“Que estranha forma de vida tem este meu coração…” Assim cantam os versos de um conhecido fado e assim podemos começar a falar de um tema que parece ser doutra natureza: a consagração religiosa. É certo que, para muitos, a vocação religiosa parece um fado, um arbitrário ditame do destino… mas será mesmo assim? Como pode nascer em alguém o desejo de se consagrar a Deus?
Antes de mais, nasce uma vontade de seguir Jesus Cristo e estar com Ele, vontade que é frágil e forte como a semente de uma árvore de grande porte. A vocação tem a sua origem num encontro que chama a amar. E de muitos modos se faz sentir a voz e a presença d’Aquele “que o meu coração ama” (Ct 3,4): através da oração sincera, através da palavra ou do gesto de alguém, através da celebração da Liturgia ou da escuta da Palavra, através de uma leitura que desafia ou da contemplação do Amor criador e salvador, através de um apelo íntimo que procura resposta ou do desengano com as futilidades e injustiças da vida, através do encontro com os mais pobres ou com uma comunidade viva, através da experiência de se sentir amado, perdoado, resgatado…
Mas não é essa também a experiência de tantos cristãos que aprofundam a sua fé? Claro que sim. Tudo isto é simplesmente o sinal de que a graça do Baptismo está a tomar conta da vida dessa pessoa! É sinal de um recentrar no essencial, a que todos somos chamados: viver no Amor como Filhos de Deus, membros de Cristo, templos do Espírito Santo. A originalidade da vocação religiosa consiste em que – ao ouvir “vem e segue-me” – a pessoa se percebe chamada a “imitar”, numa comunidade de discípulos e apóstolos, a forma de vida de Jesus pobre, casto e obediente ao amor do Pai. Na verdade, essa pessoa reconhece-se consagrada e, ao perguntar-se pelo porquê de tudo, encontra apenas uma misteriosa razão: “Foi por vontade de Deus”.
A originalidade da vocação religiosa consiste em que – ao ouvir “vem e segue-me” – a pessoa se percebe chamada a “imitar”, numa comunidade de discípulos e apóstolos, a forma de vida de Jesus pobre, casto e obediente ao amor do Pai.
Quer dizer que a vontade de Deus tem algo a ver com “pobreza, castidade e obediência”? Se olhamos com atenção para a vida de Jesus e para o caminho que Ele nos propõe, constatamos que não podemos ser seus discípulos sem uma justa relação com os bens materiais, pois “ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). Encontramos também um apelo a viver de modo ordenado a dimensão afectiva e sexual, expressão da nossa capacidade de amar: “bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). Por último, reconhecemos em Jesus uma relação com o Pai que o leva a viver totalmente confiado à sua vontade amorosa, mesmo quando esta se torna exigente, pois “o meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que me enviou” (Jo 4,34). Pobreza, castidade e obediência são os chamados “conselhos evangélicos”, propostos a todos os crentes à medida da sua idade, estado de vida, percurso de fé… O que distingue a vocação consagrada é o chamamento a “professar os conselhos evangélicos”. Isso quer dizer que uma pessoa se compromete publicamente diante de Deus e da Igreja com um modo concreto de viver a relação com os bens, a relação afectiva com os outros e a relação com a sua própria liberdade. A grande motivação para tal compromisso é o apelo interior a unir e conformar a própria vida à vida de Jesus Cristo.
Pelo voto de pobreza o consagrado deseja imitar Jesus, para quem a única riqueza é o amor do Pai, não possuindo nada de próprio e dependendo da comunidade no uso dos bens. Compromete-se com um estilo de vida simples, marcado pela partilha e pela proximidade aos mais pobres. No voto de castidade oferece-se a Deus a capacidade de amar. A renúncia à expressão genital da sexualidade, e a relações exclusivas, procura abrir o coração – à maneira de Jesus – a um amor disponível para servir e acolher a todos: um coração centrado no amor do Pai que envia aos irmãos e irmãs. O voto de obediência é um acto de confiança pelo qual se deixa nas mãos de Deus (através da Igreja) a condução do próprio destino. Obedecer é ouvir com atenção e seguir com disponibilidade a quem se ouve… Só Deus é digno de receber bem tão precioso como a liberdade humana e, paradoxalmente, esta atinge o seu auge quando é oferecida. A obediência religiosa não se fundamenta na subserviência ou eficiência, mas antes num acto de fé na Igreja como Corpo de Cristo.
Os votos religiosos são “escândalo” para o mundo, pois trazem consigo uma dimensão contra-cultural. Se ouvirmos os “mestres da suspeita” – Marx, Freud e Nietzsche, referências fulcrais do nosso tempo – eles nos dirão que o fundamento de tudo são as relações de interesse económico, que tudo é líbido, que tudo é vontade de poder e de fruir. Se é verdade que estas dimensões são incontornáveis, elas não são “tudo”. Pela fé acreditamos que o princípio e fundamento mais verdadeiro é o Amor de Deus que nos cria e salva, para podermos “em tudo amar e servir” (Exercícios Espirituais, 233). Os votos são frequentemente percepcionados como uma mera renúncia: a ter bens, a casar, a ser autónomo. Porém, para quem se sente chamado, as motivações positivas que acima referi são as que de verdade contam. A grande “prova” do chamamento é exactamente esta: aquilo que humanamente traria angústia, medo e preocupação torna-se fonte de uma alegria, paz e consolação pascais, pelo poder do Espírito Santo. Conclui-se então que os votos não são “coisa do passado”, mas expressão actual da vida em Cristo.
A vida consagrada só se entende bem num caminho de comunhão com o carisma laical e com os que servem a Igreja através do sacramento da ordem. Sendo a vocação um chamamento gratuito da parte de Deus, nenhum caminho é mais valioso do que outro. O que tem valor é que cada um possa responder a Deus, a partir da vocação comum à santidade!
Consciente dessa actualidade, a Igreja requer à vida consagrada uma sã adequação aos tempos, sob o impulso do Espírito Santo e a orientação do Magistério. O Concílio Vaticano II determina que “a conveniente renovação da vida religiosa compreende não só um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã e à genuína inspiração dos Institutos mas também a sua adaptação às novas condições dos tempos” (Perfectae Caritatis, 2). O mesmo Concílio ensina que a verdadeira Tradição é aquela que sabe pôr de lado “prescrições obsoletas” (idem, 3) para se centrar no essencial.
Cada família religiosa, a partir da graça concedida por Deus ao seu fundador/a, tem uma forma concreta de viver os eixos vitais da pobreza, castidade e obediência. Inserida no mistério de comunhão que é a Igreja, deve contribuir com os outros carismas para a edificação do Corpo de Cristo (1 Cor 12). Por isso, a vida consagrada só se entende bem num caminho de comunhão com o carisma laical e com os que servem a Igreja através do sacramento da ordem. Sendo a vocação um chamamento gratuito da parte de Deus, nenhum caminho é mais valioso do que outro. O que tem valor é que cada um possa responder a Deus, a partir da vocação comum à santidade! Este alto ideal não isenta a vida religiosa (nem as outras vocações eclesiais) das contradições próprias qualquer peregrinação humana. Também isso é cantado no fado que cito. A Paz e o Amor plenos virão apenas quando encontrarmos o Senhor “tal como Ele é” (1 Jo 3,2).
Muitos dirão: “é impossível cumprir os votos religiosos”. Nem faltam tristes e dolorosos exemplos – recentes ou antigos – para o demonstrar! Sim, apenas com as forças humanas é impossível. Surpreendentemente, tudo se torna possível quando nos entregamos – com paciência e desejo de conversão – “Àquele que pode fazer imensamente mais do que pedimos ou imaginamos, de acordo com seu poder que eficazmente exerce em nós” (Ef 3,20). A vida consagrada é, portanto, uma vida a partir da Fé no poder de Cristo ressuscitado, e procura ser no mundo – com tantas limitações! – testemunho e “antecipação” da vida ressuscitada e transfigurada em Cristo. Tudo o que foi dito torna patente que a essência da consagração religiosa não radica no “fazer”. Tem antes a ver com “ser enviado/a”, à maneira de Cristo que reza, que encontra os homens e mulheres do seu tempo anunciando a Palavra, ensinando, curando e perdoando, mas também alegrando-se ou simplesmente “estando” e partilhando a mesa… Quem se consagra deixa-se levar por um “coração independente, coração que não comando” até ao Coração de Cristo, que mais não quer do que fazer chegar o Amor do Pai ao coração do nosso mundo. “Teimosamente sangrando”, como diz a canção.
O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.