmos da eficiência do nosso sistema de ensino público, sobre a questão decisiva de «Por que razão o Ministério demorou dois anos a decidir?», o Ministro nada esclareceu.

Na verdade, que um aluno falte dois anos seguidos a todas as aulas de uma disciplina e ainda assim vá transitando é coisa estranha, que dá que pensar. Talvez tenha havido, por parte da escola, dos conselhos de turmas, das autoridades regionais ou centrais um excesso de «facilitismo» e «amiguismo», um «nacional-porreirismo», que, não sendo propriamente uma ideologia de género, é um género de ideologia muito praticado em Portugal.

Ou talvez ninguém tenha levado muito a sério, afinal, a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, pois não estou em crer, nem quero crer, que o nosso sistema público de ensino permita que um aluno vá passando tranquilamente de ano sem ter posto uma vez sequer os pés numa aula de Matemática ou de Português, por exemplo.

Ou talvez ninguém tenha levado muito a sério, afinal, a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, pois não estou em crer, nem quero crer, que o nosso sistema público de ensino permita que um aluno vá passando tranquilamente de ano sem ter posto uma vez sequer os pés numa aula de Matemática ou de Português, por exemplo.

Tudo isto sucedeu com a cadeira de Cidadania porque, sejamos honestos, ela não tem um estatuto idêntico às demais.

Nos termos do Decreto-Lei nº 55/2018, de 6 de Julho, a Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento integra o currículo-base, mas como «área de trabalho transversal», cabendo à escola aprovar a sua «estratégia de educação para a cidadania». A escola tanto pode leccionar a cadeira como disciplina autónoma como pode colocá-la como coadjuvante de outra disciplina, em justaposição com outra disciplina ou abordar os temas e o projecto, no âmbito das diferentes disciplinas da matriz e sob coordenação de um dos professores da turma ou grupo de alunos (artigo 15º, nº 4, do Decreto-Lei nº 55/2018). A escola tem, pois, quatro soluções ao seu dispor e, importa sublinhá-lo, a Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento pode até nem ser lecionada como disciplina autónoma, sendo essa apenas uma das quatro opções concedidas à escola (cf. também o artigo 11º da Portaria nº 223-A/2018, de 3 de Agosto).

Além disso, e segundo informa a jornalista Bárbara Reis (in Público, de 25/9/2020), ponto que não consegui apurar, a disciplina tem uma carga horária risível: seis horas por ano no 1º e no 2º ciclos e 12 horas por ano no 3º ciclo. Por ano, note-se, também não é essencial ter aproveitamento à disciplina para transitar de ano.

Em face do exposto, é fácil de concluir que à disciplina de Educação para a Cidadania não foi atribuído, mesmo pelo actual governo, estatuto idêntico ao das demais cadeiras que integram o currículo. Porventura, isso deve-se à natureza específica e aos contornos algo difusos da cadeira, ou ao facto de só recentemente ter sido imposta como obrigatória, mas o facto é que, por uma razão ou outra, a Educação para a Cidadania e para o Desenvolvimento não tem um estatuto equiparável a Matemática ou a Português. E isso talvez explique alguma ou mesmo muita coisa.

4. Certos comentadores têm notado, de resto, que a disciplina não só tem um estatuto subalterno como as matérias nela versadas são inócuas e inofensivas –  razão acrescida, segundo eles, para não dever motivar tanta indignação por parte dos progenitores daquelas infortunadas crianças. Afirmou Bárbara Reis, no Público, de 25/9/2020, que, naquela cadeira, «é tudo superficial e os temas de Cidadania são tratados pela rama».

Isto pode tornar a atitude dos pais de Famalicão ainda mais criticável e passível de censura, mas torna também mais absurdo e kafkiano que duas crianças possam perder dois anos lectivos por causa de uma disciplina que tem uma carga lectiva de meia-dúzia de horas por ano, que pode existir ou não como disciplina autónoma e que, segundo parece, nem sequer conta para transitar para o ano lectivo seguinte.

