Para quem cresceu a ver o filme Ratatui, é difícil equacionar que seja negativo dizer que “a montanha pariu um rato”. Além disso, e a julgar pelos avanços científicos originados graças a experiências em roedores, não será preciso ter visto o filme da Pixar para pensar o mesmo.
Ora, geralmente, quem afirma que o Sínodo foi uma montanha que pariu um rato, di-lo com duas entoações diferentes. A primeira muito semelhante a uma “eu avisei”. A segunda muito próxima a um “não contem mais comigo”. No entanto, ambas as posições parecem ter pouca sofisticação e são em si contraditórias. No caso da primeira, quem o diz festeja o facto de o Sínodo não ter alcançado aquilo que elas próprias não queriam que ele alcançasse. E no caso da segunda, porque o Sínodo não alcançou aquilo que elas queriam impreterivelmente que alcançasse.
Ora, é aqui que se mostra a contradição e, em ambos os casos, o motivo é o mesmo: o Sínodo foi mesmo um Sínodo, ou seja, evoluiu, mudou de rumo, voltou atrás, repisou perguntas, ponderou respostas… Ou seja, quem desejava ardentemente um Sínodo e agora está desiludido com o resultado, porque não tem as respostas que queria, aparenta-se com aqueles que defendem a democracia e as eleições livres, mas, quando o resultado não lhes agrada, se apressam a dizer que o povo é ridículo, inculto e ingrato. Quem não desejava um Sínodo, proclamava que este era a deturpação da Igreja, e agora se ri de mansinho por aquilo que é proposto no documento final não prometer uma “revolução”, ri-se da sua própria ignorância, porque, afinal de contas, estava errado, e o Sínodo não foi aquilo que tanto temia e agueirava.
Ou seja, quem desejava ardentemente um Sínodo e agora está desiludido com o resultado, porque não tem as respostas que queria, aparenta-se com aqueles que defendem a democracia e as eleições livres, mas, quando o resultado não lhes agrada, se apressam a dizer que o povo é ridículo, inculto e ingrato.
Mas terá sido mesmo assim? Terá o Sínodo ficado mesmo aquém? Talvez para perceber se sim ou se não, uma boa estratégia seja sair de 2024, recuar quase três séculos atrás, e viajar até a uma colónia britânica do outro lado do Atlântico onde decorria uma guerra que originaria independência do país que hoje conhecemos como Estados Unidos da América.
De facto, quando nos debruçamos sobre este período da história, há uma pergunta que é muito comum, ainda para mais nos dias que correm: por que razão os pais fundadores dos EUA insistiam tanto na fundação de um país independente e livre e não na abolição da escravatura? Na altura, já havia um pensamento abolicionista minimamente estruturado e os Founding Fathers eram homens particularmente cultos que, aliás, em vários dos seus escritos públicos e privados, demonstravam a sua desconfiança face à legitimidade destas práticas. Seriam eles verdadeiros elitistas, indiferentes aos problemas dos cidadãos e aos direitos humanos? (muito embora o conceito seja anacrónico para a época).
Ora, circulando pelos textos de George Washington percebemos o motivo. Em geral, os pais fundadores receavam que sem um Estado de Direito, sem um sistema político baseado no primado da Lei e na separação de poderes, qualquer ação legislativa no sentido de terminar com a escravatura acabasse por ser arbitrariamente revertida, e que tal discussão, se não fosse amparada pelos mecanismos progressivos dos estados livres e participativos, originaria um clima de tirania generalizada. Como afirma o historiador americano Joseph Ellis, Washington acreditava que as divisões sobre a escravidão deveriam ser “congeladas” até que a república tivesse meios para lidar com elas de maneira justa. Para ele, uma nação unida e estável era o passo essencial antes de abordar problemas estruturais profundos.
Tenho a sensação que há algo de muito próximo na intuição fundamental deste Sínodo. Na Igreja, é necessária uma conversão das relações, para que ocorra uma conversão das estruturas. Porque a conversão ou a conservação das estruturas – que, na verdade, para serem autênticas, não existem uma sem a outra, – só acontece verdadeiramente por esta via.
É verdade que se tem apoderado da consciência eclesial uma valoração da eficácia, que, não raras vezes, tem posto em causa a relevância das propostas pastorais da Igreja – como se até agora, e perdoem-me a provocação, a Ecclesia in Europa ou a Verbum Domini tivessem gerado autênticas revoluções copernicianas nos nossos contextos eclesiais. Querem-se normas. Exigem-se mudanças. Reclamam-se diretrizes. Mas talvez seja preciso romper a surdez. E deixar de lado a consolação quando o magistério diz o que já sabemos ou queremos ouvir.
