É impossível começar a falar de “Ébano” (Shadows of the Sun, na sua versão inglesa) de Ryszard Kapuscinski, sem reservar umas linhas para o seu autor, um dos mais aclamados jornalistas de reportagem internacional do século XX.
Nascido em 1932, em Pinsk, na altura território da Segunda República Polaca (hoje, parte integrante do território bielorrusso), Kapuscinky formou-se em História na Universidade de Varsóvia, e com 23 anos como jornalista estagiário num matutino juvenil. Posteriormente, sob o manto pesado de uma Polónia comunista, entrou para a Polish News Agency (PAP), onde ficou até 1981, o que lhe permitiu ser o primeiro jornalista polaco destacado para cobrir o mundo “exterior”, numa Polónia que se fechava para o mundo, à semelhança de muitos outros territórios do leste europeu.
Com uma metodologia muito própria – levava dois cadernos de notas para cada local de reportagem, um para o trabalho puramente jornalístico de registo de factos, outro para anotações pessoais e reflexões sociais e antropológicas -, Kapuscinski iniciou a sua carreira jornalística em meados dos anos 50.
Com uma metodologia muito própria – levava dois cadernos de notas para cada local de reportagem, um para o trabalho puramente jornalístico de registo de factos, outro para anotações pessoais e reflexões sociais e antropológicas -, Kapuscinski iniciou a sua carreira jornalística em meados dos anos 50, primeiro na Ásia e Médio Oriente, para onde foi destacado, tendo chegado pela primeira vez a África em 1957, continente a que voltou sempre que possível ao longo de quatro décadas.
Dentro do conjunto de obras publicadas, as de maior notoriedade a partir dos anos 70, destacaríamos: “Another day of life”, um relato muito pessoal sobre o processo de independência de Angola, com foco no drama dos retornados portugueses, as secretas influências dos EUA e da URSS, quer através das suas agências secretas, quer através dos seus estados-cliente, como Cuba, Zaire ou a África do Sul do apartheid, no que se constituiu numa das mais flagrantes “batalhas” da Guerra Fria no território africano; “Shah of Shahs”, sobre o declínio e queda de Mohamadd Reza Pahlavi, o último Xá da Pérsia; e “The Soccer Wars”, um relato sobre as condições políticas e sociais de países do terceiro mundo em estado de conflito interno e externo, e que tem no título uma referência à inconcebível guerra entre Honduras e El Salvador na sequência de um jogo de futebol entre as selecções nacionais dos dois países, na altura a contar para a qualificação para o mundial de 1970 (embora houvesse razões políticas profundas por detrás do despoletar do conflito).
Diz Kapuscinski, na introdução de “Ébano”, que este não é um livro sobre África, mas sobre pessoas, os momentos que viveu com elas, e sobre os diferentes “cosmos” que simultaneamente coexistem no grande continente africano.
Não é de facto um livro sobre África. Mas é um livro sobre do que é feito África. Pelo menos, em parte… Porque será difícil resumir África num objecto material, algo que Kapuscinski reconhece quando reflecte que a “grande história” de África, aquela que existiu durante milhares de anos, não tem fontes escritas, não tem heranças materializadas em descobertas inovadoras como houve no continente europeu, é sobretudo, uma história da oralidade, da celebração da vida comunitária e de um sentido de existência desligado do tempo.
Kapuscinski deslocou-se a diferentes nações, cidades e lugares de África ao longo de 40 anos, e este livro contém extraordinárias histórias vividas, ou assim o proclamou, pelo autor ao longo desse período.
“Ébano” não é um livro sobre a história de África no século XX, nem é um livro de viagens. Não se enquadra no estilo romanceado de um Chatwin, nem no estilo mais descritivo e dialogante de um Theroux. Não nos apercebemos nele uma linha temporal óbvia, embora tenhamos algumas pistas se localizarmos os eventos descritos no friso da história mundial, e mesmo assim, não ficamos com a certeza de que a ordem seja respeitada. Mas essa aparente dessincronização não perturba a leitura, com efeito, até torna a mesma, não só menos forçada e livre, como mais entusiasmante, pelo simples facto de não sentirmos que tudo se encontre preso numa formalidade do tempo, de um princípio, meio e fim, talvez uma adopção estilística “africana” do escritor polaco.
A qualidade da obra advém também da diversidade das experiências vividas: tanto temos um relato de uma exasperante e dantesca espera por um camião no deserto do Sahara, como aprendemos de uma forma simples e concisa sobre a origem da guerra civil entre tutsis e hútus no Ruanda.