Terá sido isso, possivelmente, que levou os conselhos de turma do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco a autorizarem que os alunos transitassem de ano apesar do excesso de faltas em Cidadania e Desenvolvimento e, note-se, apesar de os pais terem recusado os planos de recuperação para compensar tais faltas.

Entenderam os conselhos de turmas que, apesar das faltas reiteradas das crianças e da teimosia dos pais, os alunos podiam passar de ano por terem, e cito, «um excelente desempenho escolar» e «atitudes cívicas exemplares».

Que dois alunos que nunca puseram os pés nas aulas de Cidadania sejam capazes de ter «atitudes cívicas exemplares» é algo que só parecerá bizarro a todos quantos pensam que, sem as aulas de Cidadania, não existirão cidadãos dignos desse nome. É confiar em excesso no poder transformador da escola e, sobretudo, nas virtudes formativas de uma cadeira ministrada apenas um par de horas por ano (sublinho: por ano) e que nem conta sequer para passar de ano – mas que, agora, pode fazer com que dois alunos brilhantes, ademais cidadãos exemplares, retrocedam dois ou mais anos no seu percurso académico.

É confiar em excesso no poder transformador da escola e, sobretudo, nas virtudes formativas de uma cadeira ministrada apenas um par de horas por ano (sublinho: por ano) e que nem conta sequer para passar de ano – mas que, agora, pode fazer com que dois alunos brilhantes, ademais cidadãos exemplares, retrocedam dois ou mais anos no seu percurso académico.

Disse dois ou mais anos pois, em direitas contas, se o processo se arrastar nos tribunais é possível que os alunos concluam a faculdade e, com 19, 20, 21 anos, tenham de regressar aos bancos de escola do ensino secundário para completar seis horas anuais de Cidadania e Desenvolvimento do 8º ou do 9º ano de escolaridade… Os pais já anunciaram, aliás, a intenção de recorrer, se necessário, às instâncias europeias, onde o Estado português tem sido reiteradamente condenado por inconcebíveis atrasos do seu sistema de justiça. A coisa, portanto, pode demorar vários anos até ser resolvida, num sentido ou noutro. E isto deve-se tanto à obstinação dos pais de Famalicão como à incapacidade que o sistema de ensino demonstrou de responder atempadamente, de forma positiva ou negativa, àquela obstinação.

Não foram os pais, convém dizê-lo, que permitiram que uma questão destas se arrastasse tanto tempo sem uma solução expedita. A cronologia dos factos, tal como divulgada na imprensa (por exemplo, no  Observador, aqui; ou no Polígrafo, aqui), mostra um emaranhado de cartas e ofícios, notificações e reuniões, todos decerto ditados pelas regras e pelos procedimentos, por inteira boa-fé, mas formando uma floresta que impediu que o caso fosse tratado da forma célere que se impunha. A questão foi suscitada pela primeira vez em 10 de Outubro de 2018, quando o director da escola informou o pai das crianças do carácter obrigatório da disciplina, mas só dois meses depois, em 19 de Dezembro desse ano, é que a Direcção de Serviços da Região Norte da DGEstE esclareceu a escola sobre esse carácter obrigatório. Pelo meio, e sem que se perceba como nem porquê, foi atribuída aos alunos a classificação de 3 à disciplina de Cidadania, sem que eles tenham ido a uma aula sequer… Os pais sempre recusaram todas as propostas feitas, o que não impediu o sistema de gerar cinco planos de recuperação, em datas sucessivas e espaçados no tempo, cuja tramitação, naturalmente, levou ao arrastamento de todo o processo. E, sendo o despacho fulcral do secretário de Estado datado de 16 de Janeiro deste ano, não se percebe como chegamos a Junho, no final do ano lectivo, e a situação permaneceu por resolver.

Quanto ao ponto decisivo: os pais podem ter beneficiado da tolerância dos conselhos de turmas, mas não são responsáveis por ela. Não se trata sequer de apurar «culpas», mas de concluir que, talvez no afã de não querer reprovar os alunos, o «sistema» acabou por lhes causar maior dano, ao não entender que, como o pai sempre o afirmou, com total transparência, seriam recusadas todas as tentativas para encontrar uma solução de compromisso. O «facilitismo» foi ao ponto de atribuir aos alunos uma classificação de 3 valores, fictícia e falsa, quando não frequentaram uma aula sequer. E, depois disso, não obstante o pai ter manifestado estranheza pela nota falsamente atribuída, os conselhos de turma insistiram na complacência, permitindo que os alunos transitassem de ano sem nunca terem frequentado uma aula sequer de uma disciplina obrigatória.

