Uma viagem na mente de um literato

O mais recente livro de Nuno Júdice é uma confusão. É um conto, um diário, um romance ou um ensaio? É, essencialmente, uma crítica.

O mais recente livro de Nuno Júdice é uma confusão. É um conto, um diário, um romance ou um ensaio? É, essencialmente, uma crítica.

O mais recente livro de Nuno Júdice, O Café de Lenine (2019), é uma confusão. É um conto, um diário, um romance ou um ensaio? É, essencialmente, uma crítica. Uma crítica tanto ao presente como ao passado, aos escritores modernos e aos escritores clássicos, aos políticos e aos eleitores, aos comunistas e aos religiosos, aos revolucionários e aos coniventes, às personagens e aos criadores, e, particularmente, à literatura e aos seus críticos. Num estilo saramaguiano – quanto ao registo de linguagem e constantes divagações, mas não de pontuação e fantasia – o narrador vai-se comparar à personagem de A Cartuxa de Parma, de Sentdhal, Fabrice, que caminha pela densa bruma de Waterloo, à procura de ação. Por seu lado, o narrador viaja pelo mundo todo – Bélgica, Luxemburgo, México, Brasil, Chile, França, Portugal, Suíça, República Checa – mas sempre envolvido numa névoa, que em vez de climática, é literária.

A demanda que vai seguir, exposta no primeiro capítulo, é a de quebrar com a ortodoxia da lógica cronológica em que os eventos normalmente ocorrem, formando uma narrativa – “vou defender, então, a capacidade de escrever sem ter de obedecer aos modelos, aos esquemas, a tudo aquilo o que faz parte desse género romanesco” (14) – e vai, ao, longo dos dez capítulos seguintes, tecer uma tela surrealista das impressões que cada país lhe provoca. Há, contudo, algumas referências que se mantêm consistentes ao longo do texto. A comparação entre o “narrador” e Fabrice, os dois perdidos procurando encontrar lugar no seu contexto, tentando ser heróis e originais, no meio de tantos escritores e soldados, respectivamente. Emma Bovary e Gustave Flaubert também vão perseguir os pensamentos do narrador, sendo que a personagem protagoniza a cena mais bizarra do livro, sonhada a comer papas de milho incessantemente até quase esmagar o narrador. Guerra Junqueiro, Lenine e Rousseau convivem num café, em Genebra – cidade onde os três viveram – e discutem a natureza do Homem, qual o melhor modelo político e o impacto de cada indivíduo na história universal. Napoleão Bonaparte é criticado, elogiado e aconselhado, tanto militarmente, como literariamente. Camille Claudel é convocada do manicómio onde foi encarcerada pelo irmão para ser tomada como referência artística, partilhando uma relação íntima com o narrador – “ela está à minha frente e pede-me que a ajude no desenho que lhe irá servir de modelo para o molde de um nu em bronze” (127).

Nuno Júdice consegue, assim, uma obra que, no meio das digressões cómicas, está recheado de fortes críticas e de astutas observações sobre o mundo literário.

Nuno Júdice consegue, assim, uma obra que, no meio das digressões cómicas, está recheado de fortes críticas e de astutas observações sobre o mundo literário. Como Polonius, podia comentar-se: “Though this be madness, yet there is method in’t”*. O autor vai deixando por detrás de todas as divagações e imagens surreais, como Luis Buñuel faz nos seus filmes, um apelo de mudança à sociedade contemporânea: aos críticos literários, “um crítico é como um provador de vinhos(…) o que faz é cuspir(…) esse produto pouco higiénico”; a todos aqueles que vasculham o passado em busca de culpados, “vão para onde seja preciso salvar vidas atuais em vez de assumirem bandeiras esfarrapadas frente a presumíveis culpados que há séculos fazem tijolo”; e à indiferença generalizada, “as valas comuns que deixam em descoberto restos do que foram pessoas, com uma vida normal (…) só provocam um bocejo de indiferença a quem se habituou à sua repetição.” O Café de Lenine é um livro sobre teoria literária, insurgindo-se contra a Teoria da Literatura, que provoca o leitor, tanto emocional como intelectualmente, e que, no final, o deixa confuso, inquieto, como um belo quadro de Paul Klee.

* SHAKESPEARE, William, Hamlet, London, Methuen & Co., 1965, p.72.

 


Nuno Júdice
O Café de Lenine 
135 págs., D. Quixote, 2019
(12,51€)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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