A escola, a sociedade e as ditas ideologias

Usaremos a objeção de consciência para as disciplinas de história, economia, filosofia por não serem suficientemente objetivas e darem demasiado espaço à discricionariedade do professor?

Usaremos a objeção de consciência para as disciplinas de história, economia, filosofia por não serem suficientemente objetivas e darem demasiado espaço à discricionariedade do professor?

O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.

 

Durante o mês de agosto, dezenas de ativistas foram detidos enquanto protestavam pacificamente nas ruas de Varsóvia em favor dos direitos de liberdade e igualdade da comunidade LGBTQ. O presidente Andrzej Duda, re-eleito no passado mês de Junho, considerou que tais protestos faziam parte uma “propaganda gay” que visa o ataque aos valores tradicionais, acrescentando que os gay rights são uma ideologia mais perigosa que o comunismo. Neste momento, o ministério da justiça polaco está a financiar um projeto de natureza penal que visa banir do espaço público supostos casos de violação da consciência, alegadamente perpetrados pela chamada ideologia LGBT.

Tenho acompanhado à distância a polémica em Portugal sobre a inclusão da nova disciplina de Educação para a Cidadania no plano curricular obrigatório do aluno. A partilha de opiniões, a já habitual partidarização do assunto, bem como as campanhas de recolha de assinaturas, fazem com que não necessite de introduzir a questão. Mas o que tem a cidadania em Portugal a ver com a detenção dos ativistas na Polónia?

Ideologia

Várias das críticas que tenho lido em relação à inserção desta disciplina afirmam que “abre portas à ideologia”. Hoje em dia, o uso da expressão “ideologia” tornou-se um lugar comum, de tal modo que ao invés de assumirmos que discordamos de tal uma dada ideia ou visão, limitamo-nos a chamar-lhe “ideologia” – mais ou menos ao estilo do presidente polaco. Poupa-nos o trabalho difícil de escutarmos verdadeiramente o ‘outro’, de perceber o lugar de onde fala (sim, porque todos nós falamos a partir de um contexto), e poupa-nos à ‘chatice’ de questionarmos e confrontarmos as nossas convicções e pressupostos, abrindo-os aos desafios que a realidade e a convivência social impõem.

Hoje em dia, o uso da expressão “ideologia” tornou-se um lugar comum, de tal modo que ao invés de assumirmos que discordamos de tal uma dada ideia ou visão, limitamo-nos a chamar-lhe “ideologia” – mais ou menos ao estilo do presidente polaco.

Mas afinal o que quer dizer ideologia? Confesso que de tantas vezes e contextos que ouço o termo ser aplicado, não tenho já a certeza se estamos todos a falar do mesmo. Tendo a usar a palavra para descrever uma ideia sobre realidade ou sobre uma pressuposta ordem das coisas com significado social e político. O termo surgiu durante o Iluminismo para classificar um conjunto de ideias que visavam promover determinados valores políticos (como por exemplo, a limitação do poder do Estado). Foi rapidamente desconsiderado por Napoleão como tratando-se de uma teoria sem qualquer relevância prática ou como um conjunto de afirmações dogmáticas sem qualquer credibilidade. Já para Marx, a ideologia tem um carácter perigoso: mesmo não sendo estritamente falsa, pode influenciar e manipular o olhar sobre realidade, em favor de um certo grupo de interesses. Contudo, ninguém parece negar que uma ideologia é, ou pode ser, motor de mudança, e essa mudança não é necessariamente negativa a priori. Até aqui não parece haver problema: ideias sobre a realidade que orientam e autorizam as nossas escolhas, perspetivas de como a sociedade deveria funcionar, ou seja, ideologias – quem não as tem? Por isto, custa-me perceber o que querem dizer quando afirmam que a Educação para a Cidadania abre as portas à ideologia…

Será que esta afirmação assenta no pressuposto de que todas as outras disciplinas que fazem parte do plano curricular do aluno partem de uma perspetiva neutra, consensual, e universal sobre a realidade e o mundo? Não acredito nessa neutralidade, e creio que convença pouca gente. Os professores frequentemente escolhem conteúdos, autores, narrativas, teorias, optam por modos diferentes de abordar esses conteúdos. Será que alguém acredita que os professores conseguem divorciar-se totalmente das suas visões quando preparam as suas aulas e programas? É claro que há disciplinas mais científicas e dependentes de métodos experimentais e de observação. E o que fazer com as ciências humanas? Usaremos a objeção de consciência para as disciplinas de história, economia, filosofia por não serem suficientemente objetivas e darem demasiado espaço à discricionariedade do professor? Por que razão tem a disciplina de Cidadania de ser diferente e sujeita a outro tipo de escrutínio? Condenar algo por medo que possa influenciar o nosso modo de pensar evoca memórias de um passado mais sombrio com tiques de autoritarismo e censura, que julgávamos ultrapassado.

Os professores frequentemente escolhem conteúdos, autores, narrativas, teorias, optam por modos diferentes de abordar esses conteúdos. Será que alguém acredita que os professores conseguem divorciar-se totalmente das suas visões quando preparam as suas aulas e programas?

O argumento da objeção de consciência é complexo e pode ser ambivalente. Seria interessante fazermos o seguinte exercício de imaginação. E se, ao invés da Educação para a Cidadania, estivéssemos a falar de uma espécie de Introdução ao estudo das Religiões, um tema não desligado da própria cidadania, dedicada à reflexão crítica do papel e impacto da religião na sociedade – obviamente não com intuitos proselitistas. Quais seriam os argumentos trocados? Seria também censurada por ferir a consciência ou relegada para a esfera privada, em nome de um certo laicismo? Será que muitos dos defensores acérrimos da “Educação para Cidadania” não estariam amanhã a recolher assinaturas para excluir essa eventual disciplina do ensino público?

“Educar cabe à família”

Tem sido uma afirmação usada contra a disciplina de Cidadania. O argumento baseia-se na ideia que a escola serve para transmitir conteúdos (instruir, como afirmam alguns) e não para educar, relegando conteúdos do foro ético e moral para a esfera privada. Uma outra dicotomia que me custa perceber… Que modelo de escola estará aqui em causa? O filósofo da educação Paulo Freire chamou a este modelo “educação bancária,” onde o aluno é visto como um recipiente passivo de ‘depósitos’ de conteúdos pré-estabelecidos, ao invés de se tornar um participante ativo no processo educativo, que procura, acima de tudo, ajudar o aluno a compreender e atuar na realidade envolvente através do desenvolvimento de uma visão crítica sobre a mesma.

A escola não é, pois, um mero lugar para o depósito de conteúdos. A par da transmissão e produção de conhecimentos, a escola deve procurar preparar o aluno para viver em sociedade de uma forma justa e informada. Será que a Educação para Cidadania não cumpre estes dois objetivos? É claro que esta disciplina, como outras, são vulneráveis aos valores e ideais dos professores e dos autores dos programas. Mas um bom professor não é aquele que pretende formatar os seus alunos, mas aquele que dá ferramentas para os alunos aprenderem a pensar criticamente por si mesmos e que vibra quando os alunos formulam as suas próprias conclusões. Por isso, importa não confundir a disciplina com quem a leciona ou a programa. Trata-se de questões diversas e resolvem-se de maneira diferente. Ao invés de queremos abolir ou usar a objeção de consciência para esta disciplina, talvez devêssemos falar sobre como poderia ser leccionada, sobre a preparação e formação dos professores, e sobre como desenvolver o pensamento crítico nos alunos.

Como escreveu a professora Margarida Corsino, “reduzir a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento às questões de género, mesmo sendo um tema de grande relevância, é pouco. Muito pouco.” Apesar de tudo, a realidade mostra que estas questões são urgentes e atuais (basta ver os números referentes à violência doméstica e violência no namoro). Além das razões enumeradas pela professora Corsino que, a partir da sua própria realidade, explica por que faz sentido esta disciplina, acrescento uma outra: talvez prepare os alunos para olharem criticamente para os eventos como os que aconteceram recentemente na Polónia, para que não venham a repetir-se por cá.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.