Ora, quem poderá ser punido no final não serão os pais (como disse, ainda não há notícia de medidas sancionatórias), nem a escola ou as entidades públicas (parece que há um inquérito em curso, aguardemos…). Quem poderá e já está a ser punido são os dois alunos de Famalicão, sendo indiferente saber se a culpa se deve ao radicalismo dos pais ou ao laxismo da escola, ou a ambos.

Quem poderá e já está a ser punido são os dois alunos de Famalicão, sendo indiferente saber se a culpa se deve ao radicalismo dos pais ou ao laxismo da escola, ou a ambos.

Perante tido isto, ainda perguntam porque assinei o manifesto?

E, já agora, não só o assinei como, mais tarde, tive ensejo de, com o investigador Vasco M. Barreto, publicar um texto em que, de novo, se chamava a atenção para a necessidade de recentrar o debate no essencial, as duas crianças de Famalicão (cf. «Sobre os dois irmãos de Famalicão», Público, de 8/9/2020).

 

5. Em todo este caso, parece que as únicas pessoas que levaram a Cidadania e Desenvolvimento a sério foram, paradoxalmente, os pais de Famalicão, já que até hoje nunca se tinham ouvido, creio eu, vozes a clamar por uma maior carga lectiva da disciplina, por maior densidade curricular e programática, por tornar o aproveitamento na cadeira imprescindível para transitar de ano, por fazer com que ela seja lecionada como disciplina autónoma, a par e com idêntico estatuto às demais. «Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de corpo inteiro», proclamou o ministro. Pois não parece.

E o que parece estranho é que esta disciplina só começou a ser enaltecida e saudada após terem sido questionados alguns dos seus conteúdos. Até aí, que eu saiba, ninguém pugnou em público pela sua valorização, ninguém se insurgiu contra o facto de, por exemplo, ela poder nem sequer existir como disciplina autónoma, decisão tomada pelo actual Governo através do Decreto-Lei nº 55/2018.

Entendamo-nos: admite-se que haja uma enorme discrepância entre os conteúdos dessa cadeira e a sua efectiva «perigosidade» para a formação (católica ultramontana, conservadora radical, o que quiserem) que os pais de Famalicão pretendem para os seus filhos. Mas deve também reconhecer-se, com idêntica boa-fé e imparcialidade, que existe uma enorme e abissal discrepância entre o que esta cadeira tem sido até hoje e o que agora dizem que ela é (e pretende ser) para a formação ética, cívica e humana das nossas crianças e dos nossos adolescentes.

Entendamo-nos: admite-se que haja uma enorme discrepância entre os conteúdos dessa cadeira e a sua efectiva «perigosidade» para a formação (católica ultramontana, conservadora radical, o que quiserem) que os pais de Famalicão pretendem para os seus filhos.

Se a Cidadania e Desenvolvimento é assim tão imprescindível para formar cidadãos – contra a violência doméstica, a favor do respeito pela sexualidade do outro ou em prol da sustentabilidade do planeta, tudo palavras do secretário de Estado João Costa –, se essa cadeira é assim tão fundamental, dizia, porque tem sido tão menosprezada e desvalorizada?

Entendamo-nos, de novo. A educação para a cidadania foi referida primeiramente na Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada pela Lei nº 46/86, de 14 de Outubro, sendo primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, dizendo-se nessa Lei que o sistema educativo deve estar organizado para «assegurar a educação cívica e moral dos jovens» [artigo 3º, alínea c)].

