“A comunidade cristã é a mais perseguida no mundo”

Presidente da Fundação Ajuda a Igreja que Sofre (AIS), Catarina Martins, diz que há zonas historicamente ligadas ao cristianismo, como o Iraque, de onde os cristãos estão a desaparecer.

Presidente da Fundação Ajuda a Igreja que Sofre (AIS), Catarina Martins, diz que há zonas historicamente ligadas ao cristianismo, como o Iraque, de onde os cristãos estão a desaparecer.

A ONU reconheceu recentemente o papel da Fundação AIS na ajuda aos cristãos da Planície de Nínive (Iraque). O que é que isso representa?

Este reconhecimento é muito importante pois temos feito um esforço enorme para ajudar os cristãos a manterem-se neste país. Vermos reconhecido este trabalho é um incentivo para continuarmos no Iraque e noutras situações semelhantes. Dá-nos alento, força e coragem para continuarmos, apesar de todas as dificuldades.

Mas é uma certa novidade?

Sim. Mas é um culminar do trabalho que temos feito. Nos últimos anos, a AIS tem trabalhado muito na perspetiva de fazer um lobbie positivo junto das entidades internacionais, como as instâncias europeias ou as Nações Unidas. Temos levado as pessoas que vivem e estão diariamente a sofrer na pele esta perseguição – pessoas ligadas à Igreja, os nossos parceiros no terreno – até junto do Parlamento Europeu e da ONU. Tem sido um trabalho difícil, pois não é fácil trazê-las nem arranjar disponibilidade das entidades oficiais para as receber. Mas quem melhor do que quem vive todos os dias estas situações de perseguição e sofrimento para mostrar o que se está a passar? Muitas vezes, a comunicação social passa a informação que quer e da forma como quer e esta nem sempre chega da forma mais correta.

Um trabalho de bastidores e diplomacia?

Sim e tem que ser. Porque é muito fácil falarmos de minorias no mundo, mas ainda é difícil falar de cristãos que são uma minoria em muitos países no mundo.

Porque é que isso acontece?

A Europa está a viver um momento difícil de falta de liderança, de pessoas que assumam que temos raízes cristãs. Podemos apagá-las, como se fez na Constituição Europeia, mas não as podemos negar, é uma evidência. Custa sempre quando falamos em cristãos, pois acham que os outros são sempre mais perseguidos do que nós. Mas a verdade é esta: infelizmente, hoje, a comunidade cristã é a mais perseguida do mundo. A AIS tem um grupo alargado de benfeitores que lhe permite estar no terreno a ajudar. Mas também é preciso fazer este trabalho junto dos governantes e entidades internacionais para que percebam o que se está a passar. Isso tem marcado, de facto, a diferença.

Mesmo em Portugal houve uma viragem na forma como as pessoas percepcionam este fenómeno?

Sim. Em Portugal há um grupo de deputados que se juntou com o objetivo (penso que não há isso fora de Portugal) de denunciar a perseguição dos cristãos. Não é este grupo de deputados que vai mudar o mundo, mas é muito positivo que este tema seja debatido na Assembleia da República (AR). Precisamos de que quem nos governa tenha consciência e faça qualquer coisa para mudar o mundo.

Mas há ainda uma certa resistência… mesmo esses deputados não têm a vida facilitada.

Pois… Mas a AIS já esteve na AR, na primeira comissão de liberdades e garantias e na comissão de negócios estrangeiros, exatamente para falar desta questão. Há interesse e vontade de saber. Claro que Portugal tem a influência que tem no mundo… Mas estes pequenos passos são muito importantes, pois estes deputados podem transmitir aos que estão na Europa, e conseguirmos juntos criar outra forma de estar e de não ignorar. O que temos feito nos últimos tempos é ignorar, não querer ver o que se está a passar. E os nossos políticos não podem ignorar. Este trabalho da AIS é custoso, demora, mas é preciso continuar, não desanimar. Nós trabalhamos para estas pessoas e não podemos, de modo nenhum, vacilar e ficar desanimados, pois se isso acontecer, eles não têm mais ninguém. Contudo, temos a consciência de que fazemos sempre a parte mais fácil. O mais difícil é resistir no terreno.

Como funciona a AIS? O vosso trabalho é também difundir a informação?

Sim. Sensibilizar, organizar jornadas de oração, e angariar fundos para estes projetos. Acho que é importante sublinhar que nós, enquanto cristãos, temos o dever de denunciar e de dizer ao meu amigo, familiar, vizinho, o que se passa. Só estando informados é que podemos reagir e tomar uma posição. Temos de ter esta procura de informação, ver as várias fontes porque muita da informação que nos chega é manipulada. Depois de saber as pessoas podem começar a agir, cada uma à sua forma. É importante não sermos os tais cristãos de sofá, mas estarmos atentos ao outro. Temos que começar a olhar para o vizinho do lado também, que pode estar numa situação de necessidade.

