Numa aconselhável visita à exposição de arte sacra na igreja de Santa Catarina, na lisboeta Calçada do Combro, deparei-me com uma estante de missal namban que me fez viajar até ao Japão do século XVI.
A chegada dos portugueses à longínqua ilha de Tanegashima, em 1543, dá início ao chamado “Século Cristão”. Até 1639 — ano em que se implementou uma lei que restringia a entrada e saída de pessoas do país (Sakoku) — o Japão foi espaço de uma intensa comunicação cultural entre Ocidente e Oriente que deixou fortes marcas em diversas áreas, como a militar, científica ou gastronómica. A arte foi apenas uma delas. Obviamente, estas datas servem apenas para um mero enquadramento temporal, uma vez que uma influência tão intensa e experiente como a lusa nunca conseguiria deixar de marcar de uma forma tão abrupta, sendo que se manteve de uma maneira mais ténue durante bastante tempo.
Tanto portugueses como japoneses se caracterizavam por um enorme espírito de curiosidade e uma grande capacidade de adaptação que promoveu um acolhimento amistoso por parte dos locais e uma fácil acomodação por parte dos ocidentais, apesar do ambiente complicado que se vivia causado pela guerra civil. Essa relação quase sempre favorável durante cerca de um século teve várias consequências, sendo uma delas a arte namban.
A arte namban — ou namban-bijutsu — é fruto da influência temática e estilística causada pela presença portuguesa no arquipélago nipónico e decorre da expressão namban-jin (“bárbaros do Sul”) usada pelos japoneses para designar este povo exótico que chegava à sua terra.
A arte namban — ou namban-bijutsu — é fruto da influência temática e estilística causada pela presença portuguesa no arquipélago nipónico e decorre da expressão namban-jin (“bárbaros do Sul”) usada pelos japoneses para designar este povo exótico que chegava à sua terra. Os biombos (byōbu) são peças muito características deste estilo, no sentido em que manifestam de uma maneira óbvia a miscigenação de culturas promovida pelos desembarques da nau do trato nas terras do Sol nascente. Até aos inícios do século XVII, século em que chegaram outras potências europeias ao Oriente, esta embarcação assegurava o monopólio luso do comércio asiático. Partindo de Goa, passava por Malaca e Macau, com destino a Nagasáqui. Nesta nau, também conhecida como Kurofune (navio preto), eram transportados tecidos de seda, algodão, peles, madeiras aromáticas, mobiliário, objectos de cristal e vidro, armas, porcelanas, ouro, prata, relógios da Flandres, vinhos portugueses, especiarias, porcelanas, etc. Além de bens, seguiam também comerciantes, fidalgos, militares e missionários. É exactamente o desembarque destas gentes tão estranhas ao povo japonês, com os seus produtos tão exóticos, que os nipónicos representaram nos famosos biombos namban.
Não tendo como motivo estilístico as relações comerciais dos portugueses nos portos japoneses, a estante de missal da igreja de Santa Catarina é também um exemplo puro da arte namban. Tal como a quase totalidade das estantes de missal namban conhecidas, a sua estrutura articulável em madeira é revestida pela tradicional e prestigiada laca (urushi) — um material resultante da extração de seiva de uma árvore que depois é aplicada em objetos de madeira e repetidamente polida — onde se cria um padrão com pó de ouro (maqui-é) e incrustrações de madrepérola (raiden), extraída da concha de alguns moluscos. A moldura de toda a peça é composta por uma malha de triângulos, na parte superior, e quadrados na parte inferior. A base apresenta-nos uma típica decoração floral, neste caso com elementos inspirados no kuzu ou feijoeiro japonês, enquanto que a parte superior é dominada pela decoração geométrica composta por quadrados decorados a negro, dourado ou com madrepérola. Este composto axadrezado serve de base para a ostentação de um círculo raiado no qual surge o monograma IHS, tendo por cima do “H” uma cruz e por baixo um coração trespassado por três cravos. Esta decoração central, tão típica nas estantes de missal namban, leva-nos a crer que esta peça terá sido encomendada pela Companhia de Jesus, quando evangelizava os povos japoneses. Podemos ler numa carta de 1583, do jesuíta Alessandro Valignano — que fora enviado, em 1573, como visitador da missão jesuítica no Oriente —, a sua advertência a que fosse colocada em todas as encomendas da Companhia de Jesus a insígnia jesuítica, como prova do êxito da missionação no Extremo Oriente.
