Atletas do Corpo, atletas do Espírito

Na reportagem sobre as Monjas de Belém transmitida pela RTP encontramos um pai legitimamente preocupado com a sua filha expondo a sua questão a dois jornalistas desejosos de fazer de um problema de família um caso de polícia.

Na reportagem sobre as Monjas de Belém transmitida pela RTP encontramos um pai legitimamente preocupado com a sua filha expondo a sua questão a dois jornalistas desejosos de fazer de um problema de família um caso de polícia.

Todos sabemos que o atletismo de alta competição – ou alto rendimento – tem as suas exigências. Cristiano Ronaldo é frequentemente elogiado pela sua dedicação ao treino, apesar dos êxitos já conseguidos. Como tantos outros atletas, bem cedo deixou a família, seguindo o sonho de jogar sempre melhor. E que dizer das ginastas que a todos encantam, ganhando medalhas nos Jogos Olímpicos? Quantas privações para aí chegar! Horários escrupulosamente cumpridos, fins de tarde e de semana ocupados, alimentação estrita e regrada, estágios e treinadores exigentes que controlam a inevitável “tentação” de diversões próprias da idade… E estamos a falar de menores, que nalguns casos realizam sonhos dos pais. Se pensarmos ainda em quem se dedica seriamente ao bailado ou à música, encontraremos semelhantes sacrifícios e – muito provavelmente – as inevitáveis crises existenciais a eles associados.

 

Vem esta reflexão a propósito do programa da “Sexta às 9” (RTP 1) do passado dia 24 de Janeiro, onde um pai – legitimamente preocupado com a sua filha, entrada no mosteiro das Monjas de Belém – expõe a sua questão a dois jornalistas desejosos de fazer de um problema de família um caso de polícia (filmando até correspondência pessoal!). Todas as famílias têm os seus problemas e a essa “lei” não escapa a família monástica de Belém nem a família de José Valente. É a conclusão a que cheguei ao visionar cuidadosamente a peça jornalística. Outra conclusão que salta à vista é o afã dos jornalistas em “fazer sangue”: da música dramática, à ridícula encenação teatral… Mais grave, porém, é a acusação de ilegalidades, a denúncia de “lavagem cerebral e suspeitas de recrutamento na Universidade Católica”, estando o “Movimento Comunhão e Libertação fortemente associado”, as “suspeitas graves de maus tratos psicológicos”… Na verdade, coisas destas – e até piores – podem acontecer, quando quem orienta espiritualmente projecta noutros a sua mediocridade, perversão ou obsessões religiosas. Mas não me parece mesmo que seja esse o caso das Monjas de Belém.

Sobra-nos, porém a questão mais importante: faz sentido existir na Igreja de hoje a vida em clausura ou num ermitério? Creio sinceramente que sim, pois a vida contemplativa cristã é um património de oração e sabedoria em favor de todos nós.

Disso estou convencido depois de ver, no referido programa, o testemunho de quem saiu sem problemas do Mosteiro (e encontrou no Matrimónio a sua vocação) bem como da mãe de outras duas Monjas. Disso estou convencido – sobretudo – depois de ter falado com as Irmãs de Belém, com o Senhor Arcebispo de Évora e com José Valente. Assim, fico a pensar que o “Sexta às 9” teria sido mais esclarecedor se, em vez de contratar “fake freiras”, tivesse pedido emprestado à TVI um programa de 2016, onde a vida das Monjas de Belém é apresentada de forma transparente. Outra hipótese seria ter dado mais destaque à entrevista gravada no mosteiro com Irmãs Rayati e Anatália, e com o Arcebispo Senra Coelho. O comunicado da Arquidiocese de Évora diz-nos que esta conversa durou uma hora e meia. Mas dela apenas foram mostradas pequenas sequências, a calhar bem num guião do tipo “caso de polícia”… E nem assim a peça jornalística consegue ofuscar a abertura, franqueza e boa fé dos entrevistados. Se houve problemas no passado, ou há no presente, a hierarquia Católica está interessada em dar as orientações necessárias (através da Santa Sé) e em acompanhar localmente (através do Bispo diocesano). Foi isso que aconteceu em relação a histórias traumáticas do passado, como fica patente no programa, não querendo isto dizer que não haja o dever de fazer melhor. Por fim, o que acabo de dizer nada retira à importância de investigações jornalísticas, ou outras, que ajudem a trazer à luz realidades iniquamente escondidas. Contudo, “pôr o dedo na ferida” de forma profética é diferente de coçar uma cicatriz, real ou imaginada, para ver se sangra…

 

Sobra-nos, porém a questão mais importante: faz sentido existir na Igreja de hoje a vida em clausura ou num ermitério? Creio sinceramente que sim, pois a vida contemplativa cristã é um património de oração e sabedoria em favor de todos nós. É o testemunho de um amor absoluto que, ao longo de quase dois mil anos, tem brindado a humanidade com uma multidão de pessoas notáveis pela sua fidelidade à oração, lugar onde o humano e o divino se encontram. Há exemplos luminosos mais antigos (como S. Teresa de Ávila e S. João da Cruz) e mais recentes (Thomas Merton ou Edith Stein, entre tantos outros). É bom mencionar que as normas da Igreja para a vida consagrada obrigam a uma verificação da “devida maturidade psicológica e afectiva” dos candidatos e também que os formadores sejam “muito bem escolhidos e cuidadosamente preparados”, algo que pode sempre melhorar. Podemos chamar à vida contemplativa – que em Portugal tem tido vocações sobretudo femininas – as “atletas do Espírito”. Na Carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo esclarece a metáfora. “Não sabeis que os que correm no estádio correm todos, mas só um ganha o prémio? Correi, pois, assim, para o alcançardes. Os atletas impõem a si mesmos toda a espécie de privações: eles, para ganhar uma coroa corruptível; nós, porém, para ganhar uma coroa incorruptível” (1 Cor. 9, 24-25). Deveríamos acabar com a alta competição, pelos sacrifícios que envolve? Pergunta insensata, que esquece haver quem se sinta verdadeiramente chamado a isso, e que essa é uma vocação ao serviço de todos. Atletas e artistas de alto rendimento, no corpo ou no Espírito, “maiores e vacinados”, bem acompanhados, têm necessariamente um exigente percurso próprio. São essenciais não apenas porque os admiramos, mas sobretudo porque nos ensinam e animam a jogar, dançar, tocar… e também a rezar e a viver melhor!

Fotografia: © Família Monástica de Belém (daqui: https://pt.bethleem.org/monasteres/portugal.php)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.