Nós, enquanto cristãos, temos o dever de denunciar e de dizer ao meu amigo, familiar, vizinho, o que se passa. Só estando informados é que podemos reagir e tomar uma posição. Temos de ter esta procura de informação, ver as várias fontes porque muita da informação que nos chega é manipulada. Depois de saber as pessoas podem começar a agir, cada uma à sua forma. É importante não sermos os tais cristãos de sofá.

De que forma sente que isso toca os portugueses? Tem havido estas campanhas das AIS, recordo a presença da Irmã Guadalupe em 2017 em Portugal e a mudança que operou na forma como muitos cristãos encaravam este problema…

A Irmã Guadalupe mostrou um lado do conflito da Síria que não conhecíamos porque não é a versão que nos é passada. Estes testemunhos são importantes porque passamos a olhar as coisas de outra forma. Várias pessoas me disseram que depois de a ouvir deixaram de olhar para as notícias como olhavam. E isto mexe com as pessoas. A verdade é que nos últimos anos, mesmo com a crise e os nossos problemas, os portugueses têm sido muito generosos. Entendem que, de facto, podem passar dificuldades no seu dia a dia, mas nada se compara com o sofrimento destas pessoas. E acreditam que um pequeno sacrifício da sua parte, podem fazer a diferença. Tem sido muito bonito de ver.

Mas tem sentido que a sensibilidade para a questão é maior?

Sim, muitíssimo maior. Há cada vez mais interesse das pessoas em saberem o que realmente se passa e não ficarem por aquilo que veem na comunicação social.

Catarina Martins entrevistada pelo Ponto SJ
Fotografia: João Ferrand

De que forma sente que este problema da perseguição é trabalhado pelos media?

Não é muito abordado pelos media, não sei se por desconhecimento. É um tema sensível e difícil. Veja-se o que está a acontecer em França, com o ataque aos símbolos cristãos. As instituições legais de cada país têm aceite este apagar dos sinais cristãos. Vivemos na Europa uma cultura de aceitar o outro, de aceitar a sua religião e a sua forma de estar. E isso é ótimo. Mas também não nos podemos esquecer de nós próprios. E o que tem sido feito é apagar o que é nosso porque afeta ou perturba outra comunidade religiosa. Isso não pode ser. Tem de haver um respeito mútuo por todas as religiões.. Os nossos meios de comunicação social têm alguma dificuldade em falar desta questão da perseguição. O Papa também tem tido este trabalho de alertar e chamar a atenção constantemente para estas situações.

Como é a situação dos cristãos no mundo? Há zonas mais problemáticas, onde a AIS tem intervenções mais importantes. Pode especificar a situação?

A perseguição tem aumentado de forma muito acentuada, muito com a comunidade cristã. Os números que publicamos, num relatório de dois em dois anos, apontam para que 75% das perseguições no mundo sejam contra a comunidade cristã. É a comunidade mais perseguida no mundo. O Papa tem feito este trabalho extraordinário de nos alertar para o facto, falando de casos concretos. Os países onde há mais perseguição estão no Médio Oriente e África, e alguns países da Ásia. A situação é alarmante em vários destes países e corremos o risco de a comunidade cristã desaparecer de vez de zonas historicamente ligadas à presença cristã, como o Iraque e a Síria.

Pode concretizar o que se passa nestes países?

No Iraque, é uma corrida contra o tempo. Em 2003, tínhamos um milhão e meio de cristãos (no Iraque), agora temos 300 mil. Estamos a assistir ao fim desta comunidade, que foi obrigada a deixar as suas casas, a fugir para salvar a vida em agosto de 2014. Na segunda metade de 2017, iniciámos o seu regresso à Planície do Nínive, de onde cerca de 120 mil foram obrigados a fugir. Agora 95 mil estão disponíveis para regressar a casa e é para estas famílias que estamos a trabalhar. A zona de Mossul foi libertada do auto proclamado estado islâmico (ISIS), pelo que há esta possibilidade de voltar. Mas quem não o fizer agora, fica abrangido por uma lei do estado iraquiano que diz que se alguém de uma minoria perde a sua casa, e não a ocupar num período de tempo, esta pode ser ocupada pela comunidade muçulmana. Perde automaticamente o direito à casa. Por isso, aquelas pessoas que querem voltar, e têm as casas queimadas, completamente destruídas, têm de ser ajudadas. Amanhã pode já ser tarde.

