Bento XVI e o exemplo de Gedeão

A história bíblica de Gedeão ilustra o perigo dos “prolongamentos” indesejados. Não estará o Papa (emérito) Bento XVI a ceder perigosamente a uma tal dinâmica? A propósito do seu mais recente livro, em coautoria com o Cardeal Robert Sarah.

A história bíblica de Gedeão ilustra o perigo dos “prolongamentos” indesejados. Não estará o Papa (emérito) Bento XVI a ceder perigosamente a uma tal dinâmica? A propósito do seu mais recente livro, em coautoria com o Cardeal Robert Sarah.

A Bíblia é um poço de sabedoria e há poucas situações humanas que não tenham alguma forma de paralelo neste livro dos livros. A notícia da publicação, na próxima quarta-feira, dia 15 de janeiro, de um livro assinado pelo Papa (emérito) Bento XVI, juntamente com o Cardeal Robert Sarah, sobre o celibato dos padres na Igreja, lembrou-me quase imediatamente da história de Gedeão, relatada nos capítulos seis a oito do livro dos Juízes.

Para os que não se recordam ou nunca ouviram falar desta personagem, Gedeão é um daqueles líderes carismáticos (chamados “juízes”) que Deus inspira no seio do Seu povo para o salvar dos seus inimigos e o trazer de volta ao “bom caminho” da obediência a Deus. Gedeão é um juiz dos mais exemplares e destaca-se por dois aspetos. Primeiro, pelo seu zelo por Deus e contra Baal, o deus dos cananeus: com perigo da própria vida, não hesita em derrubar um altar de Baal no seu afã de manter o povo “puro” de toda a idolatria (Juízes 6,25-32). Segundo, pela sua recusa em se perpetuar no poder. Convidado pelos seus concidadãos a passar de juiz a rei, Gedeão recusa para ele e para os seus filhos esta dignidade, proclamando que só Deus é rei (Juízes 8,22-23). Apesar do invejável currículo, Gedeão acaba, contudo, por “tropeçar” já depois do “apito final”, se assim se pode dizer. Cumprida a missão, Gedeão não se remete ao silêncio como outros juízes, mas decide fazer aquilo que Deus nunca lhe pediu (construir uma espécie de santuário local) e, conclui o texto bíblico, “isto veio a ser a ruína de Gedeão e da sua casa” (Juízes 8,27).

Poucos, nem mesmo os críticos acérrimos do Papa emérito, duvidarão do zelo de Bento XVI pela verdade e por Cristo como Verdade.

Poucos, nem mesmo os críticos acérrimos do Papa emérito, duvidarão do zelo de Bento XVI pela verdade e por Cristo como Verdade. Seja no combate ao relativismo cultural e aos seus tentáculos no mundo e na Igreja, seja na difícil campanha contra os abusos sexuais pelas mãos do clero, Joseph Ratzinger/Bento XVI sempre se destacou pelo seu profundo desejo de expor a força libertadora da verdade evangélica. Mesmo não se concordando com ele, e admitindo que nem sempre acertou, poucos questionarão a sua boa-fé e integridade.

Igualmente exemplar e, sem dúvida, surpreendente foi a sua decisão, em Fevereiro de 2013, de renunciar à cátedra de Pedro. Consciente da debilidade da sua saúde e das necessidades da Igreja, o Papa Bento XVI soube colocar o bem do corpo eclesial à frente dessa tão humana tendência a acreditar que “sim, sim, eu consigo (e só eu é que consigo)!”. O gesto belo de não querer prolongar o seu pontificado além do que lhe pareceu, em consciência, a medida que Deus lhe tinha pedido foi o sinal de uma liberdade interior imensa. Num mundo onde não há lugar para ser menos do que se foi, onde “sair do jogo” é “perder”, Bento XVI mostrou que só Deus, só Ele, não pode nunca “reformar-se”, só Ele é insubstituível.

Para bem da Igreja e de Joseph Ratzinger/Bento XVI teria sido uma graça se o paralelo com a figura de Gedeão tivesse terminado neste ponto. Infelizmente, contudo, nos últimos anos, o Papa emérito tem decidido (e/ou outros com ele e por ele!) quebrar o “voto” que ele mesmo tinha feito de se remeter ao silêncio. Ora, é este facto, independentemente da qualidade dos textos ou da sua pertinência, que é profundamente perturbador. No caso do artigo sobre as relações do cristianismo com o judaísmo (ver aqui) e da carta sobre a crise dos abusos sexuais (ver aqui), ainda se podia alegar que o objetivo de Bento XVI não era, pelo menos na origem, que estes textos recebessem ampla divulgação. Ao aceitar publicar um livro com o Cardeal R. Sarah, o Papa Bento XVI parece estar a ceder à tentação do “voltar aos negócios”.

Estes anos depois da sua renúncia podiam ter sido para o Papa emérito a ocasião de continuar a viver, no silêncio, a verdade da sua adesão a Cristo. Uma adesão que passa, seguramente, pela confiança que Deus é o Senhor da História e da Igreja, que Ele conduz com mão forte, apesar das muitas debilidades dos seus membros.

Declara, na introdução ao livro, que ele e o Cardeal Sarah escrevem como dois “bispos” que, “em filial obediência ao Papa Francisco”, “buscam a verdade”, “num espírito de amor pela unidade da Igreja”. É preciso, contudo, fazer um enorme esforço hermenêutico para não ver nesta tomada de posição pública do Papa emérito uma (imprudente!) ingerência no processo de discernimento eclesial em curso. Como se sabe, está para sair muito em breve a Exortação Apostólica que recolherá os frutos do sínodo da Amazónia, que teve lugar no passado mês de outubro no Vaticano. Nessa reunião, os presentes aprovaram, por uma maioria de dois terços, a recomendação de que se abra a possibilidade de ordenar como padres homens casados. A decisão final está nas mãos do Papa Francisco, mas tudo parece apontar para que isso venha a ser possível. À luz disto, que propósito pode ter este pronunciamento post eventum do Papa (emérito) Bento XVI? Pretende influenciar publicamente o Papa Francisco? Porque não o fez apenas e só “em privado”? Ou não estará consciente que, se o tal documento papal aprovar esta alteração à disciplina clerical no caso da Amazónia, o livro que agora publica se tornará uma espécie de “Bíblia” para todos aqueles que se oporão à decisão? Estará o Papa (emérito) Bento XVI consciente das imprevisíveis consequências de um tal ato? E o Cardeal Sarah?

Sem querer ser injusto, não posso deixar de sentir que a história de Gedeão se está a repetir, aqui e agora, com Joseph Ratzinger/Bento XVI. Estes anos depois da sua renúncia podiam ter sido para o Papa emérito a ocasião de continuar a viver, no silêncio, a verdade da sua adesão a Cristo. Uma adesão que passa, seguramente, pela confiança que Deus é o Senhor da História e da Igreja, que Ele conduz com mão forte, apesar das muitas debilidades dos seus membros. Ao aceitar sair do prometido recolhimento para “levantar a voz” nas “praças” do mundo e da Igreja, Bento XVI está a entrar no perigoso terreno dos que querem prolongar indevidamente a sua missão, escudados pela autoridade do bem que realizaram. No caso bíblico de Gedeão, isso provocou a sua ruína e a da sua casa. Oxalá o Papa emérito não se torne essa ocasião de queda para si próprio e para tantos que olham com admiração para a sua pessoa e obra.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.