Caro salutis Cardo

O valor da Carne - valor de todo e qualquer corpo-humano-vivo, valor normativo da condição corpórea, de uma natureza que é dom - é hoje de novo mais difícil de comunicar. Como ontem, não faltam cristãos a cair no erro de o obliterar.

O valor da Carne - valor de todo e qualquer corpo-humano-vivo, valor normativo da condição corpórea, de uma natureza que é dom - é hoje de novo mais difícil de comunicar. Como ontem, não faltam cristãos a cair no erro de o obliterar.

Tertuliano seria hoje um mestre do tweeting. Isso quereria dizer S. Vicente de Lérins ao escrever que “praticamente cada palavra sua era um aforisma e, cada argumento, uma vitória” (nota 1). De um famoso tweet de Tertuliano, podemos tirar o mote para pensar o Natal na cultura em que hoje temos de anunciar o nosso Recém-Nascido.

Desde há dois milénios, os dois equinócios do calendário solar estão encarregados de significar a nova e eterna aliança entre Deus e a Humanidade. Um é, precisamente, o Natal e, outro, a Páscoa. A mensagem cristã apresenta esse valor bifacial inequívoco; na cara, a Incarnação da Pessoa; na coroa, a Ressurreição da carne. Porém, a alta cultura a que os Padres da Igreja tiveram de anunciar o Evangelho era profundamente marcada pelo desprezo, senão pelo ódio, da condição corpórea da pessoa humana. A identificação de Deus com o Ser, em sentido absoluto, e de Cristo, como uma divindade misteriosa, i.e., não revelada… até era apetecida. Soara bem aos ouvintes de S. Paulo no Areópago de Atenas. Mas, ao falar-lhes da Carne como parte integrante da perpetuidade da vida humana… Da Carne, afinal digna de Deus… “Está bem, havemos de ouvir-te para outra vez…”, disseram ao voltar-lhe as costas. Para tornar mais “sensato” este evangelho, nunca faltou (nem falta) quem o adultere. E a pedra-de-toque foi (e é) sempre a relevância da condição corpórea na identidade e na “salvação” do Homem. Pouco mais de um século volvido, cabe a Tertuliano alertar os fiéis para a intersecção entre esses pretensos cristãos e os idólatras: “Acaso se ouve, da boca do herético ou do gentio – não saberia dizer-se quem por primeiro e quem com maior vigor – por toda a parte e sem cessar, outra coisa que não o desprezo da carne”? (nota 2) Mas, precisamente, remata ele a uns e a outros: “A carne é o eixo da salvação”. (caro salutis cardo). É na condição corpórea (caro) criada e assumida pelo próprio Deus que o ser humano alcança a plenitude de criatura por Ele recuperada para o seu destino originário (salus).

O etiquetamento de uma atitude cristã negativa perante a corporeidade é na realidade devedor de uma simplista e ultrapassada contraposição romântica entre cristianismo e cultura clássica: de um lado o culto do corpo, espelhado no vigor da anatomia das artes plásticas, de outro o castigo do corpo, na ascese monástica e na corrupção das belas artes.