E estas pessoas fugiram para onde?

Para a zona do Curdistão iraquiano, a cerca de 30 quilómetros, que ficou protegida do ISIS. Os que fugiram para a fronteira com a Turquia também querem regressar, mas ainda não começaram esse processo. Mas para as pessoas regressarem à Planície do Nínive precisam de segurança. Muitas zonas ficaram minadas e é preciso fazer a desminagem. Depois é preciso recuperar as casas: tudo o que havia lá dentro foi retirado pelo ISIS para ser vendido. Estão vazias, sem canos, fios de eletricidade, sem infraestruturas. Também é preciso dar condições às pessoas para subsistirem sozinhas, numa cidade onde não há trabalho, não há nada, tudo foi destruído. Depois é preciso fazer um acompanhamento psicológico, um trabalho mais demorado. Eu não consigo imaginar o que seríamos nós nesta situação, mas é fácil perceber que, ao perder tudo, a história pessoal, até familiares, não seja fácil lidar com isso. A comunidade cristã é uma comunidade muito bem formada, com nível de educação universitário (médicos, juízes, professores, advogados). Estas pessoas tinham um bom nível de vida e um futuro assegurado para os filhos. Perderam tudo.

Mas eram pessoas que viviam em paz?

Uma paz relativa. De tempos a tempos há perseguições às minorias, mas a comunidade cristã começou a sofrer mais em 2003, ano do ataque dos EUA e das forças da coligação. A partir daí houve médicos cristãos a quem disseram: ou te convertes ou não tens mais lugar para trabalhar. A comunidade cristã foi sempre alvo de ataques, mas o pior foi em 2014 com a entrada em cena deste grupo ultra-radical.

É uma perseguição apenas religiosa?

O que nos dizem os cristãos iraquianos é que, para um muçulmano iraquiano, é muito difícil perceber que o cristão também é iraquiano. Há a ideia de que se é cristão, não é dali. Mas estão ali as nossas raízes como cristãos, no Iraque, na Síria. Estas pessoas, independentemente de serem cristãos, são árabes. Tem sido assim ao longo dos séculos e têm convivido com mais ou menos conflitos. O que se vê, por exemplo, em Mossul, é que os sinais de séculos da presença cristã foram destruídos. É uma vontade de apagar todos os sinais da história porque, segundo este grupo radical, o Iraque pertence aos muçulmanos.

A Igreja tem sublinhado o papel dos cristãos no processo de reconciliação. Como é que isto se vive?

É este testemunho cristão de que, mesmo quando alguém nos maltrata, é possível perdoar. Falei com pessoas no Iraque que me diziam que já tinham perdoado os que lhes tinham feito mal, queriam apenas que eles percebessem que o coração se pode converter ao amor. Este perdão e este abrir portas, da parte da Igreja (dos padres e congregações), a todos, independentemente da sua religião, é um testemunho extraordinário e tem ajudado ao trabalho de reconciliação entre as várias religiões presentes. O testemunho de ajuda e amor ao próximo continua a ser feito e acredito que dá frutos. Há muitos muçulmanos – felizmente muitos não são fundamentalistas – que percebem que a comunidade cristã tem de permanecer porque senão é uma sociedade como muito mais ódio.

Falava de um milhão e meio de cristãos no Iraque e agora de 300 mil. O que aconteceu aos outros?

Fugiram, morreram, muitos saíram para fora, há uma grande comunidade nos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Suécia, Canadá. Eram pessoas com capacidade financeira e viveram estes anos todos a pensar que saíam de casa e se calhar não voltavam, a ver os filhos sem futuro naquele país. Isto fez com que milhares de pessoas quisessem sair. É legítimo. Todas as estruturas de educação, saúde, foram destruídas. Quando estive no Iraque, em 2015, vi que nas famílias com filhos jovens, eram eles que incentivam os pais a sair, a recomeçar a vida, pois não sentiam que havia futuro ali. Estavam a viver em campos de refugiados, tinham deixado de ir à escola, à universidade, e insistiam para sair. Os que têm familiares com idade, é mais difícil recomeçar. Muitos saíram e já voltaram porque a vida como refugiado também não é fácil.

Como está a situação de segurança no terreno?

Não sei se podemos dizer que há segurança…Não há, é uma zona muito complexa. De facto, o autoproclamado estado islâmico saiu daquela zona mas esta mentalidade, esta forma de olhar para o outro, continua. Os rebentamentos de bombas e ataques suicida continuam, embora para eles já façam parte da rotina.

Diz que a Síria é um problema muito complexo. Que trabalho tem a AIS feito aí e qual a situação dos cristãos?

