Um Deus que toca e Se deixa tocar - Ponto SJ

Um Deus que toca e Se deixa tocar

O toque de Cristo — com as mãos, com os olhos, com o coração — é sempre resposta, não imposição. É compaixão.

O toque de Cristo — com as mãos, com os olhos, com o coração — é sempre resposta, não imposição. É compaixão.

A propósito da festa litúrgica do Sagrado Coração de Jesus e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque, partilhamos este texto como parte de uma proposta mais alargada para redescobrir aspetos centrais da espiritualidade do Coração de Jesus.

 

Quando a religião parece um assalto ao corpo (Jean-Luc Nancy)

A crítica à religião como forma de controlo não é nova. Já no Iluminismo — com Hume, Nietzsche, Marx ou Schopenhauer — se popularizou a ideia de que a religião usa mandamentos e rituais para manipular a liberdade dos seus fiéis. Jean-Luc Nancy, filósofo francês contemporâneo, dá a esta crítica uma nova formulação no livro Corpus (2000), onde analisa o modo como o cristianismo se apropria da frase de Jesus: «Isto é o meu corpo».

Segundo Nancy, esta frase teria servido de base a um controlo simbólico e prático sobre o corpo dos fiéis: seria como se a Igreja dissesse “o teu corpo é meu, eu sei o que é melhor para ti”. A religião passaria assim a ser um sistema de apropriação do corpo — o lugar mais íntimo e pessoal do ser humano.

Ainda que esta leitura possa parecer exagerada, talvez injusta como universalização, ela levanta uma questão importante: a norma religiosa, quando desprovida de amor e compaixão, pode tornar-se mais imposição do que libertação. Mandamentos anunciados sem amor tornam-se moral de escravos, em vez de caminho de salvação. Normas sem coração tornam-se fábricas de ações ‘by the book’ mas, eventualmente, gestos sem vida.

Cristo toca-nos porque Se deixou tocar (Jacques Derrida)

Anos após a publicação de Corpus, Jean-Luc Nancy atravessou uma doença grave. O seu amigo e mestre, Jacques Derrida, dedicou-lhe então o livro Le Toucher – Jean-Luc Nancy. Nele, Derrida revê as teses do amigo, com simpatia, mas também com uma crítica profunda.

Derrida, embora se afirmasse próximo do ateísmo, nunca perdeu o fascínio pelos temas religiosos. E ao refletir sobre a acusação de Nancy ao cristianismo — de que assaltaria o corpo com autoridade e norma — Derrida propõe uma chave diferente: a do toque.

Para Derrida, Jesus não impõe o seu toque nem a sua doutrina como demonstração de poder. O toque de Cristo — com as mãos, com os olhos, com o coração — é sempre resposta, não imposição. É compaixão. O toque de Cristo só existe porque Ele próprio se deixou tocar no Seu coração. Tocar e ser tocado fazem, portanto, parte do mesmo movimento.

Escreve Derrida:

Hoc est enim corpus meum (Isto é o meu corpo). Antes e para além do momento eucarístico deste corpo, os Evangelhos apresentam o Corpo de Cristo (…) como carne que é tocada tocando. A salvação acontece mediante o toque, e o Salvador, na verdade o ‘tocador’, é também Ele o ‘tocado’. (…) A alusão à emoção de Jesus fala do movimento essencial da compaixão do coração ou das entranhas de Cristo, o local encarnado do perdão. O coração: é aí onde Cristo é primeiramente movido e tocado. E daí, então, toca porque Ele mesmo foi tocado…

Este movimento de dentro para fora — da compaixão à ação — é o que torna o Evangelho tão humano e divino ao mesmo tempo. E é também o que torna a espiritualidade do Coração de Jesus tão relevante hoje: não fala de um coração abstrato ou etéreo, mas de um coração tocado que toca, ferido que cura, movido que move. Nas palavras do Papa Bento XVI: “Do horizonte infinito do Seu amor, Deus quis entrar nos limites da história e da condição humana, assumiu um corpo e um coração; de modo que nós possamos contemplar e encontrar o infinito no finito, o Mistério invisível e inefável no Coração humano de Jesus, o Nazareno”. (Angelus, 1 de junho de 2008)

Este movimento de dentro para fora — da compaixão à ação — é o que torna o Evangelho tão humano e divino ao mesmo tempo. E é também o que torna a espiritualidade do Coração de Jesus tão relevante hoje: não fala de um coração abstrato ou etéreo, mas de um coração tocado que toca, ferido que cura, movido que move.

