A visita
De passagem pelo Porto fui a Serralves ver a exposição que tanta polémica estava a suscitar. Uma sexta-feira à tarde, um dia lindo que só não era de verão porque o sol baixo denunciava claramente o outono. José Maria Brito, sjjosemariabritoE claro que experimentar o edifício de Siza Vieira, mais uma vez, é sempre um gosto, ao lado dos espaços exteriores que continuam o encanto para a vista. Pensei cá para mim: em qualquer lado, isto é “do mais que se pode”.
Fiquei espantado com o número de pessoas que, sendo dia de semana, lá estava. Turistas, evidentemente, mas muita mais gente e de todas as idades. Desde jovens, em visitas guiadas, a senhoras (em grupo) que podiam ser, seguramente, avós. À data ainda não havia catálogo da exposição.
Fui então ver as fotografias de Mapplethorpe, 179 fotos de toda a sua carreira, de que 20 viriam a ser retiradas, e que estão agrupadas, basicamente, em três espaços, consoante os avisos relativos ao respectivo acesso.
Comecei por um corredor largo onde se apresentam logo à entrada três “assemblages”. Ou seja, obras em três dimensões que tiram partido do efeito provocado pela reunião e disposição cuidada, de objectos diferentes, com uma lógica previsível, ou nem tanto. Ao fundo projectava-se um filme do próprio (“Still Moving/Patti Smith”) e em que a protagonista era essa sua amiga Patti Smith.
De um lado e do outro, nas paredes, inúmeras fotos, geralmente a preto e branco mas também a cores. Os temas eram variadíssimos, desde retratos e auto-retratos, a animais plantas, estátuas etc.
Percebe-se logo um trabalho em estúdio muito elaborado, o extremo cuidado com a luz e a composição. Os antípodas da reportagem e do instantâneo, do fotojornalismo. E esta, creio ser a nota primeira do trabalho de Mapplethorpe, porque parece não haver lugar algum para o improviso, sendo tudo meticulosa e antecipadamente preparado, estudado, montado. O resultado é sem dúvida muito bom.
Quem entra, à direita, encontra depois um enorme espaço que agrupa a maior parte das obras expostas, e onde se avisa que a exposição tem imagens que podem ofender a sensibilidade de algumas pessoas. Provavelmente, porque no meio de inúmeros auto-retratos, de mais retratos de personalidades conhecidas ou não, de Patti Smith várias vezes, de mais flores e de muitos outros temas, aparecem os nus. Nus de ambos os sexos e com relevo para a genitália masculina que se exibe sem rodeios aqui e ali.
Num terceiro e último espaço a inspiração do artista pelas coisas do sexo é então uma constante, balanceando-se entre o erotismo e a pura pornografia. Sempre se poderia dizer que entre esta e o que lá se exibe medeia uma importante distância, marcada pela qualidade formal patente, sempre, em todas as imagens.
Seja como for, anuncia-se, à porta deste espaço, que, face ao carácter sexualmente explícito das obras, a entrada é para maiores de dezoito anos ou para menores dessa idade acompanhados de um adulto (qualquer adulto?).
Quem foi Robert Mapplethorpe?
Robert Mapplethorpe nasceu em 1946 em Floral Park, do Estado de Nova Iorque, numa família católica. Tinha cinco irmãos o pai era engenheiro e a ascendência inglesa, alemã e irlandesa. Foi viver para Nova Iorque porque queria ser músico. Enveredou pelas artes plásticas estudando em Brooklyn, e em 1968 conheceu a cantora Patti Smith, cantora rock que também escrevia e fazia desenhos. Era de alguma maneira a sua musa. Viveu com ela e ficaram amigos.
Mapplethorpe descobriu depois a fotografia, começando a fazer trabalhos numa máquina Polaroid, mas ficando depois fã da sua “Hasselblad” que usava sempre manualmente.
Produziu uma arte, como se referiu já, que se pautou por um estilo de grande rigor e qualidade formal. Escolheu motivos tradicionais da fotografia artística, mas cedo se tornou conhecido pela exibição de nus masculinos, sobretudo de raça negra, que confirmavam as suas tendências homossexuais e foram logo motivo de escândalo na época.