Nós estamos na Síria no apoio de emergência, a tentar que as pessoas sobrevivam com os bens essenciais – alimentação, medicação, roupas -, através de congregações religiosas que ainda continuam no terreno. São organizações, bispos, que têm a cargo famílias que apoiam, e que são financiados pela AIS. Não sabemos muito bem em que direção vai a Síria, aliás, não sei se alguém no mundo saberá… Mas é uma questão ainda mais complexa do que o Iraque. Neste momento, a Igreja na Síria nem sabe qual a comunidade cristã, pois o movimento dentro do país é enorme, com milhões de pessoas que vão constantemente de um lado para a outro à procura de maior segurança. A Igreja local nem nos consegue dizer qual será a sua comunidade. Muitos terão saído, estarão noutras partes, é uma incógnita. Estamos a tentar ajudar a Igreja a saber onde estão os seus paroquianos, se estão vivos ou mortos. A situação é caótica. Os cristãos têm sido, não diria o alvo, mas têm sido apanhados no meio deste conflito.Os cristãos têm sido, não diria o alvo, mas têm sido apanhados no meio deste conflito.

A Igreja na Síria nem sabe qual a comunidade cristã, pois o movimento dentro do país é enorme, com milhões de pessoas que vão constantemente de um lado para a outro à procura de maior segurança. A Igreja local nem nos consegue dizer qual será a sua comunidade. Muitos terão saído, estarão noutras partes, é uma incógnita. Estamos a tentar ajudar a Igreja a saber onde estão os seus paroquianos, se estão vivos ou mortos. A situação é caótica.

Mas aí não é uma questão religiosa?

É um conflito económico, geo-estratégico, podem-se encontrar todos os problemas. Muitas vezes a religião é usada para estes fins por grupos que não têm nada a ver com religião mas a usam para influenciar e manipular. Os cristãos têm sido apanhados neste fogo cruzado. Ainda agora, em Damasco, muitos bairros cristãos estão a ser atacados nesta ofensiva, que não sabemos de que lado vem. É uma situação extremamente complexa. Teremos de aguardar. A Igreja na Síria fez um pedido no início do ano à AIS para apoio à reconstrução de casas, para que a comunidade cristã possa regressar a vilas e aldeias onde a situação está ais calma. Mas teremos de olhar para tudo isto e ver se é o momento exato.

Está tudo a mudar a toda a hora…

Sim. Havia a perspetiva de que tudo serenasse este ano, mas os primeiros tempos não mostram isso.

Como decidem os apoios que dão?

As organizações que estão no terreno vêm ter connosco ou nós vamos procurá-las. Tenho um colega que vai frequentemente à Síria para ver o que podemos fazer para ajudar as pessoas lá, ver as estruturas da Igreja que estão mais organizadas e conseguem congregar mais pessoas à sua volta. As campanhas grandes da AIS são pensadas a nível internacional, e há um secretariado internacional onde estão os responsáveis pelos projetos nestas grandes áreas de intervenção no mundo. Aí decide-se quais os projetos que vamos apoiar. As campanhas para o Médio Oriente, como representam valores muito grandes, têm de envolver um esforço partilhado de todos os secretariados da AIS e de todos os benfeitores.

Em África estamos a falar de outro tipo de perseguição?

Aqui também há grupos radicais a atuar, alguns fiéis ao auto proclamado estado islâmico. Os mais conhecidos são o Boko Haram e All Shabaab, na Nigéria e Somália. O que se tem verificado nos últimos anos é a perspetiva que o ISIS desenvolveu, de que as terras são apenas para os muçulmanos e só os sunitas têm lugar. E vai sendo feito uma limpeza. Na Nigéria isso tem acontecido. No Sudão do Sul é um conflito tribal com milhões de pessoas deslocadas e milhares de mortos. Há muitos países nesta zona: República Democrática do Congo, República Centro Africana, Nigéria, Somália, Eritreia, Mali, Líbia, onde tem havido a perspetiva de que é preciso erradicar todos os que não são desta religião. Todas as minorias têm a vida em risco. Há vilas, aldeias que são destruídas e isso leva a milhares de pessoas constantemente em fuga, e que procuram abrigo em igrejas, seminários. É a Igreja que vai fazendo este trabalho extraordinário de apoio às populações. Não nos podemos esquecer que África é o continente com mais refugiados do mundo, devido a conflitos, perseguições, questões económicas, seca, etc. Falamos da Europa, mas temos aqui apenas uma pequena parte. Estes grupos radicais têm levado o terror e não sabemos muito bem onde isto nos vai levar.

Mas o Estado Islâmico não é responsável por isto tudo, pois não? 

