1. Acordou inquieto aquele “primeiro dia da semana”.
As mulheres, ritualmente impossibilitadas de preparar adequadamente o corpo de Jesus para a sepultura, mal dormiram. De olhos nas fendas das portas e janelas, logo que espreitou a primeira luz, correram para o túmulo.
Ofegantes, a surpresa ainda mais lhes apertou o coração: estava rolada a grande pedra e, apesar dos sinais arrumados que contradiriam o vandalismo, o espanto apressado não lhes deixou ver mais que um vazio triste. Perplexas, pelo mesmo caminho voltaram a correr para comunicarem, chorando, a incredulidade de um roubo.
Pedro e João, sobressaltados pela notícia, saíram do seu amanhecer nublado e correram também, de certeza cheios de perguntas: Quem? Como? Porquê?
Entretanto, àquela hora já os soldados haviam corrido para contarem o medo, arriscarem eventual castigo e receberem ordens. Por sinal, nada lúcidas, de umas autoridades que dormiam a vitória, desde que viram fechada a caverna de José de Arimateia. Ei-las, por isso, estremunhadas e obrigadas a correr para tecerem uma explicação…
Sim, naquela inquieta manhã do primeiro dia da semana parece que todos corriam — acossados pelo espanto, pelo medo ou por um profundo desânimo que começava a empurrá-los para longe dos sítios onde foram felizes mas onde já não encontravam sentido.
Ninguém, naquela pressa e naquela opressão, juntou memória de palavras ouvidas ou da Escritura para perceber que estava a acontecer o que tinha de acontecer. Apenas João, num olhar distinto, abriu olhos e coração para ver o invisível e o inimaginável: a entrada de Jesus «numa dimensão superior», alcançando em Deus «a condição perfeita e definitiva da existência». Tudo isto reclamando uma reorientação de perspetivas para assumir o espanto, acolher a paz e abraçar a missão.
Joseph Ratzinger explica esta reorientação, escrevendo que os discípulos tiveram de ser conquistados pela realidade que derrotou a hesitação inicial e forçou a confissão: «É realmente Ele. Ele vive». Diferente de outrora, mas a mostrar-se e a deixar-se ver.
Aliás, apetece-me escrever que, naquela inquieta manhã, até Jesus correu a manifestar-se — no jardim, na casa fechada pelo medo, nos caminhos tardios e na ceia de Emaús.
Mas assim fez, de um grupo atarantado pelo medo, testemunhas afirmativas e valentes!…No primeiro sermão de que há memória, Pedro não vai desviar-se daqui, do essencial: «Esse Jesus, Deus o ressuscitou e, disso, nós somos testemunhas» (Act. 2, 32).
2. Aquela inquieta manhã é o berço de um tempo novo.
Como escreveu alguém, «é o Acontecimento que cria a História» e o «Mistério qualificante do Cristianismo»; é «o cumprimento superabundante de todas as profecias da salvação». Estão confirmados os atos e as palavras de Jesus, selada a Aliança Nova, demonstrada a fidelidade de Deus.
Cito o “Catecismo para adultos”, da Conferência Episcopal Italiana: «A ressurreição de Jesus manifesta-se na história, mas em si mesma transcende a história». D. José Ornelas, bispo de Setúbal, repetiu-o, recentemente, no ciclo de conferências “Narrativas pascais”, da Universidade Católica Portuguesa, sublinhando que a ressurreição abre «dimensões que não cabem na história»: «Cria novas esperanças, não simplesmente como remédio para a minha finitude, mas para um sentido da nobreza, para aquilo que eu, desde agora, sou, e se projeta para além daquilo que posso constatar.
Mas como gostava que fossem inquietas as nossas manhãs semanais de Páscoa!…Não já dramaticamente inquietas; mas alegremente inquietas. De uma inquietação tal que torne insuportável o silêncio ou o gozo privado!…Para tanto, importa que tomemos consciência de que vive em nós o Espírito do Ressuscitado, assumamos o carácter pascal da nossa vida cristã, sendo homens novos permanentemente à procura das «coisas do alto»
3. Perdoem-me os tranquilos… Mas como gostava que fossem inquietas as nossas manhãs semanais de Páscoa!…
Não já dramaticamente inquietas; mas alegremente inquietas. De uma inquietação tal que torne insuportável o silêncio ou o gozo privado!…
Para tanto, importa que tomemos consciência de que vive em nós o Espírito do Ressuscitado, assumamos o carácter pascal da nossa vida cristã, sendo homens novos permanentemente à procura das «coisas do alto», como exorta o Apóstolo Paulo (Cl 3, 1ss).
Bom seria que, neste Tempo Pascal, voltássemos à leitura da Exortação Apostólica “Evangeli iGaudium”, colhendo aí um itinerário alegre de testemunho e missão. Porque somos chamados a ser discípulos missionários, portadores de alegria e esperança — de olhos acesos para os «rebentos da ressurreição» que aparecem um pouco por todo o lado (EG. 276).
4. «A paz esteja convosco» – eis a saudação de Jesus ressuscitado. Eis a saudação que manda usar aos que, em Seu nome, entrem onde quer que seja, fazendo-os porta-vozes de uma paz inquieta e positivamente inquietante.
A Sua paz não é a que o nosso mundo quer: a paz do sossego, do silêncio; a paz que pedimos quando exigimos que nos deixem em paz…
A Sua paz é compromisso, preocupação saudável. É laboriosa, porque tem de construir-se. Não se compra feita ou às peças para montar no chão da cozinha ou na alcatifa da sala, num jogo divertido ou puzzle de horas livres…
A Sua paz é fruto da justiça e da segurança para sempre!…
Os que trabalham na sua construção serão chamados filhos de Deus.
Ilustração de Ana Miranda.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.