“Não te vou ajudar.” Foi uma frase curta e dura e que ao início causou muita mossa pois Abel não estava à espera de a escutar de um irmão sacerdote. Tinha acabado de chegar a uma localidade e, como sempre, procurou apoio junto da Igreja local. Encontrou o Padre A. numa esplanada, depois de o ter procurado em casa, e quando lhe pediu um sítio para dormir, para comer e tomar banho, a resposta foi fulminante: “Não te vou ajudar“. O peregrino nem conseguiu escutar os fundamentos da rejeição, tão atordoado ficou com a resposta. Acima de tudo, ficou magoado.
Lembrou-se então de um episódio da história de São Francisco de Assis e do ensinamento que este deu a Frei Leão sobre a origem da verdadeira alegria. Quando os dois frades caminhavam, Francisco explicou ao companheiro que se batessem à porta de um convento para pedir abrigo e lhes recusassem ajuda, e, mesmo assim, não sentissem raiva com essa rejeição, esse seria o exponente máximo da alegria que alguém poderia alcançar. “Imprimi esse texto de São Francisco, fotocopiei o meu cartão de cidadão e o cartão de sacerdote e escrevi ao Padre A., deixando a carta debaixo da porta. Escrevi-lhe dizendo que nunca me tinha sentido tão humilhado na vida, mas agradeci-lhe o facto de me ter dado a possibilidade de ser rejeitado em nome de Jesus. Fiquei contente porque ele humilhou-me e eu respondi com amor e caridade”.
Foram muitos dias de acolhimento e poucos de rejeição, sublinha Abel, que, ao longo da sua peregrinação de 26 dias entre Loiola e Manresa, contactou com 17 padres e foi sempre bem recebido pelos sítios onde andou. Passou por várias casas jesuítas e por muitas paróquias, mas ainda assim teve de dormir sem ser debaixo de um tecto por sete vezes, substituindo a cama por uns fardos de palha ou o quarto por uma casa abandonada.
Mas o dia em que foi verdadeiramente rejeitado acabou mal. E Abel sabe que poderia ter acabado de forma ainda pior, trágica. Já noite dentro, sem conseguir encontrar um lugar para descansar, o peregrino sentia-se tão cansado que dormiu dentro de um caixote do lixo. Estava frio e Abel temia adoecer se ficasse ao relento. Procurou um caixote cujos sacos não estavam sujos, fez uma cama com papelão onde se conseguiu enfiar e aí ficou dentro do saco de cama. Dormiu “bem”, garante, embora seja difícil imaginar o que isso significa, ainda mais depois de um dia a caminhar muitos quilómetros.
Mas foi sobressaltado às cinco da manhã. Era a hora da recolha do lixo e o caixote onde se encontrava foi içado e despejado dentro do camião. Assustado, Abel começou a gritar e o motorista da viatura que acompanhava a manobra através de uma câmara, apercebeu-se de algo estranho e parou a máquina de imediato, não sem antes esta engolir os pertences do peregrino.
Abel não ganhou para o susto. Apesar de não se ter magoado, a operação foi de tal forma complexa que, ainda de madrugada, foi preciso chamar a polícia, os bombeiros e os paramédicos, bem como as entidades locais. “Só pedi que não deixassem vir os jornalistas”. Não por si, afirma, mas por eles próprios. “Seria uma vergonha para eles, enquanto povo, que a história fosse relatada. Um povo que não é capaz de acolher um peregrino…”
E eu, sei lidar com a rejeição, transformando-a numa oportunidade para amar?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.