Sempre houve extremismos… Mas a AIS no seu relatório fala de um hiper extremismo religioso, pois eles conseguiram trazer algo que nunca vimos antes, uma violência sem limites. O ISIS resulta de uma cisão da Al Qaeda, por isso, vão-se criando novos grupos, falamos deste mas há muitos, que atuam por si próprios e se vão inspirando neste. Amanhã poderá não haver este e haverá outro. É preciso que os líderes religiosos olhem para estes grupos e os condenem e façam esta educação de cada comunidade, no sentido de aceitar o outro, porque isto é uma deturpação da religião.

Mas ainda falta essa condenação mais veemente?

Falta. Não há condenação. E estes grupos radicais vão continuando a existir, com alguém que os vai financiando, se calhar com outros interesses. Não sei quando chegará o dia em que terminem, mas acredito que será difícil. Pois há cada vez polos mais opostos, entre o ocidente e o mundo árabe, que não concorda com a nossa forma de viver e quer reconquistar o que foi deles. Acredito que isto vai continuar. E vamos ver as consequências a longo prazo, pois todos sabemos que há muitas crianças hoje que estão a ser educadas nesta forma de estar.

Como é que as pessoas resistem na sua fé perante ameaças do tipo: ‘ou te convertes ou morres’?

Os testemunhos que temos recebido são incríveis… deixam-nos sem palavras, a nós que estamos aqui sentados no conforto da Europa. Coloco-me muitas vezes a questão: como eu reagiria, seria capaz deste desprendimento? Ainda há dias um bispo do Paquistão me dizia algo que já ouvi várias pessoas dizerem: “se temos que morrer um dia, que melhor sítio para morrer do que na Igreja, a rezar a Deus?”

Os testemunhos que temos recebido são incríveis. Já ouvi várias pessoas dizerem: “se temos que morrer um dia, que melhor sítio para morrer do que na Igreja, a rezar a Deus?”

São considerados mártires?

Considero que sim porque é a sua fé que põe a sua vida em risco. Quando estive no Iraque impressionou-me ver que não tinham nada e eles dizerem que tinham tudo o que precisavam para viver. “Tenho Deus comigo, tenho a minha fé, e isso basta”, diziam. Só Deus basta. Eu só peço a Deus que me dê esta fé se alguma vez for exposta a esta situação. É esta ideia de que o sangue dos mártires santifica a Igreja. De facto, o continente onde há mais vocações é onde há mais perseguições: África. E vemos países onde a comunidade cristã é perseguida e as pessoas querem seguir a Deus. Relembro o testemunho de um jovem seminarista que dizia que desde pequeno via os padres e irmãs a trabalharem junto da comunidade, a viver tão pobres como eles, a partilhar sofrimentos e alegrias. Ele dizia que se tinha alguma coisa na vida era porque aquelas pessoas estavam ali na sua comunidade. E queria ser padre porque só fazia assim sentido a vida: entregar-se aos outros. O testemunho destes padres e irmãs é de dar a vida mesmo por estas comunidades, e isto é tão forte que suscita estas vocações de entrega total a Deus e aos outros.

Têm agora na Quaresma as campanhas na Índia e China. Qual a situação nesses países?

Na Índia, há uma diferença abismal entre os muito ricos e os muito pobres e oficialmente não há castas. Mas no dia a dia elas estão presentes. Esta campanha destina-se a um grupo que são os dalits, considerados os mais baixos de todos, pois não tem educação, acesso à saúde, rendimentos, procuram comida nas lixeiras e não têm forma de escapar a este ciclo de pobreza. Cerca de 60% dos cristãos na Índia são dalits. São uma minoria, cerca de 2,3%, ou seja, 30 milhões. A Igreja tem desempenhado este trabalho com cuidado, e tem conseguido chegar junto destas pessoas, mostrando-lhes que são pessoas com dignidade, ao contrário do que a sociedade lhes diz. Dá-lhes a conhecer uma nova vida, ao mostrar que Jesus foi tão pobre como eles, e que cada homem e mulher tem dignidade. É quase um renascer para eles.

É um trabalho mais espiritual o da AIS neste local?

Sim. De ajudar estas pessoas a formarem pequenas comunidades onde possam suportar uma rede de apoio. Decidimos apoiá-las, por serem de um país onde há cada vez mais casos de perseguição pelos radicais hindus (que se sentem protegidos pelas forças de segurança e governo que fecham os olhos ao que vai acontecendo). A ajuda é mais pastoral, no sentido de ajudar na formação de catequistas, na construção de pequenos espaços de capela onde se possam juntar e crescer na sua fé.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.