Podemos ler numa carta de 1583, do jesuíta Alessandro Valignano — que fora enviado, em 1573, como visitador da missão jesuítica no Oriente —, a sua advertência a que fosse colocada em todas as encomendas da Companhia de Jesus a insígnia jesuítica, como prova do êxito da missionação no Extremo Oriente.
Enviados por D. João III, chegou em 1549 o primeiro grupo de jesuítas ao Japão, do qual fazia parte São Francisco Xavier. A Companhia de Jesus foi bem recebida e soube adoptar as estratégias correctas para as milhares de conversões que conseguiu: apostou primeiramente na conversão dos daimyos — os senhores das terras ou governantes provinciais — que posteriormente convertiam os seus súbditos, e participou activamente nas trocas comerciais, usando esse papel de intermediário como um instrumento de propagação do Cristianismo. A presença jesuítica no Oriente teve uma forte influência na arte, uma vez que, em prol da explicação dos ensinamentos inacianos, de muito se serviram da arte como meio de catequização. Sendo a ordem religiosa com maior número de instituições fundadas na Ásia, enfatizou a produção de pintura, escultura, ourivesaria, porcelana, paramentaria, talha, etc. No Japão em particular, para além das já referidas estantes de missal ou de outros objectos de mobiliário, como contadores ou escritórios, sobressaem também como exemplo de arte namban promovida pelos sucessores de Francisco Xavier os oratórios portáteis (seigan), que tinham como função proteger pequenas pinturas de temática religiosa, algumas delas produzidas na escola de Giovanni Niccolò, um irmão jesuíta napolitano que chega ao Japão em 1581 para instituir escolas de pintura, onde se reproduziam com enorme qualidade pinturas italianas e flamengas.
Esta história, aqui contada de uma maneira incrivelmente resumida, é muita dela espelhada numa estante de missal escondida na igreja de Santa Catarina. Fica então a enorme vontade de visitar outros exemplos de arte namban espalhados maioritariamente por Portugal, para poder aprofundar esta fascinante relação de portugueses e japoneses, comerciantes, religiosos, militares e fidalgos cuja interculturalidade provoca a criação de objectos de incomparável riqueza e beleza.
Este artigo foi publicado no caderno cultural da revista Brotéria de Abril de 2018.
Foto de Capa: Lisbon Lux – link para site
Informações úteis:
Igreja de Santa Catarina
Localização: Calçada do Combro nº 82 – 1200-115 Lisboa (link mapa)
Contactos:
Telefone: 213 464 443
Email: [email protected]
Horário de abertura:
segunda-feira a sábado: 09h00 às 13h00 e 15h00 às 18h00
domingo: 09h00 às 12h30
Bibliografia:
COSTA, João Paulo Oliveira e. – “Os Portugueses no Oriente” in Presença Portuguesa na Ásia Testemunhos, Memórias, Coleccionismo, Lisboa: Fundação Oriente, 2008;
MÓNICA, Isabel Maria. – “Os Jesuítas: Estrutura da ordem e estratégias de conversão utilizadas na Índia e no Japão do século XVI pelo exemplo de S. Francisco Xavier”. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013;
PINTO, Maria Helena Mendes. – Lacas Nambam em Portugal – Presença Portuguesa no Japão, Lisboa: Edições Inapa, 1990;
SILVA, Nuno Vassallo e. – “A Companhia de Jesus e as artes decorativas no Oriente português” in Arte Oriental nas Colecções do Museu de São Roque, Lisboa: SCML / Museu de S. Roque, 2010.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
Sugestão Cultural Brotéria
Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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