A travessia num acorde – “Soubesse eu morrer iluminando”

Podemos ter dificuldade em passar da solidão quaresmal a que a quarentena nos conduziu, para a Paixão que o Senhor de novo vive. Esta proposta ajuda-nos a dar esse passo.

Podemos ter dificuldade em passar da solidão quaresmal a que a quarentena nos conduziu, para a Paixão que o Senhor de novo vive. Esta proposta ajuda-nos a dar esse passo.

Chegamos, enfim, ao grande pórtico da Semana Santa, a Semana Maior para todos os Cristãos. Durante cerca de cinco semanas fomos conduzidos ao deserto, para que o Senhor nos falasse ao coração, como ao profeta Oseias (cf. Os 2, 14-23). Nesse lugar, talvez silencioso e árido, Ele desejou torná-lo mais dócil, fazê-lo um coração de carne, que sente e sofre e se compadece (cf. Ez 36, 26). Agora convida-nos a acompanhar Jesus numa entrada aparentemente triunfante na Cidade Santa, recebido e aclamado como Rei, com ramos de oliveira que falam de paz e os cantos das crianças que enchem o espaço de alegria.

Estas últimas semanas têm-se tornado para nós um tempo (forçado) de clausura: sem que o esperássemos, vimo-nos convidados a restringirmos os nossos movimentos, as nossas relações; vimo-nos forçados a parar, a reduzir a velocidade; vimo-nos, enfim, confrontados com o silêncio que nos coloca em relação connosco próprios, levando-nos a escutar o que se passa realmente dentro de nós, a encontrar a Vida que vive dentro de nós. Neste tempo em que nos parece que perdemos liberdades, temos uma escolha essencial a fazer: decidir se, nos espaços a que fomos confinados, somos reclusos ou monges, se somos prisioneiros ou místicos, vítimas ou bem-aventurados.

 

«Soubesse eu morrer iluminando», deseja Daniel Faria, numa expressão facilmente associada à Paixão: não será a Cruz uma candeia que, no meio das trevas, ilumina?

 

No dia em que uns recebem Jesus em gáudio e festa, outros preparam um julgamento perverso e injusto que o levará à morte. E o Senhor certamente saberia isso, tão bem quanto os frutos que do Seu inevitável sofrimento viriam. «Soubesse eu morrer iluminando», deseja Daniel Faria, numa expressão facilmente associada à Paixão: não será a Cruz uma candeia que, no meio das trevas, ilumina? Faria compreende como o modo como vivemos a vida que nos é dada a viver, a pode converter em Vida que dá fruto abundante.

Podemos ter dificuldade em passar da solidão quaresmal a que a quarentena nos conduziu, para a Paixão que o Senhor de novo vive; a passar dos nossos próprios medos para o sofrimento de Outro, espelhado no sofrimento de tantos e de tantas formas. As peças que hoje apresento procuram ajudar a dar forma e harmonia ao percurso a que o Tríduo Pascal nos convida.

A primeira peça que apresento procura ilustrar precisamente tanto a entrada numa grande catedral, como a triunfante entrada em Jerusalém. O hino Gloria, Laus et Honor tibi sit, é um hino gregoriano que canta o louvor a Cristo Rei, ao Senhor que vem salvar o Seu povo. Hoje proponho a versão menos convencional de Marco Frisina (Roma, 1954-), a qual adorna a melodia tradicional gregoriana com a harmonia das vozes e dos instrumentos de metal. O sentido de festa a que esta melodia nos conduz poderá ajudar-nos a entrar na imponência subtil daquele momento da chegada da esperança messiânica, tal como foi vivido pelos contemporâneos de Jesus.

 

 

A segunda proposta leva-nos a dar um salto para Quinta-feira Santa, concretamente para a Última Ceia que Jesus tomou com os Seus discípulos. Sabendo o que viria a acontecer, Jesus decide celebrar a Páscoa com aqueles que o acompanhavam, que caminhavam consigo. Poderia ter decidido fazer outra coisa, mas decide dar-lhes uma nova forma de O ter presente consigo. Poderia ter optado por largos discursos, mas deixa um gesto que os marca, baixando-Se para lhes lavar os pés. Ubi caritas et amor Deus ibi est (Onde haja caridade e amor aí está Deus), outra herança gregoriana, inspirou muitos ao longo dos séculos. Proponho a versão surpreendente de Ola Gjeilo (Noruega, 1978-), cuja harmonia parece querer alargar-nos o horizonte à grandeza desta caridade. Todo o coral é um convite ao mistério e à contemplação, note-se, por isso, a sóbria exultação que o compositor coloca no início da segunda estrofe (minuto 1’6) que culmina no convite “temamos e amemos o Deus vivo”.

 

 

A Paixão e Morte de Jesus inspirou compositores ao longo dos séculos, que procuraram ilustrar, com a sua arte, a sua própria experiência destes mistérios. Seria difícil fazer uma proposta que se sobreponha às demais, desde as Paixões de J. S. Bach a outras. Hoje proponho algo incomum, retirado das Sept Paroles de Jésus en Croix (1855), de Charles Gounod (França, 1818-1893): Pater, in manus tuas commendo spiritum meum (Pai, em Tuas mãos entrego o Meu Espírito). A serenidade e a claridade deste coral falam por si próprias, talvez dando rosto ao que significa o tal “morrer iluminando” de que Daniel Faria falava.

 

 

Boa Semana Santa para todos. Até já!

 

Playlist Travessia num acorde no Spotify

Imagem: © Emil Nolde – Mar Brilhante

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.