Assinala-se hoje o Dia da Europa. Como avalia a situação europeia, por exemplo o recente discurso de Macron aos bispos da França? Acha que é uma questão ainda por resolver?
Acho. Vê-se logo pela reação ao discurso, que considero fantástico e que nunca suspeitaria possível num presidente da França. É um discurso político e calculado, com o seu quê de oportunismo, cujo impacto não sei ainda como avaliar. É preciso tempo para ver como Macron se vai comportar quando questões fraturantes na sociedade, como sempre são nos nossos dias os grandes temas da bioética, voltarem a surgir. Confesso que fiquei desiludido com a facilidade com que alinhou com a posição do presidente dos EUA de retaliar na Síria, cuja situação tem contornos muito pouco claros. Macron falou aos bispos e dias depois estava a alinhar numa atitude militarista, provando que uma coisa é o discurso ideal, outra a política real. Estou convencido de que o europeísmo de Macron é autêntico. É hoje a voz mais forte que temos na Europa, um líder capaz de chamar as coisas pelos seus devidos nomes, alguém determinado a recordar a obrigação que temos de tudo fazer para que nunca mais o nosso venha a ser um continente flagelado pela guerra. Penso que Macron é um homem bem formado, com uma considerável formação filosófica a anteceder as suas outras especializações. Não sei qual a sua formação espiritual, mas dá-me gosto saber que foi aluno dos jesuítas, e que pediu para ser batizado, se não me engano, com a idade de 12 anos. Noto que a sua formação humanística lhe dá uma consistência e capacidade intelectual absolutamente surpreendente no quadro político europeu. Para mim é uma esperança. A Europa continua num estado de letargia, excessivamente distraída de si mesma, e isso quer dizer também das exigências que tem de assumir para garantir o seu futuro e a sua própria viabilidade como «corpo» de justiça e paz. Como português, alegra-me saber que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa alertou há dias para o facto de não poder haver europeus de primeira, de segunda ou de terceira. A Europa é um projeto comum que abrange um vasto universo de povos e nações, um esforço mediante o qual todos temos de aprender a nos movimentar em conjunto, mas acontece que sem lideranças fortes, inteligentes e capazes de mobilizar as forças políticas e, acima de tudo, a consciência da cidadania a nível europeu, a Europa não se pode fazer.
Foi isso que o Papa pediu quando discursou no Parlamento Europeu?
Exato. Quando ouvi Macron dirigir-se aos católicos da França pensei o quanto terá sido marcante para ele os dois discursos que o Papa Francisco fez em Estrasburgo, discursos notáveis. Os Papas mais recentes têm sido capazes de oferecer excelentes discursos à e sobre a Europa. Francisco, que não é propriamente falando um europeu, não desdiz em nada da extraordinária qualidade de Bento XVI nas suas alocuções de natureza mais propriamente política. Pessoalmente, apenas gostaria que o Santo Padre pudesse visitar outros países europeus e levasse o lado sublime da Ideia de Europa ao coração do povo, à cidadania europeia. Sem vozes com autoridade, o projeto europeu corre o risco de se enfraquecer seriamente. Portanto, alegro-me com Macron mas também digo que só Macron não basta.
No outro lado do mundo, como vê a atuação de Donald Trump?
A sua nomeação como candidato presidencial foi uma grande surpresa para mim. Pouco antes disso acontecer, eu estava a orientar um Seminário em Washington e a certa altura fiz o meu pequeno aparte sobre a situação política no país, o que para alguns terá sido visto como uma espécie de discurso anti-Trump, convencido de que a sua nomeação era de todo implausível. No final da sessão, um colega, professor de direito, disse-me em tom perfeitamente amigável: cuidado, porque ele vai ser nomeado! Um ano depois, estava novamente com esse colega, voltei a fazer o meu discurso anti-Trump,e a sublinhar que a sua eleição não poderia acontecer. Ele, porém, de novo me chamou e disse: cuidado, ele vai ser eleito! E assim foi…Trump é um fenómeno, que me desagrada e preocupa, mas é real. Foi eleito por razões muito sérias que têm a ver com a transformação do próprio sistema político americano. Onde isto vai acabar, não faço ideia. Acho que estamos perante uma revolução política na América. O país parece que nunca esteve tão bem em termos económicos e que há uma série de indicadores espantosos, como aparente resultado da política levada a efeito pela presente administração. Nem tudo é claro, pois há problemas muito sérios, que, a meu ver, culminam, numa cada vez mais complexa, e problemática, cisão da sociedade civil. Mas sublinho: Trump deu voz a uma América que estava maioritariamente escondida e que as elites políticas achavam que não existia. Isso é importante para a Europa ver que fazer políticas a pensar nuns e não em todos, dão resultados muito maus. Por outro lado, no que toca a algumas posições, e isso malgrado o facto de não poucos católicos se sentirem chocados e perplexos com a eleição de Donald Trump, julgo que o mesmo tem vindo a tomar posições que dão à Igreja Católica uma certa oportunidade histórica de reafirmação. Como isso vai ser aproveitado e integrado, não sei. Algo de semelhante está a acontecer em França, embora do ponto de vista expressivo a França me pareça estar melhor do que a América, sendo que, do ponto de vista da realidade económica, os Estados Unidos continuem, como continuarão, a levar a melhor. Se sou crítico de Trump, e em algumas coisas sou, é porque me preocupa o modo como tem gerido a agenda internacional.