Mais tarde, em 2013, pela Resolução do Conselho de Ministros nº 103/2013, que aprovou o V Plano Nacional para a Igualdade de Género, Cidadania e Não-Discriminação, estabeleceu-se a igualdade de género como um dos «eixos estruturantes das orientações para a educação pré-escolar, ensino básico e secundário». Em 2012 e, depois, em 2013, a Direcção-Geral de Educação, então tutelada pelo ministro Nuno Crato, desenhou as «Linhas Orientadoras» para a Educação para a Cidadania, entre as quais se incluía a «Educação para a Saúde e a Sexualidade». Esta, dizia aquele documento, «pretende dotar as crianças e os jovens de conhecimentos, atitudes e valores que os ajudem a fazer opções e a tomar decisões adequadas à sua saúde e ao seu bem-estar físico, social e mental». E acrescentava: «a escola deve providenciar informações rigorosas relacionadas com a proteção da saúde e a prevenção do risco, nomeadamente na área da sexualidade, da violência, do comportamento alimentar, do consumo de substâncias, do sedentarismo e dos acidentes em contexto escolar e doméstico».

Em face disto, é no mínimo bizarro que se ataque Passos Coelho ou Cavaco Silva por terem assinado este manifesto e, logo, por serem «contra a cidadania», quando foi um governo dirigido por Cavaco Silva que consagrou, na Lei de Bases do Sistema Educativo, o princípio da formação cívica dos jovens e quando foi um governo dirigido por Passos Coelho que lançou o ensino dessa disciplina, nela incluindo a educação para a sexualidade.

Tal ponto foi, de resto, reconhecido pelo ministro Tiago Brandão Rodrigues, que, na citada entrevista ao Notícias/Magazine, lembrou que «a disciplina já existia nos governos liderados por Pedro Passos Coelho». E até a Fenprof veio afirmar, em declarações recentes, que a formação de cidadãos responsáveis é «uma antiga preocupação que começou a dar os seus primeiros passos em 1988, na sequência do consagrado na Lei de Bases do Sistema Educativo, quando Roberto Carneiro era ministro da Educação de um Governo liderado por Cavaco Silva».

O secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, num artigo intitulado «A Cidadania Não é Facultativa» (Público, 3/9/2020), também lembrou esse historial, pelo que não se compreende como teve o desplante de acusar os signatários do manifesto «Em defesa das liberdades de educação» de serem, pasme-se, adversários da cidadania, como se a subscrição de tal documento não fosse, em si mesma, um exercício de cidadania, mais do que legítimo numa sociedade democrática e plural, em que a qualidade de cidadão é –  e tem de ser – aberta à diversidade de mundividências e de opiniões.

Ora, o manifesto – e é preciso lê-lo – não é insultuoso nem panfletário, não faz ataques ad hominem e, a ter um defeito, será o da aridez da sua argumentação, quase exclusivamente jurídica, e o tom excessivamente circunspecto do seu estilo, de enorme contenção verbal.

Disse o secretário de Estado João Costa que aquele documento é – e cito – «um manifesto político por um desejo de que, na vida em sociedade, a cidadania seja uma opção e não um compromisso pelo respeito dos direitos de todos». E insistiu logo adiante, afirmando que os signatários do documento pretendem «que a cidadania seja uma opção e não um dever de todos» (sic).

No mesmo sentido, a deputada Isabel Moreira assinou no Público, de 10 de Setembro, um artigo com o título «Objectar à cidadania: uma campanha» e, no Expresso, assinou outro artigo que terminava dizendo que «objectar a isto é, claro, objectar à cidadania» (Expresso, de 3/9/2020).

E, como a insensatez não tem limites, um investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Tiago Rolino, veio afirmar que o manifesto é «uma tentativa das forças de direita e extrema-direita impedirem o avanço das liberdades e da defesa das diversidades e dos direitos humanos», pretendendo «o regresso dos dogmas bafientos, “familistas” e antiliberdade que ainda são a herança do Estado Novo».

Ora, o manifesto – e é preciso lê-lo – não é insultuoso nem panfletário, não faz ataques ad hominem e, a ter um defeito, será o da aridez da sua argumentação, quase exclusivamente jurídica, e o tom excessivamente circunspecto do seu estilo, de enorme contenção verbal.

Os seus subscritores, que o assinaram num exercício de cidadania, não mereciam ser insultados como inimigos do civismo.