Antes de mais, parece-me mais ou menos evidente que, até há pouco tempo, a palavra sínodo só era utilizada para referir o “Sínodo dos Bispos”. E que isso materializa uma clara conceção teológica e antropológica. Ora, se é verdade que “a Igreja está no Bispo e o Bispo está na Igreja”, conforme escreveu nas suas cartas Cipriano de Cartago, não é justo dizer que existe uma equivalência total entre uma coisa e outra. Por isso, importa perguntar: de que modo as decisões e orientações pastorais são reflexo do consensos dos fieis? Elas são fruto de um “estilo peculiar que qualifica a vida” através da radicalidade do batismo, ou da arbitrariedade? Não sendo a Igreja estruturalmente uma democracia, não terá esta certeza nos distraído de procurar, promover e implementar estruturas mais comunitárias, que sejam expressão de uma Igreja-comunhão, e não de uma participação à partida “cativa” da hierarquia? Será ainda uma Igreja com demasiada coisa para dizer, e pouca necessidade de escutar, onde o medo de destruir cativou o esforço de edificar? Será o cuidado nos relacionamentos eclesiais ainda e só “uma estratégia ou uma ferramenta para uma maior eficácia organizacional”? Se Michael Oakeshott definiu a história “como uma longa conversação, iniciada nas florestas primitivas, alargada e tornada mais articulada no decorrer dos séculos”, conseguiremos traduzir a história da Igreja, a “doutrina” e o nosso dia-a-dia, enquanto batizados, da mesma forma? De que modo superar o impasse entre a tentação de considerar os carismas exclusivos de quem os recebe e exerce, e a burocratização de quem deseja a todos instituir como ministérios?
Não sendo a Igreja estruturalmente uma democracia, não terá esta certeza nos distraído de procurar, promover e implementar estruturas mais comunitárias, que sejam expressão de uma Igreja-comunhão, e não de uma participação à partida “cativa” da hierarquia?
Além destas questões, creio que o Sínodo tornou incontornáveis duas reflexões. Em primeiro lugar, a reflexão sobre a necessidade de transparência, tantas vezes analisada como uma cedência “ao espírito do mundo”, mas que o Sínodo sintoniza na correspondência à “bem-aventurança evangélica dos puros de coração”. Nisto incluiu-se a implementação de uma cultura de avaliação da evangelização e dos evangelizadores, assim como a publicação dos dados relativos à gestão económica das dioceses e o real funcionamento dos conselhos de apoio à “governação” pastoral. Em segundo lugar, a necessidade de transição da conceção de lugar como espaço físico – no qual se sedia uma comunidade – para a de “território existencial”, considerando que “a paróquia não está centrada em si mesma”.
Mas o Sínodo que termina fornece ainda uma leitura importante para os mais recentes dados vindos dos sinais dos tempos. É hoje consensual que a vitória de Donald Trump nas eleições americanas foi numericamente impressionante. Venceu no voto popular e, além da presidência, conseguiu maioria no Senado e na Câmara dos Representantes, controlando, também, uma dimensão significativa do poder judicial.
Ora, como me parece audacioso considerar que mais de 50% dos americanos são mentecaptos, concordando nós, ou não, com as suas opções eleitorais, é preciso perguntar, que sinal é que esta eleição nos permite antever e de que modo o Sínodo é capaz de interrogar, e deixar-se interrogar por ela.
Neste sentido, se é verdade que umas das explicações mais abalizadas para a vitória dos republicanos é um certo cansaço face a uma proposta moral vista como incompreensível e de elite – geralmente apelidada de Wokismo – o Sínodo parece fazer uma opção importante ao deixar de lado discursos identitários e de fação. Mas, de outro modo, se os resultados podem ser explicados, também, pela capacidade de falar dos problemas concretos das pessoas, como o salário e a segurança, será necessário questionar se não é preciso focar a proposta da Igreja mais nestas questões e menos, precisamente, em afirmações identitárias, como sejam as formas rituais ou as ditas “questões fraturantes”. Ou então, torná-las consequência de uma proposta pastoral mais vasta que não as tome na linha da frente.
Nos Estados Unidos não se combateu nem para “tornar a America grande outra vez”, nem para “salvar a sua alma”. Isso é só o revestimento e a capa do medicamento. Combateu-se para proteger o dia-a-dia. É verdade que, quem viveu a viragem do milénio, pressentiu um “fim da história”, onde a tolerância, a liberdade e a democracia iam imperar. Mas hoje as novas gerações são mais intolerantes, ansiosas e inseguras que as que as precederam e isso deve ajudar-nos a converter o estereótipo do jovem Coca-Cola, cheio de esperança e de hospitalidade. E quando se afirma que “temos que chamar os jovens para a Igreja” é importante pensar nestas novas dimensões.
Mas, até aí, o Sínodo me parece um trabalho necessário. Numa sociedade polarizada, numa Igreja que reflete aquilo que a circunda, precisamos – preciso – de ser menos sectários e de deixar de lado as nossas – minhas – obsessões. Não é só no exterior da Igreja que há muito individualismo. E a estratégia do salve-se quem puder, não existe só para lá do Atlântico.
A frase de Karl Rahner dizendo que “o cristão do futuro será místico ou não será” tornou-se um lugar comum da espiritualidade cristã. Mas isso nunca acontecerá enquanto não formos exorcizados do nosso pequeno mundo e o Sínodo é a melhor maneira de o fazer.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.