A propósito do abuso sexual de crianças por membros da Igreja Católica

O intuito e desejo é o de prevenir e contribuir para a erradicação de qualquer tipo de abuso, sexual, de autoridade ou consciência. Este livro tem a ambição de fazer parte de uma história, a de uma escuta do que o “Espírito diz às Igrejas".

O intuito e desejo é o de prevenir e contribuir para a erradicação de qualquer tipo de abuso, sexual, de autoridade ou consciência. Este livro tem a ambição de fazer parte de uma história, a de uma escuta do que o “Espírito diz às Igrejas".

Há histórias que dão livros. E todos os livros têm a sua própria história. A obra Uma anatomia do poder eclesiástico tem a ambição de ter uma história ainda nos seus primeiros passos. Trata-se de um conjunto de textos da autoria de diversos teólogos inscritos na realidade da Igreja Católica portuguesa que olham para o problema do abuso sexual de crianças por membros da Igreja. O intuito deste texto é o de apresentar a história deste projeto. Apresentá-lo-ei na primeira pessoa do singular. Poderá levar ao franzir de sobrolho de alguns sobre a objetividade, paciência.

Esta obra é uma das muitas iniciativas que se inscrevem no âmbito do projeto CUIDAR desenvolvido pelo CEPCEP – Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa – da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Após este enquadramento institucional entremos nos detalhes de natureza mais histórica e orgânica da génese deste conjunto de estudos.

Em setembro de 2020, o P. Luís Marinho, assistente nacional do CNE – Corpo Nacional de Escutas – e um dos atores do projeto CUIDAR, desafiou-me na minha qualidade de teólogo a apresentar uma reflexão sobre o flagelo do abuso sexual de crianças por membros da Igreja. Achei o desafio pertinente e exigente. Durante algum tempo, e contradizendo o meu entendimento da dimensão eclesial da reflexão teológica, pensei num projeto de natureza individual. Isto é, pensei publicar algo que seria a minha reflexão e análise deste flagelo a partir do meu lugar de observação, o qual é o da Eclesiologia. Era para mim claro que o problema obrigava a colocar a questão da ministerialidade na e da Igreja.

Vivia-se um tempo estranho. Ora saíamos do confinamento devido à pandemia da covid, ora mantínhamos ritmos de vida eclesial alterados e afetados pela mesma. A própria vida académica tinha sobressaltos: aulas por meios telemáticos, aulas em regime semi-presencial… enfim, um conjunto de exigências novas e prementes a não permitirem uma dedicação exclusiva ao projeto. E ainda bem! Fui percebendo que o assunto teria de ser abordado, mesmo partindo da perspetiva teológica, de uma forma pluridisciplinar e colegial. Em dezembro de 2020 tomei a decisão de alargar o olhar sobre o problema do abuso sexual de crianças por membros da Igreja a mais vozes entre os meus pares.

Não sou jornalista, nem tão pouco um bom relações públicas. Tive de me socorrer dos bons ofícios dos diretores dos dois centros de investigação da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, o CEHR – Centro de Estudos de História Religiosa – e o CITER – Centro de Investigação de Teologia e Estudos da Religião. Os professores Alexandre  Palma (CITER) e Paulo Fontes (CEHR) indicaram-me um conjunto de possíveis interessados em participar no projeto, o qual ainda não tinha nome. Para convocar e “provocar” os possíveis interessados redigi um texto apresentando o projeto “Uma anatomia do poder eclesiástico”. Uma boa parte desse texto constitui a apresentação da obra que ganhou o título a partir da designação do projeto. Estávamos em janeiro de 2021. O documento enviado continha, também, uma abundante bibliografia sobre o assunto compilada em grande parte pelo P. Luís Marinho e com algum complemento da minha parte com bibliografia do mundo anglo~saxónico sobre o tema.

As respostas foram surgindo à minha interpelação. Umas positivas, outras declinando o desafio por se encontrarem envolvidos noutras atividades e projetos. Em junho de 2021 tinha o elenco de sete autores cujos trabalhos a obra dá a conhecer. Temos enquadramentos eclesiais diferentes. Também temos percursos teológicos diversos. Mas esta variedade enriqueceu o projeto e valoriza a obra. Enquanto coordenador do projeto fui falando com cada um dos autores. Fui percebendo, pelo menos na descrição de cada um, do como pretendia abordar a questão, de convergência e complementaridade nas formas de pensar o assunto. Em setembro de 2021 propus uma reunião em formato “virtual”, afinal a pandemia veio acelerar formas de trabalho onde a distância deixou de ser um problema. A reunião aconteceu no princípio de outubro de 2021. Cada autor “apresentou-se” (alguns de nós já nos conhecemos e temos muita história vivida em conjunto, mas não era o caso do Alex Villas-Boas e da Sónia Monteiro) e apresentou o seu ângulo de abordagem. Estabeleceu-se, ainda, o prazo de 20 de novembro de 2021 para a entrega dos textos.

