Encontro-me na Venezuela, em Maracay, desde o Natal a apoiar o meu irmão mais velho que teve um problema de saúde grave causada pelo stress próprio de quem vive neste país. Vou testemunhar o que vejo no dia a dia.
Pela manhã, às 7 horas, saio de carro para celebrar missa na Catedral de Maracay. A essa hora já se vêem filas de pessoas às portas dos bancos, à espera que abram para poderem levantar dinheiro. A razão destas filas é a existência de pouco dinheiro em numerário. Na padaria do meu irmão, 90% das pessoas fazem fila para pagar com cartão, a maioria de bancos do Estado, mas o sistema informático é tão lento que podem ter de esperar meia hora. Para comprar uma botija de gás, é o mesmo cenário: filas enormes e vários dias até conseguir.
Isto aconteceu a Vladimir, um senhor de quem me tornei amigo. As filas já fazem parte da rotina dos venezuelanos, sobretudo para comprar medicamentos, ou bens alimentares como farinha de milho, esparguete, etc. Todas são controladas por militares. Não existe liberdade para se comprar o que se quer, e à hora que se quiser.
O sistema económico tornou-se um decalque daquilo que acontece em Cuba: tudo controlado pelo Estado. Impressiona a escassez de bens. A Venezuela que conheci nos anos sessenta e oitenta nada tem nada que ver com esta.
Um dia destes, entrei numa cadeia de Hipermercados “Central Madeirense” e a secção de charcutaria estava completamente vazia. As outras prateleiras estavam compostas mas dominavam os produtos de limpeza. Arroz e esparguete não havia.
Estive em Caracas, na paróquia jesuíta de San Albero Hurtado. Agregada à paróquia, existe a Escola de Fé e Alegria Andy Aparicio. Os professores são pagos pelo Estado, mas o salário é tão miserável que a Companhia de Jesus tem que ajudar os seus colaboradores leigos para que a missão possa continuar.
Aqui em Maracay, a 120 quilómetros de Caracas, existe um lar para rapazes da Igreja Católica com 27 pessoas. É dirigido por dois irmãos franciscanos de la Cruz Blanca. Há três semanas chegou um rapaz de 14 anos completamente desnutrido, pesava cerca de 15 kgs, o corpo dele era semelhante ao de uma criança de cinco anos. Não conseguia falar, nem andar. Agora, já se encontra melhor graças a uma dieta apropriada recomendada por um pediatra que o examinou. Quando o vi pela primeira vez, num carrinho de bebé, não imaginei que tinha 14 anos, só passados uns dias o soube.
A comunidade portuguesa que vou conhecendo aqui em Maracay vai sobrevivendo porque ainda tem poder de compra devido aos negócios que possui. Mas às vezes sujeitam-se a comprar coisas no mercado paralelo que é dominado pelos militares. Um exemplo: um saco de farinha custa 6000 bolívares soberanos, mas devido à escassez, custa dez vezes mais no mercado negro.
Estive na marcha do dia 23 de Janeiro, dia em que se comemorou a queda da ditadura do Presidente Peres Gimenez. Enquanto caminhava para o centro de Maracay, eram milhares e milhares de pessoas a gritar “Libertad, libertad” e também a cantar o Hino Nacional “Gloria al bravo pueblo que el yugo lanzo…abajo cadenas, abajo cadenas, gritaba el señor, el pobre en su choza libertad pidio...”.
Apesar de tudo, vive-se uma grande esperança porque as pessoas reconhecem que a maioria da opinião pública mundial acordou para a situação que se vive na Venezuela e 90% do povo parece estar disposto a tudo para recuperar a democracia.
A multidão chegou a praça Bicentenaria, eram cerca de a volta de cem mil pessoas. Notava-se o nervosismo dos militares quando se passava por eles.
O meu irmão, dono de uma padaria, foi visitado pela “Fiscalia Sundai” (o correspondente à ASAE, em Portugal) só porque a marcha do dia 23 de Janeiro foi programada para começar no cruzamento em frente à padaria. Vieram seis militares, fortemente armados, cinco posicionaram-se do lado de fora da padaria e um deles acompanhou a fiscal do governo que durante quatro horas vasculhou todos os documentos da padaria e todos os seus cantos. Viemos a saber mais tarde, por uma fonte segura, que a inspecção à padaria do meu irmão foi uma represália pelo facto de ser um dos pontos de convocação para a marcha do dia 23 de Janeiro.
No domingo passado, estive em Maracaibo, na parte ocidental da Venezuela. Visitei a comunidade dos jesuítas do Colégio Gonzaga e concelebrei com um companheiro numa capela de um bairro periférico. Nessa manhã, pelas 11.00, um grupo de homens armados e apoiados por militares entraram numa igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, durante a missa, e começaram a bater nas pessoas, no celebrante, nas freiras, partiram bancos, imagens (p.e. as mãos de uma imagem de Jesus foram partidas).
Essa paróquia fica perto da Casa de Exercícios Espirituais que, por coincidência visitei nessa mesma tarde. Estranhei o facto de haver poucas pessoas na rua, e de as freiras que tomam conta da casa não terem aberto a porta depois de tocar várias vezes a campainha. Ao fim da tarde, quando recebi a notícia do assalto à igreja, compreendi.
Apesar de tudo, vive-se uma grande esperança porque as pessoas reconhecem que a maioria da opinião pública mundial acordou para a situação que se vive na Venezuela e 90% do povo parece estar disposto a tudo para recuperar a democracia. A Venezuela é um país com um potencial enorme e agora está mais próxima do que nunca de acabar com este regime totalitário e repressivo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.