A Bíblia: quando ler é escutar

Toda a nossa ação deveria ser um reflexo desta escuta atenta da Palavra, toda a nossa ação deveria brotar de um coração que se deixa inundar da Palavra e que se torna transparência daquilo que escutou.

Toda a nossa ação deveria ser um reflexo desta escuta atenta da Palavra, toda a nossa ação deveria brotar de um coração que se deixa inundar da Palavra e que se torna transparência daquilo que escutou.

Neste breve texto tenho a ousadia de escrever alguma coisa sobre a Bíblia. Digo ousadia porque diante desta colecção de livros a que chamamos Bíblia sinto-me pequeno, como uma criança que se senta na sua carteira no primeiro dia de aulas, e incompetente, como alguém que se senta para fazer um exame sem ter estudado.

Para começar temos que dar dois passos introdutórios, ambos contidos numa pequena frase da constituição dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II que diz: “Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana” (DV12). O primeiro passo é, então, deixarmo-nos surpreender por um Deus que fala, que quer falar, que tem alguma coisa a dizer e que o diz por meio de linguagem humana. O segundo passo é reconhecermo-nos escutadores desta Palavra proferida por Deus. De facto, ao ser humano cabe o escutar, não o ver: nós somos fundamentalmente escutadores. Dados estes dois “pequenos” passos podemos prosseguir.

Não subestimemos a palavra e o seu valor. Ela esconde em si muito mais do que à partida poderá parecer porque nenhuma palavra é neutra. Ao revelar o mundo por meio da palavra, o homem não apenas revela mas revela-se, descobre-se, dá-se a conhecer a si mesmo e toma consciência de si próprio. Mas, para que se torne num «eu», precisa de um «tu», alguém que lhe esteja defronte, que tome a palavra e lhe diga “tu existes”. Todos nós buscamos este «tu», este «rosto», e vivemos nesta peregrinação em direcção a ele: a viagem da palavra é um cobrir a distância que nos separa do «tu», que procura este encontro. A palavra não deixa indiferente quem a escuta, tem uma força que move, que abre esperanças, que é apelo e que, por isto, para ser verdadeira, deve ser responsável. E se faz esta peregrinação com verdade, então chega ao seu cumprimento: torna-se instrumento de comunhão. De facto, a palavra só é autêntica no diálogo e ao falarmos de diálogo não podemos nunca referir-nos a posse, a captura, a conquista – a palavra verdadeira não quer tomar posse de nada – referimo-nos sim a uma procura da verdade no outro, como uma estrada que se percorre juntos. A dimensão mais profunda da palavra não é de posse mas de pertença.

Assim, ao mesmo tempo que deixamos que a Bíblia nos fale e nos seja próxima, devemos reconhecer e respeitar a distância que se impõe entre nós e o Outro.

Mas porquê este grande pórtico sobre a palavra humana? Porque seja no Antigo Testamento, na sua Palavra divina, seja no Novo Testamento, na Palavra divina feita carne, encontramos a revelação, o apelo e a comunhão que encontramos na palavra humana – “…falou por meio dos homens e à maneira humana.” É evidente que as repercussões na leitura da Bíblia que brotam deste modo de encarar a Palavra são enormes:

Em primeiro lugar, percebemos que ler a Bíblia supõe sempre um diálogo e, deste modo, a Bíblia é-nos próxima porque fala a cada um, porque existe uma afinidade e todos sentimos esta afinidade, mas, ao mesmo tempo, é-nos distante, porque estamos defronte ao outro e o encontro supõe que o outro seja outro de mim. Assim, ao mesmo tempo que deixamos que a Bíblia nos fale e nos seja próxima, devemos reconhecer e respeitar a distância que se impõe entre nós e o Outro. E, por isso, não podemos fazer um uso arbitrário da Palavra tendo em vista apenas os nossos próprios objectivos. Não é legítimo, portanto, interpretá-la como sentimos ou como queremos. Quando abrimos a Bíblia temos Alguém diante de nós e, por isso, temos de o reconhecer como Outro, não manipulável, que não serve os nossos objectivos, nem simplesmente compactua com aquilo que queremos ouvir.

Mas é verdade também que uma escuta adequada da Bíblia requer um esforço de interpretação porque esta distância não se situa somente entre aquele que escuta e Aquele que fala, situa-se também nos muitos anos que nos separam do texto escrito. E assim como não é legítimo interpretar a palavra apenas segundo a nossa intuição ou sentimento, também não podemos simplesmente transportá-la directamente para os dias de hoje sem respeitar esta segunda distância. Conhecer a história do texto, as suas fontes, os eventos narrados, o contexto cultural em que foi escrito, é imprescindível para compreender toda a profundidade do que é proclamado. A Igreja, fiel depositária desta Palavra, ao longo da sua história e da sua experiência de fé, fez e faz este esforço de interpretação que, em última instância, nos reúne em comunidade à volta da mesma Palavra e do mesmo Espírito. A Igreja, fiel transmissora desta Palavra, tem como missão fundamental, sem a qual não seria Igreja, anunciar esta Palavra a todo o mundo.

A verdade da mensagem bíblica repousa, assim, na verdade da existência.

Por fim, a Bíblia exige uma leitura pragmática, ou seja, a Palavra pronunciada procura uma mudança ou uma ação. Por exemplo, quando digo “mãe” não estou apenas a proferir uma palavra, estou a dizer que quero que a minha mãe seja, de facto, mãe. Quando a Bíblia diz que Deus é verdadeiro quer significar que Deus se compromete, que Deus entra na verdade do homem, que Deus é verdadeiro quando se implica. A verdade bíblica não é uma verdade neutra mas uma verdade em diálogo: Deus é verdadeiro porque o homem se pode confiar, porque pode fundar a sua vida em Deus, porque sabe que n’Ele não há engano nem mentira. Dizer “Ámen” é dizer isto mesmo, é assentarmos os nossos alicerces sobre uma rocha firme que não vacila independentemente da força da tempestade. Assim, a leitura da Bíblia compromete-nos porque o seu fim não é dar-nos uma série de conteúdos mas tornar-nos comprometidos num projecto, numa verdade que exige um compromisso. Por isso, há um sentido ético na Bíblia, uma força pragmática que nos impele a uma conversão porque oferece uma compreensão do homem e da sua existência: diz-nos como devemos viver diante de Deus. A verdade da mensagem bíblica repousa, assim, na verdade da existência.

Termino fazendo um apelo à escuta. O importante é escutar este Deus que nos fala, que nos interpela, que tem algo a dizer-nos. Toda a nossa ação deveria ser um reflexo desta escuta atenta da Palavra, toda a nossa ação deveria brotar de um coração que se deixa inundar da Palavra e que se torna transparência daquilo que escutou, que se deixa sobretudo invadir e transformar pela Palavra-feita-carne, Jesus Cristo.

Texto originalmente publicado no site essejota.net da pastoral juvenil dos jesuítas. Este site já não está disponível.

Fotografia de João Ferrand

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.