O Pai
Deus não fala comigo
nem uma palavrinha das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo e, se o fizesse,
como um aborígine coberto de amuletos
sacrificaria aos estalidos da mata;
não me tirasse a vida um tal terror.
A seus afagos não sei como agradecer,
beija-flor que entra na tenda,
flor que sob meus olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha me trata como filhinha.
De tempestades, só mostra o começo e o fim.
(Adélia Prado, Tudo o que existe louvará, antologia, Porto editora, Assírio & Alvim, 2016, p. 208)
A verdade que nos transmite o poema não acaricia, como se fosse um óleo de beleza. O desejo parece frustrado. O medo dos estalidos da mata sobrepõe-se ao amuleto. O terror de que se fala, livra de esconjurar a morte. Deus afaga. Nas coisas simples, nessa alegria súbita que nos invade e penetra. Nem o passar do tempo, por entre tempestades, nos desterra do princípio e do fim. A ternura infinita de Deus, o Paizinho que nos protege, consola-nos na certeza de que tudo tem sentido.
Deus afaga. Nas coisas simples, nessa alegria súbita que nos invade e penetra. Nem o passar do tempo, por entre tempestades, nos desterra do princípio e do fim. A ternura infinita de Deus, o Paizinho que nos protege, consola-nos na certeza de que tudo tem sentido.
Vem este texto a propósito da pandemia que atravessamos. Se o último verso – “De tempestades, só mostra o começo e o fim” – adquire a sua significação plena como chave de ouro do caminho que é a nossa vida; então, como duvidar que vivamos fora do amor, quando parece que Deus está longe, ou a “dormir”? A fé, virtude teologal que, pelo facto de o ser inclui todas as outras, prepara-nos para o combate e promete-nos a vitória. É bom e necessário recordar o capítulo oitavo da Carta de São Paulo aos Romanos,nomeadamente, os versículos 35-39 que começam assim: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?”. Igualmente, a oração do ofício de Laudes da segunda-feira da primeira semana: “Senhor, que a vossa graça inspire as nossas obras e as sustente até ao fim, para que toda a nossa actividade por Vós comece e em Vós acabe”. Antiga prece que figura em numerosos devocionários e que o Papa Bento XVI cita na Audiência de quarta-feira, 25 de Abril de 2012: “Sem a oração quotidiana, vivida com fidelidade, o nosso fazer esvazia-se, perde a alma profunda, reduz-se a um simples activismo que, no final, nos deixa insatisfeitos.” Há uma bonita invocação da tradição cristã, a recitar antes de cada actividade, que reza assim: «Actiones nostras, quæsumus, Domine, aspirando præveni et adiuvando prosequere, ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat, et per te coepta finiatur», ou seja: «Inspirai as nossas acções, Senhor, e acompanhai-as com a vossa ajuda, para que cada nosso falar e agir receba sempre de Vós o seu início e em Vós tenha o seu cumprimento»”.
Ajuda-nos, a poesia, a palavra de Deus, a oração, a mantermo-nos vigilantes, fundados na pedra angular que é Cristo, nesta hora escura e grave, que todos nós, em pandemia, isto é, com todo o povo, atravessamos. Não a transformemos em Pandemonium, palavra inventada no século XVII por John Milton, em “Paraíso Perdido” (I, 710), para denominar a Cidade dos Demónios. Lá não se luta nem se espera: Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate (Dante, “Divina Comédia”, Inferno, III, 9). Aqui, sim, “a esperança não engana” (Rm 5, 5), é sempre vitoriosa, “na alegria súbita” de um “beija-flor que entra na tenda”, na visão pacificada de “três rolinhas imóveis sobre o muro”.
Fotografia de: Lucy Chian – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.