A Escuta como Ponto de partida…

A escuta não é sugerir, não é aconselhar, não é manter conversa, não é dar exemplos, não é resolver problemas, não é propor distrações, nem moralizar. É ouvir com todos os sentidos, captar os sons entre as notas, aceitar e fazer silêncio.

A escuta não é sugerir, não é aconselhar, não é manter conversa, não é dar exemplos, não é resolver problemas, não é propor distrações, nem moralizar. É ouvir com todos os sentidos, captar os sons entre as notas, aceitar e fazer silêncio.

Escrever sobre a escuta revelou-se bem mais difícil do que, inicialmente, poderia imaginar. Há muito tempo que gosto de falar sobre a urgência de aprender a escutar, de explicitar a diferença entre escutar e ouvir e de exemplificar, muitas vezes teatralizando, formas de fazer um boa escuta. Tudo isto com a consciência de ser eterna aprendiz ou, de modo menos autocomplacente, ciente de que tantas vezes ainda sou umbigo em vez de horizonte…

Nesta incerteza, achei que começar pelo título poderia ser um modo de me organizar. E eis que a inspiração surge deste lugar onde escrevo e do seu espaço ‘Ponto de Escuta’ (serviço criado pela Companhia de Jesus para responder a este tempo de confinamento) .Uma possibilidade de acolhimento para quem precise de se dizer nestes tempos diferentes, em que a exigência do isolamento trouxe à luz dores que sempre lá estiveram, encobertas pela voragem dos dias, ou aportou novos e inesperados sofrimentos. A situação pandémica expediu-nos para os nossos limites, roubou-nos a ilusão de futuro na mão e remeteu-nos para a necessidade de sermos acolhidos, aceites e amados pelo que somos. O estado de invisibilidade social a que fomos compulsivamente enviados libertou-nos para o ser e para o bom das relações, ou afundou-nos na fragilidade ou ausência dessas mesmas relações. Liberdade para uns, dor para outros, necessidade de verbalizar e (re)contextualizar a vida, para todos…

A situação pandémica expediu-nos para os nossos limites, roubou-nos a ilusão de futuro na mão e remeteu-nos para a necessidade de sermos acolhidos, aceites e amados pelo que somos.

Ainda assim, a folha continuou vazia durante alguns dias enquanto, dentro de mim, esperava que a prosa surgisse. Curiosamente, em vez de frases, o meu cérebro brindou-me com a memória de momentos em que fui capaz de me escutar, de escutar outros, em que fui um fiasco a fazê-lo, em que me senti verdadeiramente escutada ou, antes pelo contrário, alvo de uma qualquer verbalização bem intencionada mas quase sempre moralista: “Eu no teu lugar…”, “Comigo foi parecido…”, “Deixa lá, isso passa…”, “Dou-te um conselho…”, “Não chores, não aguento ver ninguém triste…”. A maioria de nós, ao ouvir estas expressões, acaba por sentir que o seu sofrimento está a ser ignorado. Em todas estas lembranças, pude perceber a centralidade da relação estabelecida, quer fosse eu a escutante, a escutada ou ambas, em modo de mim comigo. Percebi então a escuta como indissociável do constructo relação, seja ela duradoura, pontual ou datada no tempo. Para haver escuta têm de existir pelo menos dois polos disponíveis para estabelecer um contacto. Da forma como ambos se apresentam ao jogo da escuta, dos apetrechos que levam, do conhecimento das regras do jogo, dependerá a qualidade e os frutos da escuta. Recordei visualmente o letreiro das passagens de nível, hoje caído em desuso, “Pare, Escute e Olhe – Em caso de espera prolongada, contacte…”. As associações mentais sucederam-se e a metáfora ganhou forma. Precisei de parar, para escutar (tomar consciência) as recordações e os sentimentos que elas evocaram e finalmente olhar (muito para além de ver) o que me permitiu (re)organizar e (re)arrumar as minhas ideias. De novo acabo por corroborar a centralidade da relação, neste caso, de mim comigo, neste difícil mas maravilhoso jogo de escutar, bem como a possibilidade de ‘em caso de espera prolongada’ saber que posso contactar, leia-se, dizer ‘estou aqui’ nesta encruzilhada, há alguém desse lado?…

No apeadeiro desta espera me surge uma definição de escuta. O espaço (a relação) onde é seguro tomar consciência (cair na conta), permitir-me sentir sem julgamento, sem preconceito, olhar-me com curiosidade para além das palavras ou imagens, com desejo de me (re)conhecer terreno sagrado, digno de ser amado e de poder amar.

O espaço (a relação) onde é seguro tomar consciência (cair na conta), permitir-me sentir sem julgamento, sem preconceito, olhar-me com curiosidade para além das palavras ou imagens, com desejo de me (re)conhecer terreno sagrado, digno de ser amado e de poder amar.

Também podemos perceber a escuta como um espaço onde de forma livre, no presente, podemos (re)ler o passado tendo como horizonte um futuro de esperança, realista, integrado e (re)descoberto a partir de dentro… o ponto de partida para que cada um se (re)centre, se (re)descubra, se re(defina), se aceite na sua (in)completude… uma atitude, uma disposição de vida, um descentramento do eu, um lugar onde observo e onde estou mergulhada. Eis-nos na verdadeira máxima da proximidade: ‘Tu podes ser tu diante de mim’. Para os cristãos, este é o modo como somos, já e agora, incondicionalmente amados por Deus. Este Amor dá-nos perspetiva, gera respeito, levanta-nos do túmulo, é ponto de partida para os (in)evitáveis (re)começos… dá-nos futuro porque se revela no presente promissor.

