A Playlist de Teresa Esteves da Fonseca para a quarentena

Sem disfarçar tristezas, fugir às ambiguidades e sabendo que tudo passa porque afinal nós não pertencemos às coisas que nos acontecem, boas ou más. Assim a playlist de hoje, com Teresa Esteves da Fonseca.

Sem disfarçar tristezas, fugir às ambiguidades e sabendo que tudo passa porque afinal nós não pertencemos às coisas que nos acontecem, boas ou más. Assim a playlist de hoje, com Teresa Esteves da Fonseca.

 

1 – Bom Dia Tristeza – Adoniran Barbosa

Nunca fui muito de embarcar em positivismos forçados, nem em pessimismos bacocos. Sempre fui de ir dançando com as alegrias e com as tristezas à medida que elas forem aparecendo na maré. Esta samba, com a voz maravilhosamente imperfeita de Adoniran Barbosa, é um lembrete disso mesmo: às vezes é preciso não reprimir a tristeza, e deixá-la entrar para aprender a dançar com ela. Às vezes é preciso dizer “Se chegue tristeza, se sente comigo”

 

2 – Senta-te aí – Rio Grande

A imagem é simples: um pai sentado à frente do filho numa conversa de passagem de testemunho. É uma canção agridoce, comovente, com uma melodia que tem tanto de simples como de penetrante.
Agora que estamos confinados é natural que as nossas referências temporais, horárias, ou até geográficas se vão desvanecendo. É bom imaginar um pai a segredar-nos ao ouvido “Se perderes a direcção da lua, olha a sombra que tens colada aos pés”

 

 

3 – Getting Better – The Beatles

Os Beatles são os homens da minha vida, têm palavras e sons para tudo (isto, claro está, não descurando o Messias, que me dá muito mais que isso tudo.) Ouvimos um Paul McCartney muito optimista a dizer “It’s getting better all the time”, para logo sermos invadidos pelo pessimismo do John Lennon quando remata imediatamente com um “it can’t get no worse”. É um pouco nesta ambiguidade que vamos vivendo nesta fase atípica: de um lado vemos arco-íris a dizer que vai ficar tudo bem, explodem iniciativas para tudo e mais alguma coisa, e por outro vemos as notícias que nos dão conta do panorama catastrófico que agrava de dia para dia.

 

 

4 – Bright Eyes – Anoushka Shankar

Acho que a pior maneira de viver a quarentena é pensar constantemente que estamos de quarentena. Não vou, por isso, forçar nenhum significado profundo e actual para esta música. A música é profunda por si só, é sensível por si só. O génio musical da Anoushka (filha do grande guru Ravi Shankar) está aqui em todo o seu esplendor. A canção é triste, porque Anoushka estava triste quando a escreveu, é verdadeira e vulnerável, e expõe tranquilamente uma ferida que muita gente carrega (o fim de uma relação, neste caso de um casamento).
Sempre que oiço Anoushka a tocar o seu instrumento, a sítara, imagino uma versão indiana do clássico dos Beatles (George Harrison) While my sitar gently weeps.
De notar a voz misteriosa de Alev Lenz, cantora alemã que colabora com Anoushka Shankar no EP onde esta canção está incluída.

 

5 – Ninguém é quem queria ser – Foge Foge Bandido

Com a amargura, ironia e humor com que Manuel Cruz nos habituou logo desde os tempos dos Ornatos Violeta, esta canção tem a marca clara da pessoa que não se importava de trocar de pele pelo menos por um dia. Crises existenciais, quem nunca as teve que atire a primeira pedra. Agora não vale muito a pena, porque está tudo mais ou menos no mesmo barco. Mas quando isto acabar, voltemos a Manel Cruz e às crises existenciais em horário de expediente.

 

6 – All Things Must Pass – George Harrison

Não é por ser um dos homens da minha vida, mas gosto muito mais deste refrão do que o “vai ficar tudo bem”. O “vai ficar tudo bem” tem um cheirinho a sorriso amarelo e a mantra que se repete ao espelho até que finalmente acreditamos nele. “Tudo passa” é diferente. É mais realista, é um olho aberto para o presente, é aceitar que o presente está mesmo a acontecer, e é a esperança de que o presente não é para sempre. Esta canção é despegada e livre, nós não pertencemos às coisas que nos acontecem, boas ou más.

https://www.youtube.com/watch?v=pPTHem2iu0A

 

7 – Adios – Benjamin Clementine

Benjamin Clementine é a voz que importa ouvir, e é o piano que importa sentir. Prestidigitador, poeta, cantor, compositor hipnotiza qualquer ouvido que se aproxime. Nesta música temos o resumo de toda a genialidade de Clementine. Aconselho a que se oiça o disco todo, At Least For Now, mas elegi esta música porque há uma frase que, desde que a ouvi pela primeira vez, tem ressoado e ecoado em mim de forma muito intensa: “The dicision is mine, so let the lesson be mine.”

 

 

Extra:
Me Quedo Contigo – Rosalía

A canção original é dos Chunguitos. Mas fica aqui um momento maravilhoso da gala dos prémios Goya 2019, protagonizado por Rosalía. Esta versão conta apenas com um coro e com a voz celestial da cantora espanhola. E é arrepiante. Verdadeiramente arrepiante. A sensibilidade do arranjo harmónico, e o sentimento da voz de Rosalía fazem um cocktail simples, mas que não podia ser mais completo. É uma verdadeira carta de amor.
“Si me das a elegir entre tu y mis ideas, aunque yo sin ellas soy un hombre perdido
Ay, amor, me quedo contigo.”

 

 

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.