A qualidade da obra advém também da diversidade das experiências vividas: tanto temos um relato de uma exasperante e dantesca espera por um camião no deserto do Sahara, como aprendemos de uma forma simples e concisa sobre a origem da guerra civil entre tutsis e hútus no Ruanda, como de seguida nos entretemos com o relato de uma viagem de comboio entre Kapucinski, dois desconfiados viajantes norte-europeus e uma excêntrica e opulenta “madame” ganesa, enquanto nos cruzamos a certa altura com uma descrição jornalística sobre alguns aspectos menos conhecidos da guerra da independência da Eritreia.
Um livro que é quase uma experiência de África
Não é um livro de história de África, nem um livro de viagens, mas ficamos com a sensação, talvez ingénua, de que aprendemos mais sobre África, e que através destas páginas demos uns valentes passeios pela sua heterogeneidade de paisagens, pessoas e realidades. Ou pelo menos, das “Áfricas” que Kapuscinski visitou, porque realisticamente, até para quem nunca esteve em África, provavelmente nunca ninguém conhecerá inteiramente este continente, muito menos um europeu.
Chegando ao fim do penúltimo capítulo, o reflexo seguinte será o de virar a página, com a expectativa de mais um episódio do aventureiro jornalista polaco, ou sobre uma guerra interminável causada pelas sementes da descolonização europeia, ou mais um relato trágico-cómico sobre a mortal conjugação do binómio mosquitos/calor (nisto Kapuscinski foi muito vívido nas suas descrições e no sofrimento pelo qual passou, ao ponto de quase conseguirmos recriar mentalmente essa experiência de privação e superação mental e física)… Mas não é isso que acontece.
O último capítulo do livro será talvez o mais importante para entendermos como Kapuscinski absorveu África, o que aprendeu daquilo que lhe foi possibilitado aprender, e o que entende ele serem os fundamentos do continente. De certa forma, ao longo do livro existem reflexões sobre as pessoas, os seus modos de vida, a valorização que fazem sobre algo tão simples como uma sombra, sobre a “palavra contada”, sobre o papel das comunidades, mas também sobre a inevitabilidade das vidas de muitos africanos ou sobre os sonhos antigos e ingénuos que muitos tiveram ao longo de várias décadas dos movimentos independentistas africanos. Mas é no último capítulo que ficamos com a sensação de que aprendemos algo, por mais pequeno que seja, sobre a particularidade do continente africano…
Neste último capítulo, Kapuscinski não descreve uma guerra, um mercado africano, ou uma das suas experiências de confronto com as diferenças culturais entre europeus e africanos… descreve aquilo que para ele teve mais impacto nas suas observações ao longo de décadas do “cosmos” africano: a identificação dos “valores supremos” de África.
Neste último capítulo, Kapuscinski não descreve uma guerra, um mercado africano, ou uma das suas experiências de confronto com as diferenças culturais entre europeus e africanos… descreve aquilo que para ele teve mais impacto nas suas observações ao longo de décadas do “cosmos” africano: a identificação dos “valores supremos” de África.
Valores tão diferentes daquilo que um europeu assumiria como primordiais, que só décadas de convívio e experiências permitiram a Kapuscinksi arriscar na sua identificação.
Kapuscinski foi “acusado”, já depois da sua morte, de fantasiar alguns factos nas sua obras ou de não estar presente em relatos onde diz ter estado, algo que nunca foi inequivocamente provado.
Em todo o caso, com maior ou menor fantasia, é certo que Kapuscinski criou em “Ébano” uma muito prazenteira e diversificada experiência de leitura e de descoberta dos “diferentes cosmos de África”, não através de um trabalho historiográfico, mas através um conjunto de diferentes episódios. Quase como um livro de contos, mas que tem como linha transversal a irrevogável magia do mosaico africano, o que nos permite saber que, apesar das diferenças grandes entre o sul de África e a selva tropical africana, ou a diferença entre o relato de uma revolta armada de catanas em Zanzibar e o encontro nocturno com um elefante, existe em “Ébano” uma experiência incontornável de descoberta de África e da sua multiplicidade de “cosmos”.
Informações:
Ébano de Ryszard Kapuscinski
323 págs., Livros do Brasil, 2017
10,99€
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Este artigo foi previamente publicado no caderno cultural da Brotéria.
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