Um filme da nossa História

Com o filme “A Luz de Judá”, ficamos a conhecer melhor a comunidade judaica e católica do Porto, incluindo o que arriscaram uma pela outra. E conhecermo-nos é essencial para nos compreendermos e convivermos juntos.

Com o filme “A Luz de Judá”, ficamos a conhecer melhor a comunidade judaica e católica do Porto, incluindo o que arriscaram uma pela outra. E conhecermo-nos é essencial para nos compreendermos e convivermos juntos.

Este mês, a Comunidade Judaica e a Diocese do Porto apresentaram o filme “A Luz de Judá”, animado por séculos de diálogo de duas comunidades presentes na cidade antes mesmo de existir o Reino de Portugal. O projeto é emblemático: todas as receitas serão revertidas para os necessitados, cuja situação de vulnerabilidade social está ainda mais agravada no contexto de pandemia.

Como escreveu Luís Salgado Matos, se as pessoas abordam este filme pensando em amadorismo e proselitismo, não encontram uma coisa nem outra. Trata-se de uma longa metragem de qualidade, com argumento do Centro de Investigação da História Judaica do Porto. Não foi intenção da Comunidade Judaica do Porto concorrer com o realizador Steven Spielberg, aliás judeu também, mas deve relevar-se o excelente trabalho de Luís Ismael e das empresas portuguesas que o suportaram, a Lightbox e a Em Relevo.

As primeiras palavras do filme “A Luz de Judá” são Shema’ Israel – “Ouve, Israel”. O início duma oração milenar, que é recitada perante uma muralha da cidade do Porto, a fazer lembrar o chamado muro das lamentações. A oração, e as vidas daqueles judeus que viviam em paz juntamente com os seus conterrâneos católicos é interrompida pelo Édito político de D. Manuel em dezembro de 1496. Os, muitos, que não puderam fugir, ficaram como “cristãos-novos” – esquecendo ou escondendo a sua fé. Este é o princípio desta, nossa, história.

A despedida forçada dos judeus de Portugal, no final do século XV, sobretudo para o Norte de África e para o Império Otomano, foi sucedida pela Inquisição, instaurada oficialmente em 1536, e por uma série de migrações para destinos outros, cabendo aos “cristãos-novos” portugueses criar todas as modernas comunidades do Ocidente. “Do ponto de vista étnico, dois ramos de judeus são geralmente distinguidos: o ramo português e o ramo alemão (sefarditas e achquenazitas).” – Kadmi Kohen, Nomades, 1929, pag. 129.

Vermos este filme é conhecer, mas também participar, na história das duas comunidades. É juntarmo-nos a esta ação comum de ajudar quem mais precisa, de sermos testemunhas e caminho de aproximação ao Próximo.

Em 1618, a “visitação” do Inquisidor D. Sebastião Matos de Noronha – que no final da sua vida iria ser, ele próprio, alvo do Santo Ofício, por pretensamente favorecer os “cristãos-novos” – foi um momento fulcral. Os exageros das detenções e delações levaram as autoridades judiciárias, municipais e mesmo eclesiásticas da cidade a prejudicar deliberadamente a ação inquisitorial e mesmo a cercar o edifício da Inquisição. No meio desta trama legal e política, que foi caso único no mundo, em que uma cidade se insurge contra as prisões dos “cristãos-novos”, o filme mostra uma conversa singela entre um padre e um fiel católico, em que perante a injustiça se mostra que os padres da diocese nunca fariam tal coisa.

Nas centenas de anos seguintes, o Porto foi uma cidade católica, destituída de presença judaica. A comunidade ressurgiu no século XX, com a chegada à cidade de judeus provenientes da Europa Central e de Leste e com a tentativa de resgate dos marranos portugueses para o judaísmo oficial, projeto que contou com o apoio financeiro de judeus sefarditas de Londres e Hong Kong. É desta altura a construção da sinagoga Sinagoga Kadoorie – Mekor Haim (“Fonte de Vida”), a maior da Península Ibérica, que serviu para acolher os refugiados da Shoah durante a Guerra e que serve, hoje, de templo para o regresso de muitos judeus sefarditas. Os achquenazitas, como a autora destas linhas, com origens na Rússia e na Polónia, representam hoje talvez 10% da comunidade.

Pelo meio da nossa história conjunta, neste filme, encontramos casos de extraordinária bondade e caridade cristã, como a história comovente de duas freiras que – para cumprir os desejos de um judeu falecido longe das filhas –, rezou a oração judaica do Kadish dos enlutados, como parte da mesma família dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob.

Com a “Luz de Judá”, ficamos a conhecer melhor as duas comunidades, incluindo o que arriscaram uma pela outra. E conhecermo-nos é essencial para nos compreendermos e convivermos juntos. Cada visualização deste filme (na plataforma Vimeo https://vimeo.com/ondemand/aluzdejuda) corresponde na totalidade a um donativo precioso para o combate à fome levado a cabo pelo Banco Alimentar, o Centro Social da Sé, o Centro Social e Paroquial de Nossa Senhora da Conceição e a Benéfica Associação Mutualista.

Hoje, no século XXI, as duas comunidades trabalham juntas. A assistência social da Caridade da Diocese ao lado da Tsedacá, da Chessed, do dever de justiça social judaico. É também esse o espírito deste filme e de quem quiser participar ao vê-lo.

O filme termina com uma citação da carta que o Papa Francisco enviou a estas duas comunidades, “para que possam ser o fermento de fraternidade, esperança e alegria no coração do mundo, e deseja a todos a maior felicidade com a bênção Divina.”

Vermos este filme é conhecer, mas também participar, na história das duas comunidades. É juntarmo-nos a esta ação comum de ajudar quem mais precisa, de sermos testemunhas e caminho de aproximação ao Próximo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.