Amo as minhas filhas, mas esse amor é uma luta permanente, é um ringue de boxe onde entro lado a lado com a minha fé. É o Senhor que fica no meu canto, esperando o ding-dong para me aconselhar, para me coser o sobrolho, para me endireitar o nariz desfeito. É assim que deve ser. O amor é o oposto da auto-complacência que vê no verbo “amar” uma substância fofinha e afectuosa cujo princípio activo até pode ser isolado como um químico. Contra esta visão bonacheirona muito em voga, há que recordar que o amor não é um mero afecto ou sensação química. E também não é um mero ponto de chegada. De resto, a perdição fica mais próxima quando pensamos que já chegámos à meta, quando pensamos que “já está”, quando assumimos já nos salvámos.
A história da nossa salvação é uma história sem fim. O amor é essa forja sempre acesa e quente onde o nosso feitio pessoal é martelado, dobrado, moldado. O amor não é minério em bruto, é ferro forjado. O nosso feitio ou natureza contemplam as paixões, mas não a continuidade do amor, que é mais uma decisão do que uma emoção – uma decisão que tomamos contra nós próprios. Sim, o amor, se for franco, é algo que lançamos contra nós próprios. Para amar as minhas filhas, eu tive de abrir espaço para elas dentro de mim e isso implicou e implica uma constante diminuição do meu ego, que, tenho de confessar, dá várias voltas ao quarteirão. Amar implica segurar as outras pessoas. E, quando estamos a segurar os outros que se erguem sobre os nossos ombros, nós temos de ficar quedos, como se estivéssemos aparafusados ao chão. Os pilares de ferro são assim: não se mexem, não buscam os sonhos e aspirações, ficam ali, suportando os outros. Amar alguém é construir este pilar de forma racional; é uma escolha moral que não depende dos humores intempestivos dos sentimentos. Os afectos vão e vêm como o vento, o pilar fica. E este é o pilar de uma casa que, convém recordá-lo, tem porta estreita. Quando o Senhor nos diz que a porta do Reino é estreita, é disto que está a falar: há que minguar.
Sou pai há seis anos e posso dizer que só agora é que consigo encontrar paz na paternidade, sobretudo no equilíbrio entre a minha ambição enquanto escritor e o meu dever enquanto pai e encarregado de educação. Para usar um eufemismo, as miúdas consomem muito tempo. No cruzamento entre o trabalho invisível (as miúdas) e o trabalho visível (Expresso, Renascença), o tempo necessário para escrever livros é o grande sacrificado. Às vezes, naquelas semanas de Dezembro e Agosto em que não consigo escrever uma linha, fico a pensar que a publicação do meu “Alentejo Prometido” ainda é um sonho inverosímil. Como é que tive tempo para o pensar, sentir e escrever? A tensão, muito cristã, é evidente: é o amor pela minha mulher e pelas minhas filhas que origina esta permanente frustração pessoal, que muitas vezes é um amigo imaginário cá de casa, uma sombra que paira sobre nós. Mas a presença deste espectro é cada vez mais rara.
Foi difícil encontrar o equilíbrio entre as duas pulsões (ser pai/construir uma família vs. escrever/construir uma obra), mas esse equilíbrio chegou. Cinco minutos antes das cinco da tarde, sei que tenho de começar a desligar o computador, sei que tenho de deixar para trás o papel de escritor, sei que tenho de ir buscá-las à escola e iniciar a longa odisseia de final do dia. Hoje estou com elas sem pensar no que podia estar a ler ou a escrever. Hoje sinto aconchego nas tarefas (dar banhos, vestir, brincar, ensinar, dar jantares, etc., etc.) que antes só me deixavam um lastro de tempo perdido. Já não sinto aquela tensão que me sufocava, estar e não estar, estar em corpo mas não estar em mente, estar com a mão esquerda a fazer um lego e estar com a mão direita a teclar num teclado imaginário. Este processo de reeducação moral fez de mim um homem melhor. Cresci, amadureci. Para citar a minha mãe, “agora és um homem, há uns anos eras um jovem”. Para citar o meu pai, “fizeste-te homenzinho”. Para citar Jack Nicholson que olha nos olhos de Helen Hunt”, “quis ser um homem melhor”. Cuidar das miúdas desta forma não é um prazer ou uma realização. É algo superior, é um dever que esmaga a minha ambição com o seu peso primevo. Sinto que estou a cumprir um dever que vem do princípio dos tempos. Ao minguar encontrei paz.
