O nosso país padece de uma enfermidade: somos centralistas. Socorro-me da análise e da argumentação de António Barreto (nota 1) para poder saltar para a constatação de que esta concentração se verifica nos campos político, administrativo, económico, social e populacional.
De facto, a imagem de um país a afundar-se não podia ser mais acertada, atendendo à concentração de todo o tipo de recursos no nosso litoral. Vejam-se estes dois exemplos. Na faixa costeira reside cerca de 60% da população, estando 45% concentrada nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. E os distritos do litoral elegem cerca de 75% dos deputados à Assembleia da República, condicionando desta forma a definição de (quase) todas as políticas públicas. Esta concentração ajuda a explicar muitos dos constrangimentos que afetam o país.
A este respeito, devo acrescentar que o centralismo é real, mas a culpa está longe de ser carregada apenas por Lisboa (nota 2). Gostava de vos apresentar duas dificuldades (pontos 1 e 2) e duas oportunidades (pontos 3 e 4) na construção de um país mais justo.
1. Um país com muitas assimetrias onde a espuma dos dias difere, demasiadas vezes, da realidade.
Se é verdade que a lei tem de ser geral e abstrata, também o é a circunstância de as regras definidas a partir de um Ministério estarem longe de ter aplicação igual em todo o território nacional. Atente-se no caso das regiões ultraperiféricas, que gozam (e bem) de um estatuto político-administrativo que lhes dá autonomia. Essa autonomia não significa que não haja da parte do Estado um dever acrescido de garantir que os custos da insularidade não colocam em causa o respeito, por exemplo, dos direitos fundamentais.
Se é verdade que a lei tem de ser geral e abstrata, também o é a circunstância de as regras definidas a partir de um Ministério estarem longe de ter aplicação igual em todo o território nacional.
Um exemplo paradigmático desta realidade, em que há uma dissonância entre o que se discute na espuma mediática e os problemas concretos do país, passou-se a propósito da Escola Digital. Enquanto andámos meses a discutir quantos computadores é que o Ministério da Educação prometeu e não entregou, a menina Leonor de Vimioso era a imagem das assimetrias regionais e de um Portugal real: na sua freguesia em Vimioso não havia internet, o que a levava para o alto da serra, dentro do carro do pai, para conseguir aceder à Escola todos os dias. É assinalável o paradoxo: esta situação acontece no país que recebe anualmente a maior conferência da Europa sobre empreendedorismo, tecnologia e inovação.
2. Onde estão os votos?
A democracia representativa assenta na ideia de que o exercício do poder político se faz de forma indireta através dos seus representantes. Ora, o despovoamento a que as regiões do interior têm assistido ao longo das últimas décadas tem conduzido a um fenómeno de desertificação política: estes territórios de baixa densidade populacional são pouco férteis politicamente para os partidos pelo seu reduzido peso eleitoral.
Assim, os territórios que mais investimento precisavam pelas necessidades que têm são aqueles que menos recebem. E o dilema que se coloca é qual deve pesar mais: se a emergência dos territórios com menor densidade populacional, se a necessidade de corresponder à vontade de um maior número de eleitores que se situa exatamente nas grandes áreas metropolitanas? Em bom rigor, a bússola devia ser sempre o interesse público. Devia, mas não é. O fator eleitoral tem sido decisivo.
3. Avaliar o impacto territorial das medidas tomadas
Nem sempre é fácil demonstrar as iniquidades territoriais que resultam do impacto de políticas públicas implementadas. Daí que fosse essencial obrigar a que esta avaliação de impacto fosse feita. Veja-se este exemplo: o decisor político opta por criar um programa para financiar o transporte coletivo a um preço mais acessível para as pessoas. Importava saber os critérios de financiamento para cada região do país, bem como o impacto que a medida produz, porque, no limite, estamos a criar um programa que favorece as regiões do país onde existe oferta pública de transporte.
Por absurdo, podemos ter verificadas as condições em que as pessoas de Arronches, Vimioso, Resende ou Alvaiázere estão a financiar o transporte de quem reside em áreas bem mais ricas como Oeiras, Lisboa ou Porto. Imagino que (quase) todos concordaremos na (in)justiça dos impactos desta medida. Foi bem-intencionada, mas foi este o resultado: acentuou as desigualdades entre regiões e, desta forma, entre portugueses.
Nem sempre é fácil demonstrar as iniquidades territoriais que resultam do impacto de políticas públicas implementadas. Daí que fosse essencial obrigar a que esta avaliação de impacto fosse feita.
4. Nem tudo são más notícias com a pandemia
Durante os sucessivos confinamentos e isolamentos a que fomos sujeitos, muitas empresas acordaram para as potencialidades do teletrabalho, nomeadamente, a possibilidade de pouparem bastante com as infraestruturas que detinham ou tinham arrendando. Também nós passámos a valorizar mais a Casa, a Família e a conciliação entre as diferentes dimensões das nossas vidas e mudámos alguns hábitos, provavelmente, em definitivo. A procura de soluções de vida no interior, ancoradas na possibilidade de trabalho remoto, é uma oportunidade para estas regiões. E para as zonas urbanas também, na medida em que se vislumbra uma réstia de descompressão no preço das casas, nos transportes, etc.
Em jeito de conclusão, espero que não sigamos a lógica de Lampedusa, segundo a qual é preciso mudar alguma coisa, para que tudo fique como está. Ora, é precisamente isso que temos de evitar. Os dados sobre a litoralização do país, o despovoamento do interior e as consequências dramáticas para todos são públicos. O problema está identificado. Potenciais soluções também. Precisamos urgentemente de transformar proclamações em concretizações.
Notas:
1.http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223473640B9nSI8rp3Qf73ZE7.pdf
2. Entre 2000 e 2017 houve uma redução das disparidades entre regiões em matéria de PIB per capita em paridade de poder de compra, mas devido ao empobrecimento de regiões como a de Lisboa. Significa isso que a redução das disparidades se devia, antes, fazer por via do crescimento das regiões mais pobres.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.