Tal insulto – e todos os que depois se ouviram, de ambos os lados da trincheira – é a prova provada de que a educação para a cidadania constitui, de facto, uma matéria essencial, mas tanto para os alunos das escolas como para muitos dos que intervêm na esfera pública.

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6. Se é falso que os signatários do manifesto sejam «contra a cidadania», é igualmente falso, completamente falso, que o secretário de Estado tenha mandado reprovar os alunos. Muitos disseram-no, no calor da polémica, mas é mentira.

O que surpreende, na atitude do secretário de Estado (e do «sistema» por ele tutelado), é justamente o inverso, é o receio de adoptar uma postura persecutória contra os alunos ou os seus pais e insistir, porventura muito para lá do que seria razoável, em medidas que evitassem a reprovação dos alunos, quando desde o início era claro que o pai recusaria todas as soluções que lhe propusessem. Este conflito de teimosias – a teimosia do pai em rejeitar soluções e a teimosia do sistema em continuar a propor-lhas –  gerou uma situação que acaba por ser a mais penalizadora de todas para os alunos de Famalicão, com a agravante de o impasse ter agora subido de tom e de alcance, e de ter sido transferido para a esfera judicial, cuja consabida morosidade será ainda mais prejudicial para o percurso escolar daquelas duas crianças. No pé em que as coisas estão, o compromisso é difícil, se não mesmo impossível, e implica sempre uma solução extrema, seja o reconhecimento do direito dos pais à objecção de consciência, seja a reprovação dos alunos e consequente perda de dois ou mais anos de um trajecto académico brilhante.

Se é falso que os signatários do manifesto sejam «contra a cidadania», é igualmente falso, completamente falso, que o secretário de Estado tenha mandado reprovar os alunos. Muitos disseram-no, no calor da polémica, mas é mentira.

Já agora, e a talhe de foice, mas porque é ilustrativo do modo como se exerce a cidadania no Portugal democrático, na atitude do secretário de Estado é também surpreendente a duplicidade de registos e de discursos: no plano administrativo, a máxima complacência, a busca à outrance de um compromisso impossível, tentando evitar-se a todo o custo, e porventura muito para lá do razoável, a reprovação dos alunos (no fundo, quis-se também evitar, não sejamos ingénuos, o custo político de uma tal reprovação, como é óbvio); no plano político, ou da retórica política, a máxima intolerância, o recurso à inverdade e à calúnia, a vergonhosa tentativa de pretender figurar os signatários do manifesto como inimigos da cidadania – e até, porventura, da democracia. Esta alternância abissal de discursos, quase esquizofrénica, é bem exemplar do modo como a civilidade democrática e a honestidade intelectual rapidamente se esfumam na arena das controvérsias públicas, em prejuízo de todos e, claro está, em prejuízo, uma vez mais, dos dois alunos de Famalicão.

Em todo o caso, a reprovação desses alunos é uma possibilidade com que os pais, ao actuarem como actuaram – e continuam a actuar –, têm de contar. Não se pode recusar todas as possibilidades oferecidas pelo sistema e, ao mesmo tempo, pretender que uma tal atitude não tenha consequências num Estado de direito onde vigora o princípio da legalidade. Ao subirem a parada de uma forma tão intensa, tão radical, quase kamikaze, os pais de Famalicão têm de estar preparados para tudo o que os tribunais decidirem.

Mas, dito isto, continuo sem perceber como até agora ninguém – os conselhos de turmas, a direcção da escola, o secretário de Estado – se apoiou no artigo 7º, alínea n), da Lei de Bases para deferir a pretensão dos pais de Famalicão e liquidar esta questão.

É porque, deliberadamente, entendem, julgo eu, que o Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado pela Lei nº 51/2012, de 5 de Setembro, cujo artigo 21º determina a reprovação dos alunos, não pode ser compaginado com o enunciado da Lei de Bases do Sistema Educativo.

No fundo, porque consideram que não é legítimo invocar, neste caso, o direito à objecção de consciência para evitar a aplicação da medida de reprovação prevista no Estatuto do Aluno.

