Quando o tema é a justiça social, o primeiro pensamento que me surge é o título do livro do P. Vasco Pinto Magalhães, sj: Não Há Soluções, Há caminhos. É verdade que esta indicação se pode aplicar a vários âmbitos do nosso dia a dia, mas parece-me que, no que respeita ao tema da justiça social, a adequação é perfeita. Não há soluções escritas num manual de instruções, mas há possibilidades e em cada uma delas um caminho que pode ser percorrido.
Ao escrever este artigo, apercebo-me de que a minha adolescência foi passada a ver muitos filmes que me falavam de (in)justiça. Filmes verídicos e impactantes que, certamente, condicionaram a forma como olho o mundo. É curioso perceber que é aí que tenho pela primeira vez consciência do conceito de justiça como direito de igualdade e universalidade (Marshall, 1967). Isto é, todos os indivíduos são iguais perante a lei e isso deve garantir que temos os mesmos acessos e oportunidades para desenvolver as nossas capacidades.
Não sei se pelo meu percurso académico, se pela maturidade que a idade vai exigindo ou pela vida que se vai desenrolando e nos vai confrontando com diferentes situações (ou, talvez, pela mistura disto tudo), a justiça social foi um conceito que se foi desmontando e complexificando. Hoje, diria à Carla de 15 anos que justiça social é igualdade e universalidade, mas é muito mais complexo do que isso. Cabe dentro do conceito a desigualdade, a discriminação, a pobreza, a exclusão e cabe até a economia, a política e a cultura (Fraser, 2009).
Esta complexidade surge porque as situações que geram injustiça são, também elas, complexas, com origens múltiplas e entrelaçadas, e combatem-se com a garantia de equidade, com a ação que procura reestruturar o modo de funcionamento da sociedade e o modo como nos vemos uns aos outros. Não há soluções, há caminhos… Um dos caminhos que me parece fundamental é o do olhar. Ver o outro e o seu contexto tal como são comove-me pela sua complexidade, por parecer uma tarefa enganadoramente fácil. As nossas experiências de vida e o nosso contexto social são as lentes que filtram a perceção do outro, por isso torna-se um exercício complexo ver o outro exatamente como é e como se encontra, confiar nele e reconhecer a dignidade e a compaixão que lhe são devidas. Este é um caminho de crescimento interior, que talvez leve a vida toda: compreender a realidade do outro, sem que seja só uma ideia vaga no meu pensamento ou algo que me chega pelos outros sem que seja questionado, desconstruído e mastigado. Um olhar que só se vai conseguindo se existir relação e proximidade.
As nossas experiências de vida e o nosso contexto social são as lentes que filtram a perceção do outro, por isso torna-se um exercício complexo ver o outro exatamente como é e como se encontra, confiar nele e reconhecer a dignidade e a compaixão que lhe são devidas.
No meu dia a dia, é-me pedido que vá acompanhando crianças e jovens no seu crescimento, chamando sempre a atenção para o facto de o outro ser igual a mim e merecer exatamente o mesmo respeito e valor. A experiência de alguns anos mostra-me que educar e ajudar a desenvolver a nossa dimensão social, de forma transformadora, só se consegue se existir contacto direto e regular, se existir uma vontade genuína de conhecer o outro.
José Ricardo, educador social e membro da direção do Centro Social de Soutelo afirma, numa entrevista, que a justiça social não é conseguida «porque somos educados a desconfiar dos outros. […] Não aceitamos partilhar as nossas capacidades com outros que, pelas mais variadas razões, não conseguem os mesmos objetivos». Correndo o risco de ser muito ousada, diria ao José Ricardo que o caminho para a justiça social não está terminado porque somos pouco educados para confiar, mas também para olhar e ouvir. A relação e a proximidade promovem momentos em que se olha a outra realidade e se compreende o porquê de ela ser daquele modo, momentos em que nos imaginamos a viver noutro contexto, o que abre oportunidades para questionar sem julgar ou atribuir culpas. A relação próxima ensina a ouvir e devolve ao outro a dignidade que um primeiro olhar, sem querer, retira.
No Colégio de S. João de Brito, o Serviço Social e de Voluntariado desafia as turmas a desenvolverem projetos sociais e, para os alunos do 9.º ao 12.º ano oferece a possibilidade de ter um voluntariado semanal. Fruto deste trabalho surgem muitas conversas formais e informais sobre voluntariado. É nestas conversas que, cada vez mais, tenho certezas que a relação é a chave de tudo isto. Continua a fascinar-me ouvir que o voluntariado proporciona uma oportunidade de olhar o mundo, de questionar, de desconstruir, de ter vontade de o transformar, de desfazer preconceitos, de dar luz sobre vocação, de gerar empatia e levar a pensar em como seria se fossem os seus mais próximos a viver aquela situação. Em cada conversa é fácil perceber que há um olhar que se renova, uma esperança que cresce e uma alegria profunda em perceber como as relações mudam vidas, nos tornam mais humanos e mais capazes de acolher. Vou lembrar-me a vida toda do dia em que a M (vou tratá-la assim) entrou no meu gabinete com muitos medos e incertezas sobre o voluntariado com pessoas idosas: “E se eu não for útil? E se não tivermos tema de conversa? E se a fragilidade da vida, nessa fase, me impressionar e não souber lidar? E se não gostarem da nossa presença?”. Hoje, quatro meses depois, a M voltou a puxar o tema: queria só informar-me que é o melhor voluntariado que alguma vez fez e que tem consciência de que aquele é o momento da semana para o qual os idosos estão mais animados e se sentem mais ativos.
O Papa Francisco, dirigindo-se aos participantes da Cúpula Mundial do Trabalho 2023, diz que devemos basear a justiça social em «três pilares: dignidade humana, solidariedade e subsidiariedade». Entendendo a dignidade como a atribuição a qualquer ser humano do valor e do respeito que merece, simplesmente pela sua condição humana e voltando a ser ousada, trocaria a simbologia dos pilares por a de uma árvore. A árvore da justiça social assenta as suas raízes no olhar e na relação, que sustentam o tronco e os ramos da dignidade, cujos frutos só podem ser a solidariedade e a subsidiariedade.
Não há soluções, há caminhos… E um deles pode ser educar para olhar, ouvir e confiar. Há que lançar sementes que criem oportunidades de sermos para os outros. Não me iludo: este é um longo caminho que levará a vida toda a traçar ou a limar. Não há nada de errado nisso. Os últimos anos foram-me ensinando que crescer e amadurecer leva uma vida inteira e que o importante é não perder a coragem e a paciência de fazer caminho. Muitos são os momentos em que paro e volto a tomar consciência: Educar____ (para servir, para os outros, para a justiça social, para a relação – podemos escolher o que nos for mais conveniente colocar no espaço em branco) é dos caminhos mais longos e mais bonitos de se traçar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.