Diante deste horizonte, importa distinguir entre um amor possessivo e um amor oblativo. O primeiro busca reter, dominar, apropriar-se do outro, ainda que sob formas subtis de zelo ou cuidado. Já o segundo é dom de si: não se mede pela necessidade de controlar, mas pela liberdade interior que permite entregar-se, sem deixar de ser quem é. Esta é, foi e será sempre a grande tentação da Igreja e do cristão — entre o amor que prende e o amor que liberta. Ora, o amor oblativo só é possível para quem o experimentou, tanto no plano humano como espiritual. Sem consolação interior, a entrega oblativa torna-se insustentável. E essa consolação não se revela fora da história de Cristo, dos seus gestos concretos, dos seus afetos narrados nos Evangelhos. É essa narração, viva e sempre nova, que constitui a norma normans non normata — a “norma que normatiza sem ser normatizada” — de toda a experiência e expressão crente. É nela que o coração se forma para amar como Ele amou.

O regresso ao coração de Cristo

A espiritualidade do Coração de Jesus não é um acessório devocional, nem se deve reduzir às formas culturalmente datadas em que Se manifestou. (Com esta palavra — manifestou — não me estou a referir aos Evangelhos, onde Cristo revelou o Pai, mas às aparições e manifestações devocionais das eras posteriores aos apóstolos). O caminho será o de, através do aprofundamento destas manifestações devocionais, experimentar que nelas encontramos vias para regressar ao essencial da revelação e de um modo significativo para o nosso tempo, com as suas esperanças e desafios.

E porque Cristo nos impele a deixarmo-nos tocar pelo presente, aceder ao essencial da revelação não se reduz a um resumo magistral nem a um espasmo de clareza moral. É antes algo que acontece por meio de uma adesão interior e quotidiana na qual, sem distinção nem confusão, ideia e prática vivem de mãos dadas. Para S. Paulo, esta adesão passa por ter em nós “os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (Fil 2,5). Numa linguagem mais próxima da nossa, José Antonio Pagola abre-nos a afirmação de Paulo desta forma: “Começamos a encontrar-nos com Jesus quando confiamos em Deus como Ele confiou, quando acreditamos no amor como Ele acreditou, quando nos aproximamos dos que sofrem como Ele se aproximava, quando defendemos a vida como Ele, quando olhamos as pessoas como Ele as olhava, quando nos enfrentamos com a vida e com a morte com a esperança com que Ele as enfrentou, quando contagiamos a Boa Notícia que Ele contagiava”. (Cf. Jesús. Aproximación histórica). Sem esta disposição interior, a fé corre o risco de se tornar esforço hercúleo ou raciocínio milenar, pelagianismo batizado ou gnosticismo que usa a Bíblia como pretexto para confirmar ideias previamente canonizadas. O risco é real: exercer um amor possessivo sobre os outros e o que estes têm de fazer, por meio de uma redução do Evangelho a código moral ou especulação idealista.

Mas é precisamente aqui que o Coração de Cristo nos recentra: Cristo é mais do que ideias ou regras. Cristo é o Evangelho — a Boa Nova viva e encarnada. E o conhecimento do Seu coração é a chave para compreender as Suas palavras e gestos.

Assim, voltar ao coração humano-divino de Cristo é conhecer o centro do Evangelho e vice versa. É reconhecer que o núcleo do cristianismo não é um código ou uma reflexão, mas um encontro, uma relação viva. E que esse centro, antes de nos pedir alguma coisa, faz-se próximo e deixa-Se tocar pelos ritmos da nossa existência — para que, tocados também nós, possamos, por nossa vez e com a Sua graça, tocar o mundo com a Sua compaixão e em fidelidade crescente e criativa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.