Entretanto o problema continuava a surgir nas notícias. Por um lado tínhamos os diferentes artigos do jornalista do Observador, João Francisco Gomes, denunciando um conjunto de situações existentes de abuso sexual de crianças por parte de membros da Igreja católica em Portugal. Essas diferentes situações acabaram por ser publicadas na obra Roma, temos um problema, divulgada em outubro de 2021, e trata-se de uma obra decisiva para o conhecimento dos factos e também para o conhecimento dos diferentes relatórios que foram sendo publicado um pouco por todo o mundo sobre o mesmo tipo de situação. Por outro lado, no início de novembro de 2021, um conjunto de membros da Igreja católica tinha assinado e enviado uma petição aos bispos portugueses pedindo a criação de uma Comissão Independente. A publicação do relatório da Comissão independente para o abuso sexual de crianças (CIASE) em França tinha publicado números avassaladores sobre a questão. Ainda estamos a viver as ondas de choque do sucedido em vários países e, seguramente, também teremos sintomas deste mal na realidade da Igreja portuguesa. Quando a Comissão Independente foi criada, no entanto, já existiam alguns dos textos deste projeto. Na verdade, o texto da Sónia Monteiro interrogando-se sobre a possibilidade do perdão neste caso do abuso sexual de crianças por membros da Igreja foi o primeiro a ser entregue. Pareceu-me uma interpelação profética a toda a Igreja, a todos nós e decidi fechar o livro com aquele texto mesmo não tendo ainda ideia da forma como os outros autores tinham desenvolvido os seus artigos. Os outros autores que entregaram os seus textos antes da criação da Comissão Independente em Portugal foram o Alex Villas Boas, o P. José Manuel Pereira de Almeida e o Alfredo Teixeira. Ainda faltavam três contributos.

Em janeiro de 2022, a Rita Mendonça Leite conseguiu entregar o seu texto. Começou a colocar-se o desafio de estruturar o livro. Tratando-se de contribuições diversas, estabelecer uma estrutura onde a ordem dos fatores não parecesse uma pura arbitrariedade era o objetivo principal. Decidi colocar como primeiro texto a reflexão em torno da interrogação “Servir ou servir-se?” do P. José Manuel. A resposta parece ser evidente para todos, mas nem sempre as práticas ministeriais parecem traduzir essa evidência. O texto final estava decidido desde novembro. A minha contribuição e a do P. Peter Stilwell apenas ficaram concluídas em março de 2022. Decidi colocar o meu contributo sobre as diversas configurações da ministerialidade na história e vida da Igreja como segundo texto e o do P. Peter sobre a expressão “in persona Christi” tantas vezes usada e “abusada” para falar do ministério sacerdotal. Em quarto lugar coloquei o texto da Rita onde ela discute a relação clericalismo e anticlericalismo como “agentes de mudança”, em particular porque o clericalismo é um dos sintomas tantas vezes apontados pelo Papa Francisco associado a este problema do abuso sexual de crianças. Em quinto lugar coloquei o texto do Alfredo Teixeira, onde ele faz uma crítica da razão institucional a partir da grelha de leitura da antropologia das instituições e como ele afirma: “Compreendendo que uma instituição é uma gramática da vida social, um habitat, (…) procura-se chegar a uma compreensão da razão institucional que reproduz a lógica do segredo face à evidência do abuso, por parte dos que representam a instituição”. Em sexto lugar coloquei o texto do Alex Villas Boas, onde se dialoga com Michel Foucault e se mostra a exigência de se passar de um “do poder pastoral ao cuidado pastoral”.

Desde o início tomei uma opção metodológica: a de não partilhar nenhum dos textos recebidos com os outros autores, apesar de alguns terem manifestado imediatamente esse desejo. Apenas conheceram o conteúdo final e o contributo de todos os outros quando o livro foi publicado no final de junho de 2022. Tinha, e tenho, em mente a continuação do debate: uns com os outros, assim como de o alargar a quem nele queira participar. O nosso intuito e desejo é o de prevenir e contribuir para uma erradicação de qualquer tipo de abuso, seja sexual de autoridade ou de consciência. Conforme o referi no início, este livro tem a ambição de fazer parte de uma história, a de uma escuta  do que o “Espírito diz às Igrejas” (Ap 3, 22) do nosso tempo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.