O etiquetamento de uma atitude cristã negativa perante a corporeidade é na realidade devedor de uma simplista e ultrapassada contraposição romântica entre cristianismo e cultura clássica: de um lado o culto do corpo, espelhado no vigor da anatomia das artes plásticas, de outro o castigo do corpo, na ascese monástica e na corrupção das belas artes. É compreensível que o fascínio da estatuária clássica motivasse tal contraste mas a estética plástica da Grécia antiga deve ser contrabalançada com as letras e lida em toda a complexidade do seu papel eminentemente religioso. Contemplada em profundidade no tom da complexidade da cultura que a anima, a anatomia da estátua clássica não representa o corpo humano real, que é concreto, mas sim uma sua abstracção capaz de traduzir, na perfeição da pura forma, os deuses imortais. Precisamente na exaltação dessa perfeição, ela mal esconde o desprezo da carne real, nos antípodas da vitalidade dos seus deuses e heróis, das Afrodites e dos Hércules, como também dos novos ídolos que ornarão as colunatas dos Templos-Estádio do século XX. É essa perfeição, o objecto significado na cultura clássica; não o corpo concreto, no seu devir e na sua vulnerabilidade; não o corpo débil, que fica de fora do divino e que há que expulsar do âmbito do humano. Não há pois, nessa arte, lugar para o corpo que ainda não conta nem para o corpo que já não conta, nem muito menos para o corpo que nunca contou. O corpo humano real, corpo no tempo, corpo mortal, corpo criança, corpo doente, corpo velho, corpo crucificado… só interessará o artista plástico quando ele quiser representar a história de outra divindade e de outra humanidade, uma humanidade redimida por um Deus feito carne crucificada e carne regenerada numa ressurreição. Para quem contemplar a Incarnação do Verbo, Palavra criadora e Pessoa da Trindade Divina, o Corpo humano torna-se Corpo de Cristo e o Corpo de Cristo é Corpo de Deus. Nas artes plásticas inspiradas por esta visão do homem, a representação do destino a que todo o humano justamente aspira, que é a imortalidade, não passa pela abstração do tempo e do espaço, mas sim pela contemplação do Corpo concreto, que é Tempo; o mesmo é dizer, pela narração da vida corporal. De modo que pontuarão essa representação novos géneros iconográficos que são outros tantos instantâneos que todos levamos dentro: Esponsais, Conceição, Senhora do Ó (nota 3), Natividade, Senhora do Leite, Ceia, Paixão e Morte, Dormição, Sepultura, e Ressurreição/Assunção. Na representação da Srª do Ó e da Visitação, a pintura medieval cultivará aliás, sem precedentes, uma realística iconografia fetal, sem esquecer a representação da placenta.

De facto, tal como nos alvores da nossa era, a auto-percepção do ser humano tem vindo a ser cada vez mais marcada por correntes de pensamento que tendem a excluir a corporeidade real, da dignidade da Pessoa.

Hoje, porém, não parece, de novo, muito diferente da antiga, a contemplação da corporeidade e da vida corporal na cultura contemporânea. De facto, tal como nos alvores da nossa era, a auto-percepção do ser humano tem vindo a ser cada vez mais marcada por correntes de pensamento que tendem a excluir a corporeidade real, da dignidade da Pessoa. Extremadas as consequências da valorização moderna do sujeito racional e da sua transcendência ao mundo, o corpo humano – aspecto em que esse sujeito é natureza e é imanente ao mundo – acaba hoje, como então, percebido instrumentalmente, quer dizer, como algo que acidentalmente e, por vezes a seu pesar, se tem e utiliza, distinto e separável do alguém que se é. Esta maneira de o Eu-sujeito se reportar ao “seu” corpo-objecto é, aliás, a raiz – pese embora toda máscara retórica ambientalista – do persistente dualismo entre o Homem pós-moderno e a Natureza: não é de esperar que alguém incapaz de reconhecer o seu próprio corpo como fonte normativa – um corpo que experimenta directamente – seja capaz de o fazer com o resto da natureza – que experimenta só através dele.

A Carne precede a consciência. Mas à nossa volta tudo concorre, como ontem, para a desvalorizar. O condicionamento subjectivo da sua dignidade a uma qualidade de vida a combinar nos termos de uma lei; a irrelevância dos seus cromossomas na identidade da pessoa; como aliás, todas as visões trans (género ou humanismo, é indiferente, tudo está no prefixo)… bebem na mesma raiz que a diatribe antiga contra a Carne. Tudo esconde a incapacidade (ou pecado) original de nos aceitarmos como dom de outrem. Mas isso é que é, precisamente, ser Pessoa. E a negação desse dom é o protótipo de todas as desgraças. Hoje não faltaria a Tertuliano com que tuitar. O valor da Carne – valor de todo e qualquer corpo-humano-vivo, valor normativo da condição corpórea, valor normativo de uma natureza que é dom – é hoje de novo mais difícil de comunicar ao nosso tempo. Como ontem, não faltam cristãos a cair no erro antigo de o obliterar. Mas, como então, a Carne é o eixo de uma definição real da humanidade e da sua incondicional dignidade. Caro Humanitatis Cardo, bem poderia tuitar o nosso Tertuliano no Natal de 2022.

 

  1.  …cujus quot paene verba, tot sententiae sunt; quo sensus, tot victoriae (Commonitorium, 24)
  2. An aliud prius vel magis audias ab haeretico quam ab ethnico? Et non protinus, et non ubique convicium carnis…? (de Carnis Ressurrectione, 4
  3.  Veja-se por exemplo a Visitação hispano-flamenga do Museu Lázaro Galdiano de Madrid, em http://database.flg.es/ficha.asp?ID=2696.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.