Se estou a ver bem o problema, é este, e só este, o cerne da questão: os pais consideram legítima a invocação da objecção de consciência, à luz de diversos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais e, em especial, à luz do disposto na Lei de Bases do Sistema Educativo; e as autoridades oficiais, pelo contrário, entendem que não há lugar à invocação da liberdade de consciência.

Ou, possivelmente, a questão da liberdade de consciência só agora se pôs, não tendo até aqui sido colocada pelos pais. O que significa que será agora, e apenas agora, que essa questão vai ser debatida, terá forçosamente de ser debatida, e as autoridades irão pronunciar-se, com clareza, sobre se consideram ou não legítimo invocar neste contexto o direito à objecção de consciência.

Em todo o caso, a reprovação desses alunos é uma possibilidade com que os pais, ao actuarem como actuaram – e continuam a actuar –, têm de contar. Não se pode recusar todas as possibilidades oferecidas pelo sistema e, ao mesmo tempo, pretender que uma tal atitude não tenha consequências num Estado de direito onde vigora o princípio da legalidade.

7. Enfim, e de uma vez por todas: ser contra a disciplina de Cidadania não é ser contra a cidadania. E defender que tal disciplina seja facultativa não é defender que a cidadania seja, também ela, opcional.

Uma coisa, aliás: o que é uma cidadania «opcional»?

E outra: quem defende a liberdade de consciência não é, ou não é necessariamente, contra essa disciplina, nem sequer contra a obrigatoriedade da mesma. Por exemplo, sou um defensor do serviço militar obrigatório (esse, sim, uma escola de cidadania e de interclassismo) e, ao mesmo tempo, defendo que, quem queira, possa eximir-se a cumprir aquela obrigatoriedade, invocando fundadas razões de consciência.

E outra coisa ainda, essa mais decisiva, a mais decisiva de todas: o manifesto, e assinei-o nesse pressuposto, em lugar algum – repito: em lugar algum – diz que a disciplina de Educação para a Cidadania deve ser abolida do currículo ou sequer que deve ser facultativa e opcional.

O que diz, e cito, é que os signatários «vêm declarar publicamente, e em especial perante as autoridades do Estado,

— que consideram imperativo que as políticas públicas de educação, em Portugal, respeitem sempre escrupulosamente, neste caso e em todos os demais casos análogos, a prioridade do direito e do dever das mães e pais de escolherem «o género de educação a dar aos seus filhos», como diz, expressamente por estas palavras, a Declaração Universal dos Direitos Humanos;

— e, em especial e de acordo com a Lei de Bases do Sistema Educativo português, respeitem a objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento, cujos conteúdos, aliás de facto muito densificados do ponto de vista das liberdades de educação em matéria cívica e moral, não podem ser impostos à liberdade de consciência.»

Convido os leitores a lerem ou relerem o manifesto, de fio a pavio. Em lugar algum se diz que a disciplina de Cidadania não deve ser obrigatória ou, se preferirmos, deve ser opcional e facultativa. Em lugar algum, que fique claro.

Afirmar que os seus subscritores são adversários dessa disciplina e, pior ainda, adversários da cidadania, é um acto de má fé e de tremenda desonestidade intelectual – e moral.

E, mais decisivamente, o que diz a Lei de Bases do Sistema Educativo?

Dispõe o artigo 7º, alínea n), que «São objectivos do ensino básico: n) Proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral» (itálico acrescentado).

A Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86, de 14 de Outubro), já foi várias vezes alterada, algumas das quais recentemente. Nunca o legislador entendeu que deveria revogar ou alterar aquela norma, que garante a liberdade de consciência na aquisição de «noções de educação cívica e moral».

Como se vê, pois, o manifesto mais não faz do que invocar um preceito da Lei de Bases do Sistema Educativo, que, aliás, cita expressamente. E não se pronuncia em lugar algum – em lugar algum, insisto – sobre o carácter obrigatório ou facultativo da disciplina de Educação para a Cidadania e para o Desenvolvimento. Afirmar que os seus subscritores são adversários dessa disciplina e, pior ainda, adversários da cidadania, é um acto de má fé e de tremenda desonestidade intelectual – e moral.

