A fome obrigou a luandense Filomena a enviar Solange para casa da tia, em Oeiras. A partir daí, a relação de mãe e filha far-se-á, sobretudo, ao telefone onde “conversavam como se o mundo fosse acabar dali a momentos e estarem vivas dependesse de continuarem a falar”, mas “nenhuma conversa impede o apocalipse”. (p.40).
As Telefones, um dos dois livros editados este ano por Djaimilia Pereira de Almeida, literata e autora premiada em Portugal, Angola e Brasil, é uma sequência de fragmentos dessa relação à distância. Uma relação em que o desejo de ambas se revela incapaz de evitar que se tornem estrangeiras uma à outra: “Quando se reviam, Solange estranhava Filomena. (…) Aos poucos, (…), ao abrir da porta, o seu corpo entrava em pânico perante o corpo de Filomena, de braços abertos para a receber (…)”. (p. 78)
A mãe sentia o mesmo desassossego, olhando para a filha, sentia-se “como alguém a quem mostram os cacos de um vaso que não chegou a conhecer inteiro”. (p.79). Contudo, o livro não é a história de uma separação, mas do duplo ocultamento do afastamento entre mãe e filha. Prestando-se ao jogo da ilusão – com medo de se verem forçadas a assumir serem estranhas uma à outra – Filomena e Solange vão alimentando um “simulacro” que as protege desse sofrimento, mas as distancia definitivamente: “A fantasia colara-se-lhes ao corpo sem que soubessem dizer o que acontecera, o que era inventado, o que sentiam, o que era postiço” (p.41).
Esta história, duas pessoas que se afastam por medo de se afastarem, é mais do que a história particular desta mãe e desta filha. O maior mérito do livro é, aliás, não contar só a história delas, mas, através destes telefonemas, contar a história dum distanciamento na proximidade que é uma narrativa universal que acontece também noutras relações – amizades, namoros e mesmo casamentos – em que não se resistiu ao simulacro.
As telefones
Almeida, Djaimilia Pereira de
88 páginas
Relógio de Água, 2020
17€
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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