Neste ponto, arrisco dizer que a boa escuta interpessoal é uma arte, uma competência que se pode aprimorar, aprender e treinar. Carece de autoconhecimento (autoescuta), de autoestima, de (re)conhecimento das necessidades próprias, de (re)identificação das nossas áreas escutadas e não escutadas e de nos (re)descobrirmos desde sempre profundamente amados… só alguém que se (re)conhece escutado pode ir trilhando o caminho da verdadeira escuta.

A escuta não é sugerir, não é aconselhar, não é manter conversa, não é dar exemplos, não é resolver problemas, não é propor distrações, não é moralizar. É ouvir com todos os sentidos, é captar os sons entre as notas, é aceitar e fazer silêncios, é permitir que se faça eco. O escutante é caixa de ressonância, treina-se a saber (re)colocar o seu ‘eu’ em lugar seguro para que não venha falar de si ou, pior, procurar protagonismo e reconhecimento, dando-se incessantemente como exemplo. Podemos identificar os assomos do eu em pensamentos do tipo ‘preocupação com o que vamos responder/dizer’. Também os vemos nas interações que minimizam o nosso incómodo face ao sofrimento alheio (porque tocam o nosso próprio): “vais ver que isso passa…”, “já viste que há tantas pessoas a sofrer mais do que tu…”, “logo, logo arranjas outro namorado…”, “reza e confia que Deus tudo pode, vai ficar tudo bem…”, “pensa na tua mãe e no que ela sofre ao ver-te assim…”. Alguma vezes ainda o eu assume o papel de cavaleiro andante e entra em modo ‘resolver problemas dos outros’, encetando todo o tipo de diligências não pedidas e, regra geral, não queridas, que redundarão em fracasso e inevitável queixume… “depois de tudo o que eu fiz, imagina que ela(e) nem me agradeceu…”

Ao escutante cabe devolver, com ligeiras nuances, o que foi dito em forma de pergunta. Esta estratégia/técnica, assim resumida, poderia designar-se por ‘escuta ativa’. Permite que o escutado saia da espuma da onda onde tudo parece acontecer e se aventure no mar profundo, lugar onde tudo se joga. Não resistimos a exemplificá-la num pequeno diálogo entre o João (15 anos) e a sua mãe… Depois de falar no whatsapp com o seu melhor amigo, o João grita furiosamente:

“O Xavier é um estúpido de m…, estou farto dele, odeio-o!!…

Mãe: “João, parece-me perceber que o Xavier te tirou do sério?”,

João: “Sim, o que é que achas? Ele é horrível, envergonhou-me completamente…”,

Mãe: “Ele é horrível?… Estás a sentir-te envergonhado?

João: “Ele é mesmo um idiota de m… eu tinha-lhe pedido para não contar nada e agora já toda a gente sabe”

Mãe: “Percebo, ele traiu a tua confiança e estás com medo do que podem pensar?’.

João: “Pois e achas que é pouco? Ele foi dizer que eu gostava da Zita…”

Mãe: “Percebo, para além de muito zangado estás com medo de enfrentar a Zita?

João: “Sim é mais ou menos isso, mas agora não quero falar mais, mãe.”

Por contraponto, arriscamos as interações de uma mãe em modo comum (a que eu, em tempos, já fui e por vezes ainda sou…):

Mãe: “João, não usas essa linguagem cá em casa, não fales assim do Xavier, ele é tão amigo…”

João: “Não me chateies tu também…”

Mãe: “não te admito que me fales assim…”

João: “tou-me nas tintas para o que tu admites ou não… tu também és como ele…”,

Mãe: “tu não me faltas ao respeito… ficas sem net…”

João: “blá, blá, só sabes falas dessas m… do respeito… olha já que gostas assim tanto do Xavier porque é que não o adotas?

As diferenças são óbvias… como óbvio é o ponto de partida da escuta ativa para uma relação que progride ou para outra que, fixando-se nas palavras, aí morre e usa o respeito como chavão para calar: é a não relação…

O Ponto de Escuta é este lugar, que em tempos de pandemia, oferece escutantes. Em que Ponto se sente escutada(o)? ‘Em caso de espera prolongada’ arrisca ‘dizer-se’? O que nos une é muito mais do que o que nos divide…

Um outro aspeto muito importante da escuta é o modo como escutamos e com isto refiro-me à postura física. Como escutar é muito para além de ouvir, é importante captar os sinais corporais de quem escutamos desde logo para colher dissonâncias entre o que é verbalizado e o que é expresso pelo rosto, pelas mãos, pelo corpo em geral. Do mesmo modo o escutante deve estar todo ali… e todo é todo, sem distrações físicas, mantendo o contacto visual, (a tradução para o modo zoom é: com a câmara ligada…) encorajando o discurso, numa atitude descontraída…

Como em qualquer outro aspeto da natureza humana, também quando se trata de escutar e ser escutado há limites que nos transcendem. Nestes casos ter a humildade de aceitar que há assuntos e pessoas que para além da nossa escuta precisam de apoio especializado.

Aqui chegados, percebe-se a importância de se ser escutado, validado e o cuidado que exige essa escuta. O Ponto de Escuta é este lugar, que em tempos de pandemia, oferece escutantes. Em que Ponto se sente escutada(o)? ‘Em caso de espera prolongada’ arrisca ‘dizer-se’? O que nos une é muito mais do que o que nos divide…

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.