Nomeado para o Óscar de melhor filme internacional, Corpus Christi (originalmente, Boże Ciało) será sem dúvida um dos filmes que guardaremos de 2019. Dizer “Cristo” e o seu “corpo” em polaco ou latim facilmente nos remete para uma esfera muito particular do existir humano, onde a dimensão religiosa se manifesta de forma explícita ou, talvez, até impositiva. De Jan Komasa, contudo, não se esperam contos bíblicos, nem apologéticas antigas. Nesta sua terceira longa-metragem, o jovem cineasta oferece-nos um drama, bem ao estilo de O Quarto do Suicídio, filme com que o descobrimos em 2011.
Corpus Christi apresenta-se num cenário feito de contrastes, em que o protagonista, de nome Daniel, procura um rumo para a sua vida. Ora na prisão, ora em liberdade – entre um silêncio pesado e o grito de quem sofre por esta vida dura que leva – com uma boa dose de vodka e algumas missas à mistura, Daniel vai-nos contando a sua história. Depois de um crime horrendo que cometera, o jovem é enviado para uma prisão de menores. Nesse centro reeducativo, ele vai aprendendo a gostar da missa celebrada na simplicidade e na pobreza daquele lugar. Ao acordar espiritualmente, diz querer ser padre. Mas o capelão Tomasz lembra-o que, agora, ele se tornou num “delinquente”. É a essa categoria a que todos o reduzem, aparentemente para todo o sempre. E isso, diz-lhe o Padre sem rodeios, impossibilita a entrada num seminário. Certo dia, num período de pausa e liberdade do centro e do trabalho, Daniel entra numa Igreja e, por força das circunstâncias, apresenta-se como sacerdote. A mentira ganha relevo quando as pessoas da aldeia esperam contar com a ajuda do jovem padre.
Por isso, enquanto espetadores, não somos capazes de reduzir Daniel à mera categoria de criminoso porque sabemos que ele tem em si muita humanidade.
A beleza do enredo é não nos mostrar a realidade com linhas divisórias bem definidas entre o preto e o branco, deixando transparecer uma ambiguidade entre o bem e o mal. Com a mentira, Daniel não passa simplesmente de delinquente a impostor, ou não crescesse sempre o joio juntamente com o trigo. Numa aldeia onde o catolicismo prescreve toda a existência, a história de Daniel conduz-nos a uma reflexão sobre a fé, em particular, e sobre a pessoa humana, em geral. O enredo mostra que também o hábito faz o monge – ou neste caso o sacerdote. Pois também acabamos por nos tornar naquilo que os outros vêem em nós. Para o bem ou para o mal, somos muito o que os outros querem que sejamos. Se, segundo o centro reeducativo, Daniel era um delinquente, naquela aldeia passa a ser visto como um sacerdote jovem e belo, capaz de substituir o padre velho e cansado que há muito ali estava. Para além da mentira e da ambição que Daniel claramente manifesta, também existe lugar para servir a comunidade, cuidar dos outros e chorar por eles. Nas missas do falso padre, o culto não mais se reduz a um hábito cultural, a uma rotina exterior, ou a uma tradição do passado: a oração de Daniel remete para o interior, como se o silêncio se tornasse numa prece genuína.
O padre Daniel, impostor e delinquente, transforma a religiosidade da aldeia: com ele todos podem berrar enquanto rezam, revoltar-se contra Deus sempre que sentem dor pelos entes queridos que faleceram precocemente e os que foram injustamente excluídos da comunidade são reintegrados novamente. E, assim, pouco a pouco, vamos sentindo que é a partir da sua mentira que Daniel rompe com certas hipocrisias desta pequena comunidade campestre, redimindo, além disso, muitas das suas feridas. Por isso, enquanto espetadores, não somos capazes de reduzir Daniel à mera categoria de criminoso porque sabemos que ele tem em si muita humanidade. Disso estamos certos sempre que o vemos de lágrimas ao rosto, ou quando ele cura os desavindos pela ternura dos gestos, com a paciência da escuta e com a oração que nada tem de mecânico, mas que se faz apenas de autenticidade. Por tudo isso, ressoa no enredo a questão: santo ou impostor?
Disponível em DVD.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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