Há livros que são verdadeiras experiências espirituais. Não porque ponham em crise e alterem os nossos valores, mas porque, ao confirmá-los, desmentem ou pelo menos corrigem a nossa compreensão deles. Desagradáveis quebra-nozes do conformismo em que caímos ao lidar com as nossas certezas como algo que é ‘nosso’, sem atrito, sem fadiga, sem trauma, estes livros despertam-nos do ‘sono da crença’, lembrando-nos que toda a fé deve ser vivida, antes de mais, como um convite incessante a questionar-nos a nós mesmos.
Por isso, a quem aceite o desafio de sair da própria zona de conforto ético e espiritual, sugiro ler, neste Verão, esta chocante e perturbadora recolha de contos de Flannery O’Connor, a grande escritora católica americana do século passado, que ensina – tão evangelicamente – a ver a Graça nas deformidades medonhas de seres aflitos pela violência e pela pobreza material e cultural; a reconhecer que a redenção desabrocha nos grandes fracassos; que a possibilidade da Revelação (é o título de um destes contos formidáveis) é algo que se aninha nas experiências mais triviais do quotidiano, sem trompeta de anjos e céus a abrir-se, apenas num deslize impercetível da desordem profunda do mundo a recompor-se sob o sopro do Espírito.
Como num retábulo de Matthias Grünewald, os seres pintados nestas páginas são feios e grotescos; desfigurados pelas próprias feridas materiais e espirituais, pelos próprios preconceitos raciais, sociais, políticos, culturais; sem rumo e sem qualquer esperança. Geralmente escondem-se: atrás de uma segunda pele de tatuagens ou da própria armadura de respeitabilidade e estatuto social. Escondem-se dos outros, mas antes de mais de si mesmos, porque não toleram a visão da própria miséria existencial. Sabem de ser moralmente repugnantes ou simplesmente fracassados porque incapazes de amor, e para evitar ser julgados erguem-se a juízes de tudo e de todos. Quem lê, detesta-os profundamente e despreza-os no começo, como bom pequeno pecador, como fariseu que se sente melhor de todo o grande pecador, para, no fim, se ajoelhar perante eles, perante o milagre da Graça que os toca e transfigura, no poder não dado aos homens, mas só a Deus, de redimir o pecado, de tornar santo o ruim.
Tudo O que Sobe Tem de Convergir
Flannery O’ Connor
Tradução de Rogério Casanova.
Relógio d’Água, Lisboa 2015
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.