Em todo este processo, tenho pensado no meu pai. Aliás, tenho invejado o meu pai, um homem de onde a bondade flui sem aparente sacrifício. Tenho amigos que vivem marcados por um pai ausente, por um pai violento, por um pai frio, por um pai alcoólico. Eu sempre vivi marcado por um pai presente e bondoso; foi o seu sacrifício que permitiu o meu sonho. Ao contrário de mim, ele nunca teve espaço ou tempo para sonhar numa profissão adequada ao seu talento nato (o desenho). Começou a trabalhar aos sete, foi operário, foi empresário e agora, aos sessenta e três e já reformado, reinventa-se numa nova profissão. Este sentido de sacrifício do meu pai esmaga-me até ao ponto da inveja. Sei que não tenho aquela bondade, aquela abnegação. Há pessoas mais bondosas do que outras logo à partida? É algo que vem connosco? Ou será que a diferença não é de natureza, mas sim de timing? Ou seja, as diferenças explicam-se pelo facto de a educação moral para o sacrifício ter começado no meu pai aos sete anos enquanto que em mim começou só aos trinta e tal? Seja como for, sei duas coisas: é verdade que estou longe da pureza de homens como o meu velho, mas também sei que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar pecadores como eu. Isso dá-me uma certa paz.
Nesse caminho de salvação através do Evangelho, sei que aquilo que damos aos outros tem de nos custar. Às vezes, sinto culpa por me custar tanto estar com as miúdas em vez de estar a escrever, mas a verdade é que esse sacrifício é o sinal do meu amor por elas, é o sintoma certo. Para contar tem de custar:
Levantando os olhos, Jesus viu os ricos deitarem no cofre do tesouro as suas ofertas. Viu também uma viúva pobre deitar lá moedinhas e disse: ‘em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou mais do que todos os outros; pois eles deitaram no tesouro do que lhes sobejava, enquanto ela, da sua indigência, deitou tudo o que tinha para viver.
Já dei às minhas filhas milhares de horas que podia ter usado na leitura e na escrita. Nestas milhares de horas, sofri, ressenti, desesperei, mas hoje dou graças por ter passado por esta forja. Hoje sinto pelas miúdas não apenas um fogacho afectivo, mas um amor forjado, forte e pacificado – até porque sei que hoje sou um escritor melhor devido à paternidade.
A paternidade é uma escola de vida, mas também pode ser uma escola de escrita. Por várias razões. Em primeiro lugar, aprendi a disciplinar o tempo; a minha agenda e, por arrasto, a minha cabeça estão mais enxutas e ágeis. Em segundo lugar, criar um filho e escrever um livro são maratonas parecidas, implicam um grau semelhante de perseverança. Em terceiro lugar, as minhas filhas amadureceram não apenas o homem, mas também o escritor. Costumo dizer que agora vejo as coisas em três dimensões, antes via em duas. Onde antes via ideias, agora vejo pessoas; onde antes via ideias num estirador que elevava um sistema acima das impurezas do mundo, hoje vejo ideias em movimento no rosto, nos gestos e nas emoções das pessoas que têm de se confrontar com as impurezas do mundo; antes procurava a síntese que me libertava das contradições, hoje vivo bem nesse terreno de fronteira que nos mantém em contradição, em tensão permanente entre duas ou mais identidades ou pulsões; hoje sei que a sabedoria não é abolir a tensão, é saber geri-la. Antes tinha a pose do intelectual, agora procuro a humildade do escritor.
Nos momentos mais negros, cheguei a ver nas minhas filhas uma prisão, mas, na verdade, elas foram um casulo. Como é que se costuma dizer? Que Deus escreve bem por linhas tortas, não é? Não, não é fácil andar por estas linhas tortas, nada mesmo. O amor é barra pesadíssima, mas aquilo que sobra no final de cada dia é para sempre.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.