Mapplethorpe mergulhou no mundo artístico nova-iorquino dos anos setenta (Andy Wharol, “The Factory” e “tutti quanti”, por exemplo), com a contestação estudantil ainda fresca e o gosto pela transgressão bem vivo. Aliás, “É proibido proibir” foi o slogan de Maio 68.
A comunidade LGBT vinha então à luz do dia em força e havia droga para quem gostasse. O próprio Mapplethorpe, levado pela maré, iria morrer aos 42 anos, num hospital de Boston, de complicações provocadas pelo HIV.
A polémica à volta da exposição
Entre nós, a exposição de Serralves levantou uma forte polémica, que muito para além da apreciação da obra exposta se centrou nos desentendimentos que opuseram a Administração da Fundação de Serralves ao seu Director Artístico e Curador da exposição. Este, demitir-se-ia a seguir à inauguração. A comunicação social deu importante relevo ao evento e os protagonistas acabaram a ser ouvidos numa comissão parlamentar da Assembleia da República convocada pelo PS e BE. Antes, os deputados membros da comissão deslocaram-se ao Porto para verem a exposição.
Sei que compete ao Conselho de Administração da Fundação programar a actividade da mesma, organizar e dirigir os seus serviços e actividades. Desconheço completamente o acordo estabelecido com o Director Artístico, nomeado na sequência de concurso, e sobretudo os poderes que lhe estavam conferidos, a liberdade de que dispunha, não só em tal qualidade, como na de Curador desta exposição.
As versões da Presidente da Fundação e do Conselho de Administração e do Curador são contraditórias. Este fala de pressões, interferência abusiva e de censura, aquela nega. Refere, sim, o desrespeito pelo antes combinado. O “mundo da arte”, incluindo imprensa de referência, reagiu forte e feio apoiando o Curador.
Parece-me que se não houve mesmo ingerência a questão terá com certeza a ver com um adensar de tensões e discordâncias que respeitam também à programação. Fala-se das demissões pretéritas de oito Directores, não substituídos por esta Administração, de conflitos por causa da utilização do parque, do silêncio do Conselho de Fundadores, ou até, da exposição de Joana Vasconcelos do Guggenheim de Bilbau, que uns querem ver em Serralves num futuro próximo e outros não.
Mas se houve essas interferências serão elas legítimas? Poderão “os donos da casa” não só escolherem o que querem expor como o modo de o fazer? Sobretudo, que papel cabe então ao Curador? Tudo isto são questões para que não tenho resposta e que não são para ser tratadas aqui.
Será que o conteúdo é completamente indiferente, como à primeira vista parece pretender o nosso fotógrafo?
O conteúdo é indiferente?
Só que, no caso concreto, é impossível ignorar que o que aconteceu se relaciona com uma exposição de fotografias que muito boa gente pode considerar chocantes.
Provavelmente, veio então ao de cima o conflito entre duas concepções diferentes da intercepção da arte com a moral. E então, tudo desaguará nas afirmações do próprio Mapplethorpe quando nos diz: “É extraordinário como, quando apresentas uma exposição em que apenas um terço das obras tem a ver com sexualidade, as pessoas ignoram tudo o resto e apenas falam dessas”. “Nas minhas exposições de fotografia (…) tenho tentado juntar uma flor, depois uma imagem de uma p…, depois um retrato, para que se possa ver que são todos iguais. Gostaria que as pessoas conseguissem ver o verdadeiro sentido”. “O importante não é o que a coisa é, mas sim a forma como é fotografada”.
Será que o conteúdo é completamente indiferente, como à primeira vista parece pretender o nosso fotógrafo?
Quando o artista apresenta uma imagem com conteúdo, escolheu esse tema. Não se trata de um acaso, sobretudo se implica um cuidado e preparação prévios, em estúdio. E escolheu certo conteúdo porque quis comunicar alguma coisa através dele. A forma como o faz pode potenciar essa comunicação, despertando emoções, e chegar ao ponto de cativar ou seduzir o receptor para o conteúdo.
Mas também pode ocorrer algo muito diferente para quem vê, se não conseguir ignorar um tema que se mostre, para si, no mínimo incomodativo. E então as qualidades formais da imagem deixam de ter o relevo que se esperaria que tivessem. E se a maior parte das pessoas que vêm a fotografia exposta (e temos que contar com um local público muito frequentado), não consegue fazer a separação, fixando-se só no tema, ficará irremediavelmente prejudicada a fruição que se espera ser proporcionada por uma obra de arte. Por outro lado, se o artista tem consciência disso, porque é que insiste (também é de insistência que se trata), na temática?