“Trump deu voz a uma América que estava maioritariamente escondida e que as elites políticas achavam que não existia. Isso é importante para a Europa ver que fazer políticas a pensar nuns e não em todos, dá resultados muito maus.”
Por exemplo na Síria?
Sim. Penso que Trump pode ser um bom presidente para a América. Temo que não seja um bom presidente para o mundo. E que as consequências das suas decisões possam ser graves.
Consegue estimar o potencial de gravidade dessa atuação?
Penso no que tem acontecido na Síria, no que há meses aconteceu quando o presidente dos Estados Unidos ordenou o disparo de 58 mísseis de retaliação por algo que eu duvido que tenha sido um ataque químico por parte do regime de Assad. O que se tem visto na Síria faz-me por vezes pensar em como a política internacional se tem vindo a transformar numa espécie de delirante fantochada. Ora isso, mesmo que não corresponda a verdade, dada a importância das nossas perceções coletivas, é certamente algo sério e grave. A impressão que temos é a de que aos comandos da realidade política do mundo há forças fora de controlo, sobretudo quando nos damos conta de como decisões são tomadas sem que no processo se pense até ao fim nas eventuais consequências, enfim, em como hoje muitos imaginam a guerra como se realmente ela não fosse mais do que um «video-game» de crescente complexidade. Estamos na era da guerra feita por meios hiper-sofisticados e à distância, mas isso não quer dizer que os acontecimentos recentes não se possam transformar – e eu temo que possam– na tal terceira guerra mundial que o Papa Francisco diz há muito que está a acontecer aos pedaços.
Por outro lado, se entendo bem o que se está a fazer, tenho a impressão que Donald Trump está a sair-se bastante bem com a questão da Coreia do Norte. A sua agressividade, não raro manifesta numa linguagem frontalmente anti-diplomática, as suas ameaças, parecem estar a funcionar. Com o tempo veremos até onde vão os seus créditos nesta delicada, e muito perigosa, questão.
Não está a ser a escalada que se temia, é isso?
Tenho esperança de que não, de que não seja o caso de se passar de mal a pior. A agressividade verbal, no caso de Trump, inscreve-se numa clara estratégia de confronto negocial. Mas não podemos esquecer que sempre que uma tal estratégia falha – e na Síria o assunto é bem mais complicado, pois dada a natureza das forças em confronto, ela lá só pode não funcionar –, na eventualidade de uma falha grave no que à ameaça nuclear diz respeito, as consequências para a Coreia e o resto do mundo podem tornar-se simplesmente incontroláveis.
Mas como solucionar o problema da Síria?
Sou muito crítico da posição dos Estados Unidos e lamento algumas tomadas de posição de Israel. Fui contra a posição da Rússia e muito crítico do presidente Putin relativamente à questão ucraniana a propósito da Crimeia e outras questões geopolíticas em que a Rússia fez exagerada questão de mostrar a sua velha paixão pelo uso da força. No caso da Crimeia, lamento sobremaneira o modo como a Federação Russa fez questão de usurpar, ou simplesmente violar, o Direito Internacional. Mas a decisão russa de apoiar o regime de Assad, no meu entender, é o único modo de sair desta terrível e horrenda guerra civil. Estou convencido de que o único modo da guerra terminar é o governo, que no país nunca deixou de existir, recuperar de forma completa a sua autoridade, porque tem de haver ordem no país, e a soberania da Síria tem de ser respeitada. Há que encontrar modos de fazer pressão diplomática no sentido de forçar o governo de Assad a dar voz política aos adversários mais moderados, mas também penso que os grupos armados que lutam contra o regime, e uns contra os outros, têm de ser desarmados e/ou neutralizados. Temos de acabar com esta ilusão de que todas as partes envolvidas na guerra civil têm o mesmo direito. Não têm. Porque se o poder estatal fracassar – e isso interessará a certos poderes geopolíticos e geoestratégicos ocidentais que se querem aproveitar da fragilidade para canalizar o petróleo da Arábia Saudita de forma mais vantajosa para a Europa e, possivelmente, até para os Estados Unidos – a Síria dificilmente voltará a ser um Estado de direito. Do ponto de vista militar, o regime de Assad está muito próximo de ter ganho a guerra. Todas as tentativas, como a americana mais recente e as muitas outras de Israel com o sentido de destruir a capacidade de controlo do governo legítimo – apesar de ele próprio ter feito coisas ilegítimas e certamente imorais – só prejudica o povo da Síria e significa que a guerra civil ainda se pode agravar por causa destas, e outras várias influências externas.
