A Guerra e Paz de Yoko Ono

Para esta semana, a Brotéria sugere uma ida ao Museu de Serralves, para uma visita panorâmica à obra de Yoko Ono.

Para esta semana, a Brotéria sugere uma ida ao Museu de Serralves, para uma visita panorâmica à obra de Yoko Ono.

As instruções de Yoko Ono são claras. Mais ou menos absurdas, poéticas, excêntricas; pacifistas, frontais, políticas; são sensíveis e deixam a larga distância os terrenos pantanosos da ambiguidade. Na exposição O Jardim da Aprendizagem da Liberdade, em Serralves, percorremos um extenso panorama da obra da artista, inequívoca protagonista da Fluxus, linha da frente no advento do Conceptualismo nos anos 60 em Nova Iorque. Hoje com 87 anos, cada vez mais desassombrada pelo epíteto de viúva profissional, a visita à obra da artista propõe um percurso de ‘aprendizagem de liberdade’ que alterna entre manifesto pacifista e ensaio sobre a solidão.

Lê-se “PEACE IS POWER”, em letras de grandes dimensões, imediatamente à entrada no museu. Se antes fosse possível ler o slogan como artefacto histórico da memória partilhada ou imaginada dos anos 60, nos meses pós-vírus consegue tornar-se novamente incomodativo. A terapêutica de “PAINTING TO LET THE EVENING LIGHT GO THROUGH YOKO ONO, 1961” ou “Glass Hammer [Martelo de vidro]”, 1967/2014, responde, ainda que inadvertidamente, à inquietação do tempo presente, coabitando com a memorabilia de tempos já idos de contestação social e artística. Com a reprodução de Half-a-Room, 1967, entramos num meio-quarto com mais de cinquenta anos. O cartaz WAR IS OVER – If You Want It, pode ser Pop do passado mas ressoa de inquietação; impõe-se, na sala seguinte, a instalação Ex It. Dezenas de caixões de madeira clara alinham-se no chão. Em cada um cresce uma oliveira.

Parallel Mend Piece

“Think of a place in your heart that needs mending. / Think of a place in the world that needs mending. / Think and mend. / Mend.” / y.o. ‘66–‘93

Uma das salinhas mais pequenas convida a participar em Parallel Mend Piece, usando lã colorida para remendar louça quebrada, meditando sobre as instruções. As obras de Yoko Ono são sobretudo ideias, materializadas nas mais diversas formas – bilhetes, cartas, impressões, vídeo, performance, objeto e instalação, marcantes pela contenção e também pela sua já notória linguagem de encenada ingenuidade. Em A Piece of the Sky, 2001–2008, suspende-se do teto um aglomerado de capacetes militares a várias alturas, recheados por peças de puzzle que, em conjunto, retratam um céu primaveril, ligeiramente nublado. O visitante é convidado a levar consigo um “pedaço de céu”:

Take a piece of the sky / Know that we are all / part of each other.

Uma antessala lateral forrada a mapa-múndi reforça o convite pacifista – quatro carimbos onde se lê “IMAGINE PEACE” 117 pedem para marcar o mapa num local à escolha. Em 2020, em Serralves, são os Estados Unidos a desaparecer na trama de opacidade criada pelas letras carimbadas. O filme do célebre telefonema feito da cama do hotel Hilton em Amesterdão em 1969, BED PEACE, protesto à guerra do Vietname é projetado com a respetiva faixa sonora, adjacente ao espaço oval em que parece ter naufragado um pequeno barco de pesca pintado de branco. O barco, o chão e as paredes cobrem-se com as mensagens pacifistas e assinaturas dos visitantes, um pulmão da mostra que impressiona pelo contraste com Rising, ao virar da esquina – peça colaborativa de 1994 que aqui é recativada com o resultado da convocação de Ono às mulheres do Porto à partilha de histórias de repressão ou violência.

Aqui encontra-se, também, um de vários televisores com os filmes mais conhecidos da artista: em Freedom, dos anos 60, é-se implicado na semi-angústia de ver Ono, lentamente, a tentar rasgar com as mãos o soutien roxo acetinado que traz vestido. O público é deixado, pouco confortável, na antecipação do momento que não chega. Ecos dos dois John, Lennon e Cage, surgem, a cada passo, no Jardim da Aprendizagem da Liberdade, oscilando entre a presença ténue e a participação direta.

Desde Grapefruit, em 1964, as instruções de Yoko Ono foram pedindo espaço. “Por favor, aceita-me”, é o pedido renovado. A quantidade de peças expostas, assim como a excessiva dependência em reproduções, leva a um sério risco de dispersão ao percorrer a exposição. Sente-se a falta de suporte: folha de sala ou informação complementar. Contudo, é uma oportunidade importante para aceder à dimensão e, principalmente, à coragem da obra de Yoko Ono. Referência no experimentalismo literário, artístico e musical, foi, e continua a ser, verdadeira agente de contaminação, precursora em todas as frentes em que se quis envolver.

 

Yoko Ono
O jardim da aprendizagem da liberdade

Museu de Serralves, Porto (Rua Dom João de Castro, 210)

30 maio a 15 de novembro (segunda a sexta das 10h às 19h; sábado, domingo e feriados 10h às 20h)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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