E nem se afirme, portanto, no terreno das hipóteses ad absurdum (quando o que se discute é este problema em concreto, não casos imaginários ou virtuais), que, por este andar, os pais também poderiam objectar ao ensino do evolucionismo nas aulas de Biologia ou da teoria da relatividade em Física, pois, como o manifesto tem o cuidado de explicitar, ainda que poucos tenham atentado nessa parte, a Lei de Bases apenas salvaguarda a liberdade de consciência na «educação cívica e moral». Mas, já que estamos no domínio das hipóteses virtuais, ainda que não todo improváveis, o que dirão os signatários do documento «Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção» se, por estes dias, um pai objectar ao programa de História de Portugal com o argumento de que ele é racista ou colonialista? Será que todos eles, ou sequer alguns, se irão erguer em defesa do ensino da nossa História?

Regressando ao campo da realidade, o que se conclui é que, sob a aparência de um «contra-manifesto», o documento «Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção», com mais de 5.000 signatários, não contraria verdadeiramente o texto «Em defesa das liberdades de educação».

Para o fazer, teria de dizer, que não diz, que aos pais não deve ser concedido o direito à objecção de consciência à disciplina de Educação para a Cidadania e para o Desenvolvimento. Em lugar algum – repito, em lugar algum – este «segundo manifesto» fala de liberdade ou objecção de consciência.

Quer dizer, nem o manifesto «Em defesa das liberdades de educação» se pronuncia uma só vez sequer sobre o carácter obrigatório ou facultativo da disciplina, nem o manifesto «A cidadania não é uma opção» refere uma só vez – uma só vez, que seja! – a expressão «liberdade de consciência».

Um, defende que essa liberdade deve existir, seja a disciplina facultativa ou, sobretudo, obrigatória (o facto de o manifesto defender a objecção de consciência é, aliás, uma prova de que assume o carácter obrigatório da cadeira, ou não?).

Como se vê, não só os dois manifestos não são contraditórios entre si como podem perfeitamente ser subscritos ambos pela mesma pessoa, sem risco de cair na mínima contradição.

O segundo manifesto, por seu turno, defende que a Educação para a Cidadania deve ser obrigatória, nada dizendo sobre se os pais têm o direito de invocar a liberdade de consciência.

Como se vê, não só os dois manifestos não são contraditórios entre si como podem perfeitamente ser subscritos ambos pela mesma pessoa, sem risco de cair na mínima contradição. Se me tivessem dado a assinar o segundo manifesto, muito possivelmente tê-lo-ia subscrito sem qualquer problema.

Não se percebe, portanto, tanto alarido quando as posições de um campo e do outro, ao menos na aparência, são inteiramente conciliáveis, bastando para isso, é certo, boa-fé e bom senso, duas coisas que geralmente se esfumam – e num ápice! –  logo que se sente o odor a pólvora de uma polémica escusada.

 

8. A menos que… a menos que a intenção dos promotores do primeiro manifesto fosse acabar com o carácter obrigatório da disciplina, ou mesmo eliminá-la do currículo, e que a intenção dos promotores do segundo manifesto fosse negar aos pais o direito à objecção de consciência.

É possível, já tudo é possível, mas não é o que lá está, na letra de um e do outro documento. E nem se diga, como é evidente, que invocar a objecção de consciência é liquidar o carácter obrigatório da cadeira. Justamente o contrário. É precisamente por ser obrigatória, por se assumir esse seu carácter não-facultativo, que se invoca a liberdade de consciência. Esta reitera a obrigatoriedade da norma, exactamente da mesma forma que a objecção de consciência ao serviço militar, por exemplo, não põe em causa a obrigatoriedade deste, antes a confirma.

Uma disciplina tão fulcral para defender o planeta, para combater a homofobia ou a violência de género, não tem um programa, ao contrário do que sucede com as outras cadeiras, que têm programas ou, se quisermos, «documentos curriculares de referência».