“O único modo da guerra terminar é o governo, que no país nunca deixou de existir, recuperar de forma completa a sua autoridade, porque tem de haver ordem no país, e a soberania da Síria tem de ser respeitada. Há que encontrar modos de fazer pressão diplomática no sentido de forçar o governo de Assad a dar voz política aos adversários mais moderados. Temos de acabar com esta ilusão de que todas as partes envolvidas na guerra civil têm o mesmo direito”
E se tiverem sido usadas armas químicas?
Se se provar que Assad usou armas químicas, coisa que, se entendo bem, até ao momento não aconteceu, o caso seria naturalmente muito sério. Mas desconfio que se trata de um «bluff» altamente elaborado, tanto mais que numa era em que o jornalismo de investigação, onde inteligência e coragem têm de estar na ordem do dia, praticamente deixou de existir, estamos condenados à guerra de informação e a ficarmos sem perceber o que realmente esteja a acontecer. Como cidadãos, sinto que estamos a ser alvos de severas formas de manipulação, ora por uns, ora por outros.
A concepção que as pessoas têm da realidade é, muitas vezes, baseada não numa reflexão, mas num vídeo nas redes sociais…
Sim, e sabemos das manipulações intencionais pois há situações absolutamente ridículas que desmascaram certo tipo de discursos. Um dia se olhará para a guerra civil na Síria como uma daquelas em que para além das incontáveis vítimas, e da ingente destruição material, a Verdade foi vitimizada sem cessar. Na era digital há que ter muito cuidado para não acabarmos pactuando com o que possa ser o triunfo da não-verdade, ou das famigeradas, e tão em voga, fakenews. Somos seres de imitação, e cada vez que damos azo à multiplicação da não verdade estamos a ser coniventes com a mentira e os seus efeitos degradantes na sociedade. Do ponto de vista moral, isso é certamente coisa grave.
E somos preguiçosos, porque temos as ferramentas para procurar a informação…
Esse é, entre outros, um grande problema para a Igreja, pois vejo muitos católicos que não caem na conta do que estão a fazer, ou ainda do que poderiam/deveriam fazer e por comodismo ou cobardia simplesmente não fazem. Se os jornalistas de profissão entendem até ao seu fundamento a linguagem da verdade e da não-verdade, é assunto que agora não posso discernir; mas sei, desde logo com base na chamada psicologia das massas, que a propagação da mentira, ou o recurso à falsidade deliberada ou apenas passiva, se estão transformando numa grave patologia social do nosso tempo. Infelizmente, temo que este tipo de preocupação escape ainda à atenção da grande maioria das pessoas.
“Penso que Trump pode ser um bom presidente para a América. Temo que não seja um bom presidente para o mundo. E que as consequências de algumas das suas decisões possam ser graves.”
Falando de política nacional, como vê a atuação do Governo e da chamada “geringonça”?
Neste caso, a minha surpresa ainda é maior do que a relativa ao fenómeno «Trump»! Há dias vi pela primeira vez em dez anos um jornal italiano a dedicar um editorial a Portugal, colocando em alto a dita “geringonça” e sublinhando de forma muito particular o modo político de agir do Presidente da República. No contexto da atual crise política italiana, no fundo, o articulista queria dizer que o que se passou em Portugal poderia servir de exemplo para a própria Itália e, em particular, para o Presidente Mattarella. Acontece, porém, que o xadrez político italiano é um quebra-cabeças político muito mais complexo e frustrante.
Embora com a distância de quem se considera apartidário, apesar de respeitador da importância política de partidos credíveis e responsáveis, nos tempos genesíacos da dita «geringonça» senti uma particular frustração pois era, e sou, de parecer que numa democracia representativa a vitória de um partido deveria ser sempre respeitada. Na verdade, isso aconteceu, mas na impossibilidade de formar governo uma nova situação se apresentou, a que temos. Pessoalmente, alegro-me com o facto de Portugal aparentemente estar a ser bafejado com o que parecem ser bons indicadores económicos, mas não deixo de temer a possibilidade de que alguns desses indicadores não correspondam à verdade e nos volte a acontecer o que já antes ocorreu: de repente, passamos de uma situação de otimismo para um pessimismo galopante que se apodera da alma dos portugueses, deixando o país apenas cheio de público lamento. Sou, pois, de parecer que nada há de mais urgente em Portugal do que dar fundamentos seguros e consistentes ao natural, e saudável, desejo de obter confiança dos portugueses. Mais importante do que os acertos entre partidos, não raro enfermos de oportunismo e autorreferencialidade, julgo imprescindível devolver aos cidadãos e cidadãs de Portugal um mais alto nível de responsabilidade pelos destinos coletivos da nação.
