Ano novo “a ferro e fogo”

2023 será um ano a “ferro e fogo” para a Igreja. Certamente um tempo de purificação e de crise, mas, simultaneamente, de gestação no Espírito de novas oportunidades mais sólidas e consistentes.

2023 será um ano a “ferro e fogo” para a Igreja. Certamente um tempo de purificação e de crise, mas, simultaneamente, de gestação no Espírito de novas oportunidades mais sólidas e consistentes.

“A ferro e fogo” parece-me ser uma expressão metafórica que nos ajuda a compreender o modo como a Igreja Católica será chamada a viver durante o ano de 2023. O ferro aponta para resistência, dureza, solidez, etc. O fogo, de entre os seus múltiplos sentidos, pode significar destruição, mas também purificação. Na sagrada escritura, o fogo é um dos sinais da presença renovadora do Espírito Santo que permite “ver novas todas as coisas” (cf. At 2, 1-4). Ferro e fogo quando fundidos forjam o universo do moldável, da criatividade e da reconfiguração.

É à luz desta simbologia que gostaria de abordar aqueles que a meu ver constituem os dois maiores desafios para a Igreja que caminha em Portugal: a gestão da crise dos abusos sexuais a propósito da publicação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, prevista para fevereiro de 2023, e a projeção da Jornada Mundial da Juventude. Estes acontecimentos constituem como que pesos quase opostos de uma mesma balança, o primeiro destacando a fraqueza da instituição, o segundo exaltando-a. O que requer é um olhar espiritualmente ajustado à realidade que ajude a Igreja a examinar-se a si própria, descobrindo as oportunidades que espreitam.

No que diz respeito à crise dos abusos sexuais, sem querer antecipar os resultados do relatório, existem alguns aspetos que convém considerar. O primeiro tem a ver com a justificação da forma de atuação da Igreja. Mesmo que atualmente existam normas aplicáveis e cumpridas, a Igreja terá muita dificuldade em justificar o caráter “sistémico” dos abusos sexuais contra menores, particularmente no que se refere à sua inoperância em tomar medidas para lidar com estes casos de forma adequada, de os prevenir e impedir. Um segundo aspeto refere-se diretamente ao modo de gerir a crise. Se, ao nível mediático, a Igreja não conseguir refutar as narrativas do “encobrimento” e da “passividade”, que nem o “silêncio” ou o pedido formal de perdão conseguem fazer esquecer, é necessária uma política de governação que aposte na prevenção e na formação.

Ao nível local, as paróquias, colégios e outras instituições devem fazer por merecer a confiança que as pessoas nelas depositam, promovendo a implementação de sistemas de proteção e cuidado que funcionem em harmonia com as instituições e grupos já existentes. Serve também para nós a recomendação da Convenção dos Direitos da Criança segundo a qual se devem adotar medidas “apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, ofensas ou abusos, negligência ou tratamento displicente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual” (Art. 19, nº 1). Deve ser claro para todos que as medidas impostas aos adultos não servem para fomentar o medo ou a desconfiança, mas para salvaguardar um conjunto de procedimentos que possam fazer dos ambientes eclesiais lugares mais seguros e onde se sabe como agir em caso de alguma sinalização.

Se é certo que um acontecimento não tem poder, por si só, de transformar a realidade, ele pode ser um elemento catalisador de um novo modo de ser e de estar. Por isso, torna-se necessário pensar no pós-JMJ e na atitude pastoral da Igreja nessa situação.

Finalmente, se ao nível mediático, a Igreja andará a “ferro e fogo”, esta crise pode constituir uma oportunidade para que o fogo purifique e dê a consistência do ferro a um novo pacto da Igreja com a sociedade.

A Jornada Mundial da Juventude chega neste ano de 2023 à sua fase de implementação e execução. Para além dos aspetos sociais, económicos, financeiros, ecológicos e políticos que podem fazer a Igreja andar a “ferro e fogo” quanto a este acontecimento, gostaria de salientar dois elementos que me parecem centrais para que o “fogo” deste acontecimento não seja fugaz, mas se torne o mais duradouro possível. Estes elementos estão diretamente relacionados com a gestão de espectativas referentes não apenas ao evento em si mesmo, mas às que lhe sucedem. Se é certo que um acontecimento não tem poder, por si só, de transformar a realidade, ele pode ser um elemento catalisador de um novo modo de ser e de estar. Por isso, torna-se necessário pensar no pós-JMJ e na atitude pastoral da Igreja nessa situação. Um dos elementos que pode contribuir para a vivência desse tempo será apostar em formas pastorais de tonalidade querigmática assentes num primeiro anúncio de Cristo realizado de modo “informal” e “secular”. O envolvimento da sociedade civil na preparação da JMJ constitui uma porta que se abre de diálogo da Igreja com a sociedade que deve e merece ser aprofundada.

Um segundo elemento refere-se à capacidade imaginativa da Igreja em criar pedagogias de ordem mistagógica que ajudem a aprofundar e a celebrar o vivido. Dinamizar propostas que valorizem a memória e a narrativa dos acontecimentos pode dar origem a procedimentos mais em linha com aquele que se considera o evento modelar de evangelização da juventude.

2023 será um ano a “ferro e fogo” para a Igreja. Certamente um tempo de purificação e de crise, mas, simultaneamente, de gestação no Espírito de novas oportunidades mais sólidas e consistentes.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.