9. Vejamos agora o programa da cadeira ou, se quiserem, os «conteúdos programáticos». Não existem. Custa a acreditar, mas é verdade. Uma disciplina tão fulcral para defender o planeta, para combater a homofobia ou a violência de género, não tem um programa, ao contrário do que sucede com as outras cadeiras, que têm programas ou, se quisermos, «documentos curriculares de referência». Bem pode o ministro dizer que «Cidadania e educação é uma disciplina de corpo inteiro». A prática demonstra o contrário.

Não havendo programa, existem «referenciais», documentos orientadores para os vários domínios em que se desdobra a leccionação da Educação para a Cidadania e para o Desenvolvimento. Tudo indica que é no «Referencial de Educação para a Saúde» que se concentram os problemas. Mais uma vez, o sistema de educação mostra-se surpreendente. É que, apesar de ser um documento de várias páginas, quase 100, e de extrema minúcia, o texto revela-se vago justamente onde não o deveria ser, dizendo que caberá à escola, no 3º ciclo do ensino básico e no ensino secundário, «identificar e desconstruir os mitos existentes sobre a sexualidade» (sic). Diz-se exactamente o mesmo, ipsis verbis, em relação ao álcool e ao tabagismo, mas em rigor não sei – e penso que nem o leitor saberá – que «mitos» se irão identificar e, depois, desconstruir, seja sobre sexualidade, seja o fumo de tabaco. Mas é estranho que uma equipa multidisciplinar de dezenas de pessoas (contei 20 técnicos, das direcções-gerais de Saúde e de Educação), responsável pela elaboração do documento, não se tenha apercebido do melindre da questão e dos riscos potenciadores de conflitos.

Numa questão de tanta sensibilidade, para alguns católicos mais radicais (que continuam a não escutar o Papa Francisco, quando este enaltece, e bem, os prazeres da comida e do sexo) mas também para os crentes de outras confissões e até para alguns agnósticos e ateus, havia que ter sido mais cuidadoso e rigoroso no enunciar das matérias a leccionar no domínio da sexualidade, até para que ficasse claro que a Educação para a Cidadania não é, nem pode ser, palco de controvérsias nem território de conflitos.

É que se «o mito é um nada que é tudo», como escreveu Fernando Pessoa, desfazê-lo também pode ser tudo, ou nada. Afirmar, sem mais, que se irão identificar e desconstruir «mitos» sobre a sexualidade é permitir todo e qualquer conteúdo lectivo, o que, não me ferindo a mim nem à minha sensibilidade, sou forçado a admitir que possa ferir a sensibilidade de outros, a qual tenho de respeitar, mesmo discordando frontal e visceralmente dela.

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Fotografia de Jessica Lewis - Pexels

10. Da minha parte, não me importo que me chamem fascista ou reaccionário, inimigo da cidadania ou militante extremista (como não me importei que chamassem «comuna» ou outros mimos quando assinei manifestos e petições ao lado de Francisco Louçã ou Boaventura Sousa Santos).

É possível que as razões e as premissas do manifesto «Em defesa das liberdades de educação» não sejam as melhores, mas são as que mais defendem a posição dos alunos de Famalicão e o seu interesse objectivo em transitar de ano e progredir na sua carreira escolar. Se existirem melhores formas de alcançar esse objectivo, de forma expedita e consensual, digam quais, apresentem-nas.

Será decerto mais «progressista» e mais «moderno» subscrever manifestos em nome da obrigatoriedade da Educação para a Cidadania, mas o que as mais de 5.000 assinaturas do documento «A Cidadania não é uma opção» não explicam é como se decide, então, o destino daquelas duas crianças. Será que esses 5.000 signatários pretendem ou se conformam com a perda de dois anos lectivos? Não sei. E não sei porquê, quanto a este caso concreto, quanto às crianças de Famalicão, o «manifesto dos 5.000» não tem uma palavra que seja.

O manifesto «Em defesa das liberdades de educação» pode ser reaccionário, cavernícola, ultramontano e tudo o que lhe quiserem chamar, mas ainda é o que melhor protege e salvaguarda o interesse daquelas duas crianças em prosseguirem o seu brilhante percurso académico – e cívico.

Por isso, assinei-o.

E voltaria a fazê-lo uma e cem vezes mais.

 

Foto de destaque – Max Fischer – Pexels

O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.