“Mais importante do que os acertos entre partidos, não raro enfermos de oportunismo e autorreferencialidade, julgo imprescindível devolver aos cidadãos e cidadãs de Portugal um mais alto nível de responsabilidade pelos destinos coletivos da nação.”
Pergunto-me, pois, se este sucesso de que tanto se fala, coisa que naturalmente espero que seja real, se traduz num reforço da autoconfiança, mesmo em sentido político, da cidadania portuguesa. Nisso o presidente da República tem tido um papel muito importante. Mas um tal papel, ainda mais que aos políticos, tem de pertencer à Igreja também, tanto mais que o seu tem de ser o papel de um saudável realismo, aquele de que faz parte chamar as coisas pelos respetivos nomes e, com isso, contribuir para que as pessoas possam dar-se conta da real dimensão dos problemas. E nós em Portugal temos vários, e sérios problemas: de justiça e injustiça, de coesão social ou falta dela, de integração ou exclusão de pessoas, de educação e do que no setor tanto há ainda para fazer. Sem esquecer, claro, os enormes problemas no âmbito da comunicação e de todo um universo social feito à base de corrupção! Além disso temos ainda forças políticas dentro do Parlamento que nos tentam convencer de que a adesão a um certo progressismo – que não é necessariamente o mesmo que necessário e sustentável progresso – em questões fraturantes da sociedade, como são os grandes problemas da bioética, e agora a eutanásia em particular, fazem de Portugal uma sociedade melhor. Ora o que eu penso é apenas o seguinte: um país anémico e distraído das suas responsabilidades acabará vítima de si próprio, neste caso, dos próprios políticos que elege. Temo que, sem disso nos darmos realmente conta, estamos a ficar a cada dia que passa uma sociedade manipulada à distância por forças políticas que não correspondem àquilo que os portugueses realmente querem. Daí a urgência que é reativar em Portugal um processo de verdadeira consciencialização política, desde logo com base em debates sérios, partilhados e, sobretudo, bem fundamentados. E se me permite, acrescento: a constante exaltação, naturalmente com fins políticos, do que parece estarem a ser as vantagens económicas alcançadas pelo governo podem acabar por gerar na população um estado de espírito pouco condizente com aquilo que em meu entender urge ter num país que ainda tem tanto para andar no sentido da sua mais positiva e válida auto afirmação, particularmente a médio e longo prazo.
“Temo que, sem disso nos darmos realmente conta, estamos a ficar a cada dia que passa uma sociedade manipulada à distância por forças políticas que não correspondem àquilo que os portugueses realmente querem. Daí a urgência que é reativar em Portugal um processo de verdadeira consciencialização política, desde logo com base em debates sérios, partilhados e, sobretudo, bem fundamentados.”
Está a falar das reformas estruturais?
Sim. Desde há muitos anos, e décadas sucessivas, se prometem reformas que nunca se fazem. E quando as fazem, da educação à saúde, tudo acontece segundo a lógica do remendo, sempre sem olhar para o real interesse, e as necessidades mais profundas, da sociedade civil. Mais que tudo, penso que a Portugal, ou a muitos dos seus decisores, sobretudo na esfera política, falta a perspetiva do médio e longo prazo. Trata-se do velho «arranjismo» português, daquele vício que alguns dos nossos melhores intelectuais foram capazes de identificar e que, contudo, não deixa de em boa medida permanecer definitório de muitos aspetos da nossa vida políticanacional.
Mas as pessoas não querem saber?
É o que eu mais temo, sobretudo no que aos jovens diz respeito. As pessoas estão noutra. E se sentem que têm uns tostões a mais no bolso, já aplaudem e não se interessam pelas reais questões de uma política verdadeira, acima de faciosismos políticos ou questões pseudoideológicas. Como cidadãos, temos todos de nos perguntar: o que é que eu quero para mim, para os meus filhos e netos, para o presente e para o futuro? Como vejo, e quero, o futuro de Portugal? Mas não só isso, e aqui de novo a Igreja tem de ajudar a sociedade civil: os portugueses precisam, com caráter de urgência, de se interrogar sobre o seu futuro como parte integrante de uma Europa capaz de resistir aos seus piores detratores.
Conheça aqui o percurso do P. João J. Vila-Chã, SJ
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.