“O Natal é quando o Homem quer” – seguramente já teremos escutado esta frase vezes sem conta. Mas é mentira! E não o lamento dizer: não, o Natal não é quando o Homem quer! Aquilo que o “espírito Natalício” nos induz a fazer, isso, sim, é quando o Homem quer: a solidariedade para com aqueles que nos rodeiam que esta quadra desperta, essa pode (e deve!) existir quando o Homem quer; a caridade e atenção aos que mais precisam, aos abandonados, aos últimos, aos pequeninos, aos pobres, aos idosos ou aos sem-abrigo a que este tempo nos impulsiona, essas podem (e devem!) ter lugar quando o Homem quer; a união da família e a presença juntos dos que mais nos querem bem a que estes dias nos movem, essas, sim, podem (e devem!) acontecer todo o ano. Mas o Natal?! Não, o Natal não é quando o Homem quer: o Natal é quando Deus quer!
Chegamos à Solenidade da Epifania do Senhor, a chegada dos Reis ao presépio, e, com ela, abeiramo-nos do final do tempo do Natal. Trata-se da celebração da manifestação de Deus na pobreza de uma manjedoura, na mais inesperada circunstância, diante de pobres e ricos, de pastores e sábios, de locais e forasteiros. Todos se abeiraram do mesmo lugar interpelados por algo que os fez sair da previsibilidade das suas vidas, para a imprevisibilidade do encontro com Deus. É algo que se repete também connosco, também nas nossas vidas: por via de “estrelas de Belém” ou de “Anjos”, todos já nalgum momento fomos inesperadamente conduzidos para a surpresa da visita de Deus que, onde menos esperávamos, veio ao nosso encontro – de facto, a criatividade de Deus não cessa de nos surpreender.
O episódio da chegada dos pastores e dos magos junto de um Menino envolto em panos e deitado em palhas inspirou a arte ao longo da história do cristianismo.
O episódio da chegada dos pastores e dos magos junto de um Menino envolto em panos e deitado em palhas inspirou a arte ao longo da história do cristianismo. Muitos foram os que se enamoraram por este quadro e procuraram descrevê-lo com a sua arte: a pintura, a escultura, a literatura, o teatro ou cinema, e, claro, a música. Foram vários os compositores que desejaram descrever esta cena pelo idioma da música, ou transmitir a sua própria experiência ao contemplar estas personagens através da sua arte. Para fechar este ciclo de artigos, proponho uma breve visita a duas obras de dois compositores que, separados por um século, nos poderão ajudar a contemplar algum pormenor deste mistério.
A primeira obra que proponho hoje é O Magnum Mysterium (1994), da autoria de Morten Lauridsen (Estados Unidos da América, 1943). O texto é retirado de um responsório do ofício de matinas, pelo que faz parte da liturgia da Igreja há vários séculos. Trata-se de um hino de admiração diante do presépio de Belém: «Ó admirável mistério e maravilhoso sacramento, que animais vejam o Senhor nascido, deitado numa manjedoura. Feliz é a Virgem cujo seio se encontrou digno de carregar o Senhor Jesus Cristo». Existem inúmeras versões corais (e não só) deste texto, nas quais cada compositor procura realçar a mesma admiração. Neste caso, Lauridsen, escrevendo para coro a quatro vozes mistas (que se chegam a dividir em oito), realça, desde logo pela repetição, a expressão “Ó Grande Mistério”, talvez sublinhando esta grandeza que nos exige o espanto. No centro da peça, o coral encontra a sua apoteose após se referir pela primeira vez a Cristo (minuto 3’32), momento em que se fundem Aleluias com o Magnum Mysterium, conferindo grande nobreza ao texto. Além disso, há em toda a peça uma certa doçura que envolve os nossos afectos. Com a ajuda dela, vale a pena visitar, pelo uso da imaginação, a gruta de Belém.
Por fim, proponho um Christmas Carol que nos relata a visita dos Magos, contada na primeira pessoa: We Three Kings, escrita e musicada por John Henry Hopkins Jr. (Estados Unidos da Améria, 1820-1891), aqui arranjada, para o coro do Kings College, por Martin Neary (Reino Unido, 1940). O texto procura, em verso, dramatizar a viagem dos Magos: a primeira e a última estrofes colocadas na boca dos três reis; as demais cantadas por cada um deles, sempre descrevendo seus presentes. O refrão, por outro lado, dirige-se à Estrela que seguem: «Ó Estrela de Espanto, Estrela da Noite (…) guia-nos com a Tua perfeita Luz». Escute-se esta maravilhosa interpretação, particularmente a explosão da quinta estrofe, quando o coro se une aos solistas num convite ao louvor.
Com a chegada dos Magos a Belém termina a nossa viagem “num acorde”. Com ela procurei que, com um olhar espiritual, pudéssemos descobrir alguns tesouros da música sacra, da qual somos de algum modo herdeiros. O Natal aproxima-se do final: porque não é quando o Homem quer – e talvez para nos recordar como Deus decidiu fazer-Se Menino num tempo concreto da história – tem um início e tem um fim. Mas ainda que o Natal não seja sempre que queremos, há sempre alguma “estrela” que nos aponta o caminho para O encontrar. A nós cabe-nos não cessar de desejar percorrer esse caminho.
Despeço-me com o Adeste Fideles, muito provavelmente da autoria de D. João IV (Portugal, 1604-1656), brilhantemente arranjada por Sir David Willcocks (Reino Unido, 1919-2051). Bom Ano para todos!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.