Quer chocar? Quer transgredir?
Não se pode escamotear o facto de haver partes do corpo humano ligadas ao sexo que, na sociedade em que vivemos, aqui e agora, estão rodeadas de um recato, em público, que não é apanágio de outras partes do corpo. E claro que, quando se ultrapassam as barreiras que, digo-o mais uma vez, aqui e agora, se convencionou estabelecer, não nos pode espantar que surjam reacções negativas de boa parte das pessoas.
É que, se for previsível que em certa exposição as pessoas se vão sentir chocadas e é isso mesmo que o artista quer (ou tal lhe é completamente indiferente), então tal artista revela com as ditas imagens, ao exibi-las querendo comunicar com quem as vê, uma agressão ou pelo menos uma falta de respeito por tais pessoas. E aí estamos já no campo da moral e não apenas no da arte.
A moral e a arte
Por certo que as regras de sociabilidade e as convenções mudam. Todos sabemos como “As Flores do Mal” de Baudelaire, ou a “Madame Bovary” de Flaubert foram condenadas na sua época por razões morais. E o quadro de Courbet “A origem do mundo”, que viveu anos escondido pelo dono para ser mostrado só a alguns amigos, está hoje exposto no museu de Orsay.
Mas, ainda assim, uma coisa é, neste caso, mostrar as partes íntimas de uma mulher, e outra exibir ao público em geral imagens de sexo explícito, entrando inclusive pelas áreas do sadomasoquismo. Portanto, a meu ver, não se trata de enveredar por um moralismo ou um esteticismo radicais, mas simplesmente de respeitar a autonomia da arte, ao mesmo tempo que se respeitam as pessoas a quem se propõe a apreciação da obra de arte.
Há obras de arte que não são susceptíveis de ter qualquer conteúdo moral. Basta pensar na arte abstracta, ou na maior parte das instalações.
Também não é missão da obra de arte veicular uma mensagem edificante do ponto de vista moral. A obra de arte pode, mas não é seu escopo necessário, tornar a pessoas melhores.
E claro que o conteúdo moral ou imoral da obra nada acrescenta em termos do seu valor estritamente estético.
Não é a obra de arte em si que tem que ter um conteúdo moral, seja positivo ou negativo, se o tiver. A questão está em saber se é moralmente reprovável a atitude do artista, consciente de que apresenta as obras a um público que muito provavelmente ficará chocado com as mesmas.
Há portanto, ou deve haver, uma autonomia entre a moral e a arte.
Não é a obra de arte em si que tem que ter um conteúdo moral, seja positivo ou negativo, se o tiver. A questão está em saber se é moralmente reprovável a atitude do artista, consciente de que apresenta as obras a um público que muito provavelmente ficará chocado com as mesmas. Obviamente, sem que se possa dizer, sequer, que tal perturbação será o preço a pagar pelo enriquecimento pessoal das pessoas a quem o artista se dirige.
Acontece que todo o ser humano vive com uma moral. Pode-se pensar mais ou menos mas não se pode deixar de agir. Viver é também pautar-se por uma tábua de valores, por um conjunto normativo que nos permite distinguir o bem do mal, evidentemente próprio de uma época, de uma comunidade, e que cada qual adopta para uso próprio. Ora, nem o artista deve comportar-se como um ser amoral e poder passar a ser irresponsável, enquanto artista, por mais fortes que sejam os apelos da sua criatividade, nem as pessoas a quem ele se dirige podem meter no bolso as suas convicções morais só porque estão perante uma obra de arte. A dimensão ética do agir humano impregna a sua vida toda, incluindo a produção e fruição artística.
E por agora basta.
Foto de Capa: Joaquim Norte de Sousa © Fundação de Serralves
Informações:
ROBERT MAPPLETHORPE – PICTURES
Museu de Serralves – Porto (Mapa Google)
20 de Setembro de 2018 a 6 de Janeiro de 2019
Roteiro da Exposição
Horários e Preços
Contactos:
[email protected]
(+351) 226 156 500
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.
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