A travessia num acorde – cultivar a paciência

Uma ajuda para que possamos procurar cultivar a virtude da paciência e viver como verdadeira Quaresma este tempo de quarentena, tendo os acordes de alguma música litúrgica como companhia.

Uma ajuda para que possamos procurar cultivar a virtude da paciência e viver como verdadeira Quaresma este tempo de quarentena, tendo os acordes de alguma música litúrgica como companhia.

Não fomos feitos para viver fechados. Essa é que é essa! Fomos feitos para a Vida, para nos relacionarmos, para nos fazermos próximos e nos deixarmos aproximar, para amarmos e para que nos deixemos amar. Mas o tempo que somos chamados a viver hoje, aqui e agora, é um tempo especial, um tempo com desafios próprios que requerem de nós a audácia da paciência e a coragem para o silêncio…

 

Cultivar a virtude da paciência e tornar (ou tomar consciência de) esse silêncio habitado poderão conferir a esta quarentena a graça necessária para a transformar numa verdadeira Quaresma: num tempo favorável e propício para o encontro com Aquele que nos conduz na travessia pelo deserto. O deserto em si poderá parecer infrutífero, mas, finda a travessia, reconheceremos, com gratidão, aquilo que nele vivemos.

Crescem nas asperezas do caminho,
pequenas flores brancas de esperança,
não podem os espinhos afogá-las,
pois foi o Amor quem as chamou à vida.

Estes versos, retirados da primeira estrofe de um hino da Liturgia das Horas, descrevem bem este tempo, possivelmente de forma mais clara do que antes. O caminho para a Páscoa é sempre de Cruz, e este ano, pelo que nos é pedido, parece um pouco mais árido do que o normal, tornando-se a sede da presença de tantos (e de Deus) mais clara. Mas importa recordar que há “flores brancas” que não podem ser afogadas e que teimam em recordar que a meta é “já ali”, que a Terra Prometida existe e está próxima.

 

Por este motivo, e para ajudar nesta travessia, regresso com a proposta de novos Acordes, à semelhança da proposta do Advento e Natal. Com eles espero poder contribuir para que esta travessia, mais do que um passar do tempo, se possa tornar numa viragem para o interior, lugar onde é necessário o verdadeiro silêncio; templo em cujas paredes ressoam de forma incomparável as obras corais sacras, dando forma e brilho à voz de um Senhor que também canta. Assim, ao longo das próximas semanas, proporei o encontro com a obra de diversos compositores que, muitas vezes compondo em tempos conturbados, nos deixam a sua arte para nos recordar isto mesmo: que o deserto é caminho e não fim.

 

A primeira peça que proponho, Miserere (c. 1630), da autoria de Gregorio Allegri (Roma, 1582-1652), dá brilho e profundidade ao Salmo 50: «Tem piedade de mim, ó Deus, pela tua grande misericórdia». Trata-se de um texto penitencial, no qual o salmista reconhece a sua fragilidade, o seu pecado e a sua fragilidade; mas pedindo a Deus para que crie em si um coração puro, para que lhe abra os lábios de modo que a sua boca possa proclamar o louvor do Senhor. Intercalada com versículos cantados em canto-chão, por um solista, a polifonia soa a esperança, da qual brota o grito suplicante (da voz do soprano) que, por isso mesmo, não se torna desesperante, mas confiante no Senhor a quem se dirige. Com o texto do Salmo 50, vale a pena escutar e deixar-se habitar por esta peça incontornável:

 

 

Continuando o nosso caminho, a segunda obra que proponho é da autoria Thomas Tallis (Inglaterra, c. 1505-1570): Spem in Alium. Trata-se de um moteto composto por volta de 1570, para 40 vozes mistas (isto é, por oito coros de cinco vozes cada um). Não se conseguindo precisar o contexto histórico para o qual esta obra monumental – considerada por muitos a mais importante da época –, possivelmente tocada no primeiro aniversário da Rainha Isabel I, a Rainha Virgem. O texto do moteto da oração de matinas é adaptado do Livro de Judite (Judite 9): «Em nenhum outro coloquei a minha esperança, se não em Vós, Deus de Israel, que podeis mostrar tanto a ira como a graça e que absolveis todos os pecados do homem em sofrimento (…)».
Deixemo-nos, pois, habitar pela harmonia que embeleza esta confiança num tempo nebuloso: escutando este coral imponente, possamos fazer nossas as palavras que ele adorna:

 

 

Despeço-me com uma proposta diferente: The Lord is my Shepherd (1978), composta por John Rutter (Inglaterra, 1945-), que o compositor inseriu, mais tarde, no seu Requiem. Trata-se do Salmo 23, musicado com uma doçura inesperada, que nos toca quer pelas vozes dos cantores, quer pelo oboé que as acompanha. Num tempo de deserto, afirmar que o Senhor é o nosso Pastor (minuto 0‘50), recorda-nos que não caminhamos sozinhos, mas conduzidos (mesmo se não damos por isso): o percurso pode ser tenebroso e incerto (minuto 2’20), mas não esqueçamos que, no final de contas, o Seu Amor e a Sua Graça nos acompanharão todos os dias da nossa vida (minuto 3’51).

 

 

Que sejamos capazes de viver este tempo da melhor forma, apesar da inquietude: este é, afinal, o tempo favorável. Encontramo-nos na próxima semana: até já!

 

[NB – Para ajudar a viver este tempo, fiz uma playlist no Spotify, na qual tenho posto e continuarei a pôr mais música. Que possa ser (mais) uma ajuda.] Aqui fica ela:

Fotografia de  Maxine yang  – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.