1440 minutos para CUIDAR em cada dia, de nós e dos outros

Em alguns contextos familiares, podemos não estar a perceber que precisamos de ajuda. Que deixámos de ser os pais que sonhámos ser. Que deixámos de ser atentos, amorosos, respeitadores, construtivos nas relações com filhos e outros adultos.

Em alguns contextos familiares, podemos não estar a perceber que precisamos de ajuda. Que deixámos de ser os pais que sonhámos ser. Que deixámos de ser atentos, amorosos, respeitadores, construtivos nas relações com filhos e outros adultos.

Faz já um ano que a vida, como a conhecíamos, mudou profundamente. O contacto com a COVID19 tornou-se uma realidade diária. Para quase todos, têm sido tempos difíceis. Para alguns, têm sido tempos muito difíceis. Sabemos que a perceção de ‘perda’ e de ‘faltas’ são das maiores fontes do sofrimento humano, e a verdade é que todos nós – neste cenário de pandemia – sentimos que perdemos alguma coisa. Ou sentimos que algumas coisas, talvez até antes não valorizadas, nos fazem falta. Nos fazem muita falta. Faz-nos falta a perceção de segurança nas nossas rotinas e a espontaneidade dos encontros, faz-nos falta a saúde, a capacidade financeira ou a perceção de (algum) controlo sobre a vida, faz-nos falta a expressão corporal dos afetos e o contacto próximo com o mundo, faz-nos falta aquele tempo que era só nosso quando saíamos do trabalho e, ainda que refilando com a hora de ponta no caminho para casa, transitávamos (no tempo e no espaço) de uma para outra parcela do nosso mundo.

Pode parecer-nos que sim, mas os dias não têm sido todos iguais. Já acreditámos que ia “ficar tudo bem” e já sentimos ser os piores do mundo na luta contra o vírus. Já vivemos o medo, mas também a emoção de estarmos todos no mesmo barco… Já vivemos a revolta, a esperança, o descontrole, a comoção, a incerteza… Sentimos hoje na pele como os dias podem ser desafiantes quando – entre quatro paredes – somos chamados a permanecer apenas com os nossos mais próximos e a dar conta de tudo o que há para fazer – os filhos e marido/mulher, as aulas online, o nosso trabalho, os prazos para cumprir, as refeições, a roupa e casa para cuidar, as birras (e não só das crianças), a saudade… Outros de nós vivem desafios diferentes, não melhores, seja porque vivem sós, seja porque o seu trabalho não se pode fazer remotamente e continuam por isso numa rotina diária que contempla o espaço exterior e todos os reptos associados.

Neste cenário, cada um de nós tende a reagir com tudo aquilo que traz dentro de si e, sabemos, nem sempre como gostaria. Reagimos com o que somos, com o que temos, com a nossa própria dor – que ocupa espaço dentro de nós – onde cabem tantas emoções ou sentimentos difíceis.

Por estes dias, isolados dum Mundo que estimula e simultaneamente inquieta, afastados de outros que também urge abraçar, muitos vivem confinados a 1440 minutos diários entre quatro paredes, porventura alargadas ao sol de uma varanda ou a uns breves e contidos passos nas ruas próximas. Situações adversas e stressantes como esta podem ter um impacto relevante na nossa saúde mental. Podem particularmente agravar problemas que já existiam, exacerbando vulnerabilidades mais ou menos contidas. Neste cenário, cada um de nós tende a reagir com tudo aquilo que traz dentro de si e, sabemos, nem sempre como gostaria. Reagimos com o que somos, com o que temos, com a nossa própria dor – que ocupa espaço dentro de nós – onde cabem tantas emoções ou sentimentos difíceis.

Os estudos realizados no último ano atestam o forte impacto psicológico da pandemia e o aumento significativo de queixas de ansiedade, de depressão e outras perturbações. Sendo verdade que – até certo ponto – este nosso sofrimento, com tonalidades mais depressivas ou ansiosas, corresponde à tentativa de reagirmos e nos adaptarmos à situação, o que é fundamental para mantermos a saúde mental, é também verdade que pode ser ténue a fronteira que separa tudo isto de outras situações – essas sim, graves – em que não estamos a conseguir cuidar de nós nem dos que nos rodeiam. Esta fina linha entre os nossos equilíbrios e desequilíbrios pode provavelmente explicar o aumento dos números de abusos e maus-tratos que se sabe estarem a ocorrer nas nossas casas. Sabemos que, já desde o primeiro confinamento, diminuíram muito as queixas oficiais de maus-tratos, mas sabemos todos que são números enganadores. Pior que isso, são números que alertam para a gravidade desta “solidão familiar” que estamos todos a viver. O fecho das escolas e a falta de contacto regular de cada um com as suas redes de proximidade, impede de facto que muitas situações de “não cuidado” sejam detetadas e sinalizadas. Em alguns contextos familiares, podemos não estar a perceber que precisamos de ajuda. Que deixámos de ser os pais que sonhámos ser. Que deixámos de ser atentos, amorosos, respeitadores, construtivos nas nossas relações com os filhos ou com os outros adultos. Que deixámos de ser o rosto da esperança, do conforto e da proteção, para sermos o rosto da alienação, da ira, da agressividade, ou do abandono.

É verdade que não sabemos nada sobre o dia de amanhã, mas precisamos de saber que o amor e o cuidado – ao contrário de tantas outras coisas – não foram cancelados. Sejamos muito corajosos e saibamos pedir ajuda se nos encontramos assim, neste desequilíbrio. Alguém poderá, sempre, cuidar de nós.

Ainda que entre quatro paredes, 1440 minutos são-nos diariamente oferecidos. E importa que sejam todos minutos para cuidar, de nós e dos outros. Os nossos filhos, os nossos pais, maridos ou mulheres, esperam de nós esse olhar atento. Todos precisamos desse olhar que cuida e, acredito, devemos todos isso uns aos outros. É verdade que a tempestade passará, porque todas passam. É verdade que não sabemos nada sobre o dia de amanhã, mas precisamos de saber que o amor e o cuidado – ao contrário de tantas outras coisas – não foram cancelados. Sejamos muito corajosos e saibamos pedir ajuda se nos encontramos assim, neste desequilíbrio. Alguém poderá, sempre, cuidar de nós.

 

PS – a autora é uma das formadoras do workshop “Como bem proteger e cuidar”, promovido pelo projeto CUIDAR – Para uma cultura de proteção e bom trato de crianças e jovens, que decorrerá entre 4 e 